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Há cerca de três anos, com a criação da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente em Situação de Risco, a fama do Hospital Pequeno Príncipe ganhou asas. O movimento na instituição duplicou. As estatísticas também. Em 2004, de 241 casos de abuso à infância, 165 (68%) eram suspeitas de estupro, nem todos confirmados, e 39 (16,6%) indicavam agressão física (leia quadro). Em paralelo à procura cada vez maior por internações, os funcionários da casa viram aumentar as histórias grotescas trazidas por pais e cuidadores. São episódios inacreditáveis, incluindo maus-tratos, magia negra, sevícia, surras, braços queimados com cigarro, tufos de cabelo arrancados, violência psicológica, entre outras situações que não caberiam nem num filme de terror.

Para a psicóloga Daniela Carla Prestes, especialista em psicologia hospitalar e até então voltada para a ala da ortopedia, o novo projeto da casa representou um passaporte de entrada no mundo cão. Há 16 anos no Pequeno Príncipe, coube a ela atender crianças e adolescentes vítimas de maus-tratos, assim como seus pais e agregados. Não tardou para que seu repertório incluísse um arsenal clínico com o qual jamais imaginou ter de lidar. Viu uma criança de 3 anos com condiloma – uma doença venérea. Outra, também de 3 anos, com rompimento de íleo: o pai havia se sentado bruscamente sobre ela, para que se calasse. Presenciou vários casos de fratura de fêmur – o osso mais forte do corpo humano, quebrado a custo de muito esforço – e narrativas sombrias sobre abuso sexual em cadeia (pai, tio, irmãos e vizinhos).

Num dos episódios mais curiosos, uma mãe pintou o filho com anilina e imaginou histórias sobrenaturais. Era um delírio psicótico, mas inofensivo. Tempos depois, a identidade do agressor doméstico foi revelada – era o pai, um sujeito acima de qualquer suspeita.

Semana passada, diante de um requintado caso do abuso, Daniela teve uma crise de vômito. Mulher pequena, magérrima, ela costuma ser rápida para escapar de agressores que já lhe apareceram pela frente, principalmente quando a identidade de abusador vem à tona e sobra para a turma do hospital desarmar a bomba. Mas acontece de perder o chão, vez em quando, que ninguém é de ferro. "Nesses dias, peço colo. Converso com o pessoal que trabalha comigo. E, além mais, continuo fazendo análise", conta.

Para lidar com a vida como ela é, a psicóloga criou seu guia de sobrevivência na selva. Uma das regras é jamais julgar, mesmo que as evidências do crime sejam gritantes. "Não estou aqui para isso. Ajo com neutralidade. Temos de confirmar as suspeitas de abuso, encaminhar aos órgãos competentes", explica, lembrando do caso de uma criança que qualquer um juraria ter levado um covarde soco no olho, mas era vítima de uma doença rara.

Por essas e outras, regra número dois: o agressor não tem sempre o mesmo perfil. A única coisa que se pode afirmar com segurança é que ele não escolhe classe social, embora, em geral, apenas a identidade dos mais pobres costume vir à tona. E que pobreza, desemprego e demais problemas financeiras não fazem de ninguém mais ou menos propenso a abusar, botando por terra o mito de que os problemas econômicos são o pai de todos os males. "Estamos lidando com casos de neurose e perversidade. São questões psíquicas. Situações culturais potencializam, mas não determinam atitudes", ensina Daniela.

O perverso, lembra a psicóloga, não vê o outro como sujeito, mas como objeto. Quer que todos satisfaçam seus desejos. Gosta de poder. E de imprimir dor e mal-estar. Espera mais do que as pessoas podem dar. Logo, é uma péssima companhia principalmente para crianças. Mas não é raro encontrá-lo a um pé do berço. Num episódio recente, um deles explicou a Daniela que tinha avisado seis vezes ao filho pequeno que não deveria pôr o dedo na tomada. No sétima alerta, bateu tanto no menino que foi preciso interná-lo no Pequeno Príncipe. "O que podemos fazer? Denunciar, sim. Mas também formar melhor, provocar mais diálogo na família e enterrar de uma vez a crença de que bater educa. Infelizmente, tem quem se inspire na Bíblia para fazer isso." Bater – aliás – serviria para uma única coisa: balançar as estruturas da criança, deixar dúvidas sobre sua identidade e fazer com que não se sinta merecedora de amor, diz a psicóloga.

Quem faz um trabalho como o de Daniela Prestes aprende também que qualquer criança pode ser vítima. Há, lógico, situações que se repetem. Em mais de 60% dos casos, o agressor está dentro de casa. São altas as incidências com filhos de pais adotivos. Pode partir dos padrastos e atinge de maneira assustadora quem tem menos de 1 ano. Os bebês não se defendem, não têm vocabulário e o crime fica em segredo. As seqüelas psíquicas são inevitáveis. "Acontece muito do agressor ter sido agredido na infância e repetir um comportamento quando se torna pai ou mãe", ilustra.

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