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A prisão do jornalista ocorreu em dezembro de 2022 por ordem do ministro Alexandre de Moraes. MPF não encontrou provas de crime.
A prisão do jornalista ocorreu em dezembro de 2022 por ordem do ministro Alexandre de Moraes. MPF não encontrou provas de crime.| Foto: Arquivo pessoal/Jackson Rangel

Um jornalista de 60 anos do interior do Espírito Santo foi preso por mais de um ano sob argumento de disseminar “fake news atentatórias ao Estado Democrático de Direito”. A prisão ocorreu em dezembro de 2022 por ordem do ministro Alexandre de Moraes e, mesmo com o Ministério Público Federal (MPF) pedindo nulidade do caso devido a irregularidades processuais e por não existirem provas de crime, o repórter foi mantido preso por 368 dias. Ele recebeu liberdade provisória em 20 de dezembro de 2023 com as mesmas medidas cautelares impostas aos presos do 8 de janeiro.

“O jornalista Jackson Rangel sequer foi denunciado ou viu seu procedimento arquivado, apesar de reiteradas petições da Procuradoria-Geral da República (PGR)”, afirma o advogado de defesa Gabriel Quintão, ao citar que Rangel também não foi ouvido pela Polícia Federal (PF). “Uma violação ao devido processo legal, algo de natureza medieval”, diz.

A prisão de Rangel foi solicitada pela Procuradoria-Geral do Espírito Santo (PGJ-ES) de forma irregular, diretamente ao STF, em setembro de 2022. Moraes acatou o pedido, apesar da falta de provas e da ilegitimidade do Ministério Público Estadual em realizar a petição (leia mais abaixo). Com isso, o jornalista não poderia ter permanecido preso, conforme estabelece o Código de Processo Penal (CPP).

De acordo com o CPP, um inquérito policial deve ser concluído em 10 dias – com possibilidade de prorrogação por mais 10 – e o indivíduo precisa ser denunciado pelo Ministério Público até cinco dias após a conclusão, sob pena de arquivamento do processo. Isso ocorre porque a denúncia formalizada deve conter provas robustas de algum crime e ser encaminhada ao juiz, que pode aceitá-la ou rejeitá-la, mantendo, ou não, a prisão.

No entanto, no caso do jornalista sexagenário Jackson Rangel, o MPF emitiu parecer contrário ao pedido da PGJ-ES e não efetivou a denúncia. O órgão não encontrou provas de crime e também “não reconheceu a legalidade e constitucionalidade do procedimento, pedindo seu arquivamento”, explica Quintão, ao afirmar que, mesmo com a solicitação emitida pelo Ministério Público, o repórter permaneceu preso por mais de 12 meses.

“Fui submetido a um regime de tortura incompatível com a Constituição e com os tratados internacionais de direitos humanos”, lamenta o capixaba, ao salientar que “o ataque” não foi somente contra ele, mas contra a liberdade de imprensa e o Estado Democrático de Direito. “Fui vítima, eu sim, de atos antidemocráticos que violentaram o devido processo legal, a ordem constitucional e todos os valores civilizatórios imagináveis”, disse em entrevista à Gazeta do Povo.

 Jackson Rangel é morador de Cachoeiro de Itapemirim, no interior do Espírito Santo, onde atua como jornalista há 40 anos. Foto: Arquivo pessoal/Jackson Rangel
Jackson Rangel é morador de Cachoeiro de Itapemirim, no interior do Espírito Santo, onde atua como jornalista há 40 anos. Foto: Arquivo pessoal/Jackson Rangel

Morador de Cachoeiro de Itapemirim, no interior do Espírito Santo, Rangel atua como jornalista há 40 anos com a produção de reportagens investigativas, analíticas e opinativas de repercussão estadual. Ele também é advogado e empresário, dono do jornal Folha do ES 35 anos. “Sempre atuei de forma independente, fiscalizando e divulgando fatos incômodos aos poderosos do momento”, disse.

Inclusive, o repórter relata que já foi alvo de diversos processos judiciais em ações de indivíduos que se sentiram lesados por citações e que, apenas em 2023, obteve sentença favorável em pelo menos seis processos movidos contra ele devido a reportagens de sua autoria. “E isso é normal”, afirma. “O anormal é prender jornalistas para silenciá-los e inviabilizá-los, algo que não se via desde a ditadura”, completa.

“Virulentas postagens” contra a Suprema Corte  

Jackson Rangel foi preso dia 15 de dezembro de 2022 por suposta propagação de “fake news atentatórias ao Estado Democrático de Direito”, termos vagos que, na prática, referem-se a manifestações de indignação e críticas ao governo e ao STF.

Na decisão sigilosa apresentada por Moraes, à qual a reportagem da Gazeta do Povo teve acesso, o ministro acatou a tese da procuradora-geral do Espírito Santo de que o jornalista seria autor de “virulentas postagens” contra a Suprema Corte em seu perfil no X (antigo Twitter). Entre as frases apresentadas estavam “sem liberdade, não existe independência”, “é uma vergonha um Poder tomar a atribuição do outro” e “não tem como o País ir pra frente com essa política rendida e vassala”.

Também são citadas as postagens “Alexandre de Moraes conseguiu a proeza de provocar o povo e provar seu poder se dele emana” e “não tenho dúvidas da invasão do STF hoje a qualquer momento num ato de desespero dos brasileiros de reaver suas liberdades”. As postagens foram realizadas em 2022.

A lista completa tem nove frases, e o documento afirma que a prática de diversos crimes estaria “suficientemente demonstrada”, configurando “ato de verdadeiro terrorismo digital”. A decisão informa ainda que o jornalista seria alvo de processos judiciais devido a “fake news” publicadas por ele e que o jornal Folha do ES integraria uma “milícia digital” com intuito de desestabilizar as instituições democráticas.

Rangel foi, então, um dos 27 alvos do Espírito Santo na 1ª fase da Operação Lesa Pátria, que determinou sua prisão preventiva e também busca e apreensão de todos os equipamentos eletrônicos do veículo de comunicação que administra. “Destruíram minha pequena redação”, lamenta o repórter e empresário, ao citar que os 20 computadores utilizados pelos funcionários foram levados pela Polícia Federal (PF).

“O objetivo era calar minha voz, interromper reportagens e criar um ambiente de criminalização e marginalização do jornal”, aponta, ao afirmar que produzia matérias com denúncias envolvendo diversas autoridades do Espírito Santo e que essas pessoas têm processos judiciais pessoais abertos contra o jornalista devido aos textos.

“Sabendo que não tenho o poder econômico e político dos grandes veículos, insistem em ações particulares e até na petição direta ao ministro Alexandre de Moraes para me marginalizar e constranger”, afirma Rangel, pontuando que o órgão estadual não pode fazer petições diretas ao STF, já que essa atribuição é da PGR.

MP-ES levou o caso do jornalista ao STF 

De acordo com o primeiro parecer do Ministério Público Federal (MPF), de outubro de 2022, que pediu a nulidade do caso, a Procuradoria-Geral de Justiça do Espírito Santo realmente não teria competência para solicitar diretamente ao Supremo a prisão, busca e apreensão, e quebras de sigilo telefônico e bancário do jornalista. A situação foi apresentada no documento do MPF como “afronta ao ordenamento jurídico” em relação à atribuição de cada ramo do Ministério Público, e gerou “ausência de legitimidade processual”.

Além disso, o MPF apontou que a demanda em análise também repetiria uma investigação já aberta na Justiça Estadual – violando o princípio do direito penal que proíbe processar, julgar e condenar alguém mais de uma vez pela mesma conduta.

Esse processo, citado pela Procuradoria Estadual na petição direta ao STF como argumento de propagação de “fake news”, trata de reportagens publicadas pelo jornalista em 2021 a respeito de indícios de corrupção e direcionamento de uma licitação do governo do Espírito Santo no valor de R$ 139 milhões.

Na época, fontes sigilosas entregaram um pen drive a Rangel com provas do crime. De acordo com a defesa do jornalista, o material foi encaminhado ao Ministério Público Federal, que reconheceu a necessidade de investigação, mas indicou que a apuração deveria ocorrer a partir do Ministério Público do Espírito Santo. A procuradora de justiça do estado, no entanto, arquivou o caso sob alegação de que o material divulgado seria “prova ilícita por violar correspondência eletrônica sem ordem judicial”.

Além de proibir investigação relacionada aos indícios de corrupção, a procuradora ainda abriu inquérito policial contra o jornalista que noticiou o escândalo. Um vereador, um radialista e dois deputados estaduais que divulgaram as provas do pen drive também foram indiciados.

Diante da situação, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) chegou a questionar o STF a respeito do caso, alegando que fontes sigilosas que entregaram o pen drive eram funcionários da empresa vencedora do certame e que as provas revelavam uma “organização criminosa formada por agentes públicos estaduais e agentes privados”, pontuava a ABI.

“Nesse contexto, imprensa e parlamentares noticiaram o conteúdo do pen drive em jornais, na tribuna e aos órgãos de investigação, informando à sociedade e requerendo providências”, continuava o documento, que obteve parecer favorável do Ministro Dias Toffoli em 21 de junho de 2022.

A decisão do ministro solicitava “que autoridades públicas envolvidas deixassem de praticar atos visando responsabilização de jornalistas (pela proteção do sigilo da fonte jornalística)” na divulgação do suposto esquema de corrupção envolvendo o Departamento de Trânsito do estado (Detran-ES).

Em entrevista à Gazeta do Povo, o ex-presidente da ABI, jornalista Paulo Jerônimo Souza, afirma que a entidade trabalhou arduamente com seus advogados na defesa de Rangel e dos demais alvos da Procuradoria do Espírito Santo porque a situação era um “atentado à liberdade de imprensa”. “E acreditamos na época que, com a resposta do ministro, o caso estaria resolvido”, disse o ex-presidente da entidade, indignado com a sequência dada ao caso.

“Manter Rangel e os demais noticiantes presos por mais de um ano, sem nenhuma acusação formal é uma violação aos direitos humanos”, lamentou. A reportagem também entrou em contato com a atual gestão da ABI, que preferiu não se manifestar.

Tentativa de “iniciar nova frente persecutória”, diz MPF 

De acordo com o parecer do MPF de outubro de 2022, a ação da PGJ-ES pedindo prisão dos noticiantes do caso diretamente ao STF seria uma tentativa de “iniciar nova frente persecutória”, o que representaria “possível tentativa de contornar e descumprir" a decisão de Dias Toffoli. Portanto, o MPF solicitou “indeferimento da representação por medidas cautelares e consequente arquivamento dos autos”.

Moraes, no entanto, manteve a prisão. “Não acharam nada contra mim e me seguraram em cárcere para me oprimir, marginalizar, perseguir e inviabilizar minha atividade jornalística de 40 anos”, afirma Rangel, colocado pelo STF no mesmo “inquérito das fake news” em que se encontram o jornalista Allan dos Santos e o empresário Luciano Hang.

Além disso, o advogado Gabriel Quintão pontua que o vereador e o radialista que também denunciaram o caso do pen drive ficaram presos pelo mesmo período que Rangel, como alvo da mesma petição direta da Procuradoria do Espírito Santo ao STF. “E dois deputados estaduais que estavam no mandato foram alvos, e estão de tornozeleira até hoje, sem serem ouvidos e sem denúncia também, com proibição de sair do estado e até de dar entrevistas.”

A Gazeta do Povo tentou entrevista com a PGJ-ES por telefone, e-mail e WhatsApp, mas não foi atendida. Segundo a assessoria, "o procedimento tramita em segredo de Justiça no Supremo Tribunal Federal Tribunal Federal (STF), por isso o Ministério Público do Estado do Espírito Santo (MPES) não deve se pronunciar sobre o assunto". A reportagem também tentou contato com o STF, mas a assessoria também informou que “o processo é sigiloso”.

O que espera a defesa 

Para Jackson Rangel, o fato de o MPF ter solicitado o arquivamento da ação diversas vezes evidencia que “o Ministro Alexandre de Moraes foi induzido a erro” pela procuradoria estadual e, por isso, sua defesa espera que as manifestações da PGR sejam acolhidas o quanto antes para revogação das medidas cautelares impostas.

“Isso não vai trazer mais de 12 meses de privação da liberdade de volta, mais de um ano de vida encarcerado, mas já é o reconhecimento de que há algum Estado de Direito e Constituição no país”, finaliza o advogado Gabriel Quintão.

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