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O que esperar de Lula na segurança pública: propostas e desafios do novo governo petista
O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), voltou a criticar o teto de gastos nesta quinta (17).| Foto: Sebastião Moreira/EFE.

Com poucas proposições à segurança pública apresentadas tanto no programa parcial de governo como durante a campanha eleitoral, o cenário que se desenhará na nova gestão do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é de poucas definições claras e muitas incertezas em relação ao tema.

Em programas eleitorais, discursos e entrevistas durante a campanha, Lula focou em críticas à política de segurança pública do atual presidente, Jair Bolsonaro (PL), em especial quanto às diretrizes sobre flexibilização do acesso a armamento e munições. Em contrapartida, prometeu retomar o Estatuto do Desarmamento com o endurecimento das regras de acesso a armamento pela população civil.

Lula também sugeriu medidas como a recriação do Ministério da Segurança Pública, que existiu entre 2016 e 2018 no governo Temer e hoje está integrado ao Ministério da Justiça, e a priorização ao Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), que integraria forças policiais dos estados e da União. Durante a campanha eleitoral foi aventada, ainda, pela campanha de Lula, a criação de uma Guarda Nacional para atuar em crises ligadas à segurança pública.

No entanto, pesam contra o presidente eleito recentes declarações dadas por ele que são apontadas por adversários como de tolerância ao crime, além de diretrizes ideológicas do Partido dos Trabalhadores (PT), que defende políticas de menor rigor no combate às drogas, desencarceramento em massa, desmilitarização das polícias e enfraquecimento da atuação das forças de segurança.

Como exemplo, o PT é um dos partidos que atua como amicus curiae (amigo da Corte) na ADPF 635, que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF). Na ação, o partido endossou o pedido de diversas restrições a operações policiais em comunidades no Rio de Janeiro.

Como mostrado pela Gazeta do Povo, a política em questão resultou no fortalecimento territorial do narcotráfico, na ampliação aos milhares de barricadas dentro das comunidades dominadas pelo crime organizado para impedir o avanço de viaturas; e na migração de lideranças do tráfico de outros estados para os morros fluminenses, ao perceberem os locais como seguros para permanecerem impunes enquanto comandam o crime em seus estados de origem.

Principais desafios do novo governo

A Gazeta do Povo conversou com integrantes de forças policiais e demais especialistas em segurança pública para entender o que é possível esperar de Lula em relação ao combate à violência e à criminalidade.

O desafio central do futuro governo apontado pelos especialistas é manter o ritmo decrescente dos índices de mortes violentas intencionais (homicídios, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte), que desde 2018 estão em tendência de queda. Durante a gestão de Dilma Rousseff (PT), os indicadores de homicídios saltaram em quase 30%. O ápice da violência no país ocorreu em 2017, quando foram contabilizadas 64 mil mortes violentas. A partir de 2018 teve início um movimento de queda nos assassinatos, e essa tendência prossegue desde então, como mostrou reportagem da Gazeta do Povo.

Outros desafios considerados centrais para o novo governo são lidar com o crescimento do narcotráfico e do tráfico de armas; aumentar a efetividade da fiscalização contra possíveis desvios de armas legais sem enfraquecer seu uso para defesa; e implementar as mudanças que prometeu nas corporações policiais (veja mais abaixo) sem reduzir a sua efetividade.

Para Rogério Greco, pós-doutor em Direito, especialista em crime organizado e atual secretário de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais, há preocupação especial com a forma como se dará o combate às organizações ligadas ao tráfico de drogas e armas, uma vez que o plano de governo parcial de Lula propõe enfrentamento menos combativo a criminosos.

“Fazer esse combate sério e efetivo é determinante. O enfrentamento que tem sido feito até agora tem sido muito incisivo, e é motivo de grande preocupação para nós eventual mudança nessa política de governo, que geraria efeitos para todo o país”, diz Greco. “Não adianta os estados trabalharem duro se não houver um controle sério de fronteiras e se houver qualquer leniência com relação às facções criminosas, que a cada dia estão se expandindo”, enfatiza.

O que Lula propôs até agora para a segurança pública

Uma das principais mudanças do governo Lula em relação à política do atual governo deve ser a retomada de restrições à circulação de armas de fogo. A defesa de uma política desarmamentista foi explorada amplamente nos discursos e na propaganda eleitoral de rádio e na TV de Lula.

A cúpula petista avalia que ao flexibilizar a legislação sobre o tema, a gestão Bolsonaro, na prática, liberou o porte de arma para Colecionadores, Atiradores e Caçadores – grupo conhecido como CACs. Para fazer frente a isso, a coordenação de campanha de Lula buscou enfatizar que as mudanças devem ser mais focadas no porte de armas, e não na posse. Em entrevista ao Canal Rural dada em setembro, Lula disse que não vê problema em produtores rurais, cujas propriedades costumam ficar distantes do acesso das forças de segurança, terem armas em sua propriedade para autodefesa.

Apesar disso, declarações recentes do petista apontam para pouca tolerância também em relação à posse de arma para autodefesa. “Para as famílias que trabalham, para as famílias que vivem em paz, não interessa comprar armas. Quem tem que ter armas boas para enfrentar o crime organizado é a polícia, não o cidadão comum”, disse o petista em entrevista coletiva dada em 20 de outubro no Rio de Janeiro. “Não acredito que alguém queira uma arma para o bem. Tenho 76 anos e nunca tive interesse em ter uma arma, tenho fé em Deus e no meu comportamento”, afirmou o presidente eleito no início de setembro ao cumprir agenda de campanha no ABC Paulista, em São Paulo.

Em relação à provável anulação, por parte de Lula, dos atuais decretos sobre armamento editados pelo governo Bolsonaro, Fabrício Rebelo, especialista em segurança pública e diretor do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes), aponta que há riscos de que cidadãos que obtiveram legalmente armamento e munições tenham seus direitos suspensos. “É uma situação imprevisível. Como tudo que regula as atividades dos CACs está em decreto, e não em lei, e o STF há muito já decidiu que não existe direito adquirido na questão das armas de fogo, o governo Lula pode, sim, retirar todos os direitos do segmento”, explica Rebelo.

Sobre esse assunto, nesta quinta-feira (17) o senador eleito Flávio Dino (PSB-MA), um dos cotados a ocupar o cargo de ministro da Segurança Pública no governo Lula, confirmou que deve haver um “revogaço” na política de armas a partir do próximo ano, e que como consequência CACs que compraram armamento de grosso calibre durante o atual governo podem ter que devolver os equipamentos.

Como outras medidas na área da segurança, Lula tem propostas que alcançam profissionais da segurança pública, como a criação de canais de escuta e diálogo com a categoria, programas de atenção biopsicossocial e aumento dos mecanismos de fiscalização e supervisão da atividade policial.

Propôs também fazer acordos com países vizinhos para combater o tráfico de drogas nas fronteiras e implantar a patrulha Maria da Penha em cooperação com guardas municipais. O presidente eleito aventou, ainda, ações que lidem com “violências contra mulheres, juventude negra e população LGBTQIA+”. Mas nem no plano de governo parcial, nem em entrevistas, discursos ou debates o presidente eleito trouxe detalhes sobre a aplicação dessas medidas.

Diretrizes ideológicas preocupam especialistas

Especialistas consultados pela reportagem apontam receios quanto à execução de políticas de segurança pública baseadas em diretrizes ideológicas manifestadas pelo PT ao longo dos anos. Durante o Encontro Nacional de Direitos Humanos do partido, realizado em dezembro de 2021, o setorial aprovou diversas sugestões para serem aplicadas caso Lula vencesse as eleições. Dentre as propostas, validadas na reunião do Coletivo Nacional em fevereiro deste ano, há diversas voltadas à segurança pública.

No rol de sugestões constam, por exemplo, desmilitarização das polícias, descriminalização das drogas e fim da “guerra às drogas” – termo comumente usado por políticos de esquerda para defender a redução de operações policiais de enfrentamento ao narcotráfico.

Quanto à nona resolução, que propõe “reverter o encarceramento em massa de pretos e pobres, a começar por desencarcerar milhares de presos provisórios”, uma fonte da Polícia Civil do Rio de Janeiro que falou à reportagem sob sigilo explicou que há desinformação relacionada à situação de presos provisórios e que eventual política massiva de desencarceramento faria com que criminosos perigosos retornassem às ruas.

“Pelo formato da nossa legislação é muito difícil que uma pessoa que cometeu crime de menor potencial ofensivo fique presa provisoriamente. Já quanto aos crimes de médio potencial ofensivo, normalmente a pessoa vai direto ao regime semiaberto ou obtém a transação penal que evita a prisão”, explica o policial.

“Hoje pessoas presas provisoriamente assim estão porque mataram alguém, ou roubaram com uso de arma de fogo, ou estupraram, ou estão envolvidas no tráfico de drogas armado. Não tem ‘ladrão de galinha’ preso provisoriamente; são pessoas violentas”.

Para ele, melhorias nesse cenário seriam a construção de mais presídios para que presos por crimes violentos fiquem separados dos demais e a aceleração do processo penal para que os presos provisórios sejam absolvidos ou condenados com mais brevidade. “Mas não colocar indiscriminadamente detentos perigosos nas ruas, porque isso só aumentaria a violência”, destaca.

A proposta de Lula de substituir “o atual modelo bélico de combate ao tráfico por estratégias de enfrentamento e desarticulação das organizações criminosas” também é vista com muitas ressalvas pelas fontes consultadas. Luiz Fernando Ramos Aguiar, especialista em segurança pública e major da Polícia Militar do Distrito Federal, explica que o uso de aparatos de inteligência é indissociável de todas as operações policiais, mas em parte delas – como no enfrentamento ao narcotráfico ou a crimes do “novo cangaço”, por exemplo –, inevitavelmente, ocorrerá o enfrentamento armado frente à reação bélica dos criminosos.

“Não há como se combater de outra forma traficantes armados com fuzis, metralhadoras e granadas e dispostos ao enfrentamento. Mesmo com o uso de inteligência, estratégia e investigação vai chegar o momento do enfrentamento, e ele só pode ser feito com armamento. Isso nunca pode ser confundido com mera perseguição à população pobre”, diz Ramos Aguiar.

Por fim, a proposta de “reeducar policiais”, que se daria, segundo o plano parcial de governo petista, por meio de atualização de doutrinas, reformulação dos processos de seleção e melhoria da qualificação técnica dos policiais, deve encontrar muito mais dificuldade de se viabilizar, já que a maior parte dos policiais brasileiros (militares e civis) está sob o controle dos governos estaduais, não do governo federal.

“Em primeiro lugar é um discurso vazio, porque ele não disse concretamente nada sobre quais medidas seriam tomadas nessa remodelagem das polícias. Depois, o governo federal só poderia interferir nas polícias estaduais caso houvesse alteração na Constituição, uma vez que os estados têm sua autonomia e sua independência”, afirma Rogério Greco.

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