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Movimento negro e governistas ignoram fala de Lula sobre “gratidão pela escravidão”
Nesta quarta-feira (19), o presidente Lula agradeceu à África “por tudo o que foi produzido durante 350 anos de escravidão”| Foto: Ricardo Stuckert/PR

Passadas mais de 24 horas de mais uma declaração polêmica do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em que agradeceu à África “por tudo o que foi produzido durante 350 anos de escravidão”, as principais entidades autodeclaradas antirracistas – a maioria apoiadora da candidatura do petista – ignoraram solenemente a fala do presidente.

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“Quero recuperar a relação com o continente africano porque nós brasileiros somos formados pelo povo africano. Nossa cultura, cor e tamanho é resultado da miscigenação entre índios, negros e europeus. Temos profunda gratidão ao continente africano por tudo que foi produzido durante 350 anos de escravidão em nosso país”, disse Lula ao lado do presidente de Cabo Verde, José Maria Neves, na tarde desta quarta-feira (19).

Como mostrado pela Gazeta do Povo, a fala do presidente é moralmente condenável porque trata a escravidão como algo que seria positivo para o Brasil, em uma visão utilitarista que não leva em conta o sofrimento e os direitos das centenas de milhares de pessoas que foram escravizadas.

Ao todo, a reportagem questionou 14 entidades (veja abaixo a relação) que se intitulam defensoras da causa negra e dos direitos humanos. Algumas delas fizeram campanha aberta para o petista nas eleições presidenciais do ano passado, e parte delas têm, entre seus membros, integrantes do chamado “Conselhão do Lula”.

Um deles é Doulas Belchior – cofundador da ONG Uneafro e filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT). O ativista também é cofundador da ONG Coalizão Negra Por Direitos e articulador da Educafro. Também fazem parte do “Conselhão” o diretor do Coletivo de Entidades Negras (Conen), João Nogueira; a assessora jurídica da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), Vercilene Dias; e a fundadora do Instituto Geledés, Sueli Carneiro.

Várias dessas organizações, que costumam se manifestar com notas de repúdio a qualquer conduta que possa ser minimamente interpretada como racista ou mesmo infeliz em relação ao preconceito racial, sequer tentaram explicar um outro ponto de vista sobre a declaração de Lula.

Um pequeno número de entidades respondeu ao contato da reportagem informando que não se manifestariam sobre o caso. Uma delas é a ONG Criola que, mesmo optando pelo silêncio frente a uma fala de um presidente da República, divulgou nesta manhã uma nota de repúdio apontando racismo por parte do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ-DF) por ter impedido a entrada de um advogado em trajes de candomblé em uma sessão de julgamento.

Veja a seguir a lista de entidades tipicamente defensoras do antirracismo que ignoraram a fala de Lula sobre a escravidão de africanos:

  • Instituto Odara
  • Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq)
  • Educafro
  • Coalizão Negra Por Direitos
  • ONG Criola
  • Fórum Permanente para Igualdade Racial (Fopir)
  • Instituto Geledés
  • Instituto Marielle Franco
  • Centro Santo Dias de Direitos Humanos
  • Uneafro
  • Amma Psique
  • Baobá - Fundo para Equidade Racial
  • Coletivo Papo Reto
  • Coletivo de Entidades Negras (Conen)

Frente Parlamentar Antirracista e ministra da Igualdade Racial também silenciam

O padrão de ignorar o episódio se manteve entre parlamentares ligados ao antirracismo e até dentro do próprio governo. A Gazeta do Povo perguntou à assessoria dos coordenadores da Frente Parlamentar Mista Antirracismo sobre eventual posicionamento em relação ao caso. A assessoria do coordenador da bancada no Senado, senador Paulo Paim (PT-RS), informou que o parlamentar estava em seu estado cumprindo agendas e que, por isso, havia dificuldades de comunicação. Já a coordenadora da bancada na Câmara, deputada Dandara (PT-MG), não retornou ao contato. Assim também fez a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco.

Em contrapartida, o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, tentou contornar a declaração dada por Lula. “O que o presidente Lula disse foi: ‘o Brasil tem uma dívida com África e ela tem que ser paga’. E por isso, o Presidente tem insistido – e já falei com ele sobre isso – é que a agenda de direitos humanos com África envolve o chamado direito ao desenvolvimento”, afirmou Almeida, ao jornal O Estado de S. Paulo, na tarde desta quinta-feira (20).

O titular da pasta de direitos humanos foi um dos responsáveis por popularizar, no Brasil, a tese de que haveria no país um “racismo estrutural” – conceito no qual haveria uma organização dentro da sociedade que privilegiaria grupos de determinada etnia ou cor em detrimento de outro, percebido como inferior. Alvo de diversas críticas, a tese é questionada principalmente por, indiretamente, empregar o rótulo de racista a pessoas que jamais expressaram qualquer declaração ou ação nesse sentido.

Anteriormente, Silvio Almeida se calou diante de ações de Lula consideradas desastrosas em termos de direitos humanos até mesmo pela imprensa internacional. No final de maio, o ministro optou por não se manifestar após a calorosa recepção de Lula ao ditador venezuelano Nicolás Maduro, cujo governo é marcado por violações diversas à democracia, aos direitos humanos e às liberdades individuais.

Na mesma semana, Almeida também não comentou a agressão a uma repórter por um dos seguranças de Maduro e por membros do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), do governo federal. A comunicação oficial do ministério igualmente ignorou completamente o assunto.

Exceção no movimento negro, Benedita da Silva sai em defesa de Lula

Além de Silvio Almeida, a deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) foi uma das poucas figuras públicas a sair em defesa do presidente. Na noite de quarta-feira, ela disse à Folha de S. Paulo que a interpretação correta da fala de Lula seria entender que “o Brasil viveu de costas para a África e que nós temos uma dívida enorme com a África, e a África não pode ser apenas um parceiro cultural ou de turismo, ou de safari”.

"Ela tem potencial para que tenha uma sólida relação comercial. É o que eu tenho ouvido o presidente falar, que ele vai investir com tecnologia, com troca de conhecimento, e tem um potencial grande à medida que a gente vê muita fome, muita miséria", declarou.

“E se fosse o Bolsonaro?”, questionam parlamentares da oposição

Uma série de deputados de oposição questionou o “apagão” de entidades e atores políticos normalmente engajados na militância antirracista. Os parlamentares oposicionistas também apontaram conveniência política nas críticas feitas por esses grupos. “Lula agradeceu à África por tudo o que foi produzido durante 350 anos de escravidão. Onde estão aqueles que vivem gritando 'fogo nos racistas'?”, indagou o deputado federal Mario Frias (PL-SP).

O deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) também tratou do assunto nas redes sociais: “Que silêncio ensurdecedor da esquerda, movimento negro e mimizentos sobre o Lula agradecendo à África por ‘tudo que foi produzido em 350 anos de escravidão’, hein? Só pensa se isso sai da boca do Bolsonaro… pensa”, tuitou o parlamentar mineiro.

Outros deputados, assim como Gustavo Gayer (PL-GO) e Gilberto Silva (PL-PB) seguiram a mesma linha, questionando um aparente duplo padrão dentro do movimento negro e sugerindo que haveria reações bastante contrastantes caso o ex-presidente Jair Bolsonaro fosse o autor da fala.

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