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discursos na Câmara dos Deputados
Em três meses e meio, os deputados que tomaram posse em 2023 na Câmara já mencionaram a palavra “homofobia” em plenário mais vezes do que todo 2022| Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

Até o dia 7 de fevereiro de 2001, a palavra “homofobia” jamais havia sido pronunciada no plenário da Câmara dos Deputados. Foi quando a deputada Maria do Carmo Lara (PT-MG) subiu à tribuna para lamentar o assassinato de um jovem homossexual na capital paulista, registrado um ano antes. "É preciso que esta Casa, através da Comissão de Direitos Humanos, manifeste à opinião pública brasileira o repúdio a toda e qualquer forma de homofobia", disse ela. De lá para cá, outros 821 discursos se referiram ao termo.

Já a expressão "transfobia" só apareceu pela primeira vez em 2009, em um pronunciamento de Janete Capiberibe (PSB-AP). Depois disso, foram mais três anos até a segunda menção, pelo deputado Luiz Couto (PT-PB). Hoje, a lista completa já soma 73 pronunciamentos com referência ao assunto.

Esses são indícios de uma tendência mais ampla. A reportagem da Gazeta do Povo analisou os discursos feitos em plenário nos últimos anos 20 anos. O resultado mostra uma tendência clara: temas antes considerados centrais, como criminalidade, pobreza e corrupção, estão ocupando cada vez menos espaço; ao mesmo tempo, menções à agenda identitária e ao aborto nunca foram tão frequentes quanto na composição atual da Câmara, que tomou posse em fevereiro deste ano.

Por exemplo: em três meses e meio, os deputados que tomaram posse em 2023 já mencionaram a palavra "homofobia" em plenário mais vezes do que todo 2022. Foram 23 discursos mencionando essa palavra, ante 15 no ano passado, no mesmo período. Entre 1º de fevereiro (quando a legislatura tomou posse) e 16 de maio deste ano, 27 discursos no plenário incluíram o termo "transfobia". No mesmo período de 2020, 2021 e 2022, o tema esteve completamente ausente dos microfones do plenário. Os discursos com referência ao aborto também aumentaram: foram 7 em 2020, 9 em 2021, 36 em 2022 e 40 neste ano. A sequência das menções ao racismo seguiu uma trajetória semelhante: de 24 (2020), 20 (2021) e 44 (2022), passou para 74 em 2023.

A maior parte dos pronunciamentos com referência a pautas identitárias vem de parlamentares de esquerda, mas também há menções de deputados à direita. Recentemente, por exemplo, o deputado Deltan Dallagnol (Podemos-PR) alertou para o risco de que o PL das Fake News (ou PL da Censura) acabe punindo pessoa que discordem da agenda LGBT radical, sob a alegação de que essa discordância configura transfobia.

Temas tradicionais perdem espaço 

Embora ainda ocupem um peso maior do que as pautas identitárias nos debates em plenário, as pautas mais tradicionais têm perdido espaço. Apenas entre 2022 e 2023, os termos "privatização", "carga tributária", "corrupção", "educação", "pobreza" e "SUS" tiveram quedas que vão de 28,5% e 92,1%.

Outra forma de medir a mudança no interesse dos deputados é olhando a relação entre os discursos com pauta identitária e os que tratam de temas gerais. Em 2022, entre fevereiro e o meio de maio, a proporção foi de 11 para um: em média, cada 11 discursos sobre educação, criminalidade, corrupção ou outros temas "tradicionais" era acompanhado por um discurso com pauta identitária. Essa proporção era a menor já registrada até ali. Mas 2023 foi muito além: a proporção é de um para 3,3. Em outras palavras, o peso proporcional dos temas identitários nunca foi tão grande.

Isso se deve tanto ao aumento às menções a temas como a homofobia quanto à redução dos pronunciamentos tratando de pautas tradicionais. Por exemplo: em 5 anos, levando em conta o período de 1º fevereiro a 16 de maio, os discursos mencionando a educação passaram de 956 para 223. Corrupção caiu de 326 para 116. Criminalidade, de 222 para 73.

Comparação anual 

Uma comparação com os dados completos dos últimos anos (em vez do período de fevereiro a maio) permite uma compreensão mais ampla desse padrão. Embora haja oscilações importantes, a tendência de longo prazo é clara. Por exemplo: entre 2002 e 2022, as menções a "racismo" cresceram 90,5%. Machismo e misoginia, juntos, aumentaram 775%. Aborto, 290%. É impossível medir o aumento de "homofobia" e "transfobia" em termos percentuais porque, em 2002, nenhuma das duas expressões foi citada no plenário da Câmara.

No mesmo intervalo de 20 anos, caíram os discursos com referência à pobreza (46,7% de queda), carga tributária (redução de 56,3%) e criminalidade (queda de 71,8%). De 2012 para 2022, também há uma diminuição visível nas menções a outros temas tradicionais, como educação (redução de 45,2%) e corrupção (queda de 32,7%).

Influência das redes 

A mudança nos termos do debate político é, de certa forma, natural. As demandas da sociedade não são estáticas, e o Congresso reflete esse movimento.

Mas dois fenômenos ajudam a explicar a mudança de foco e a perda de interesse nas pautas tradicionais. Um é a adoção, por parte da esquerda, de uma agenda que deixou de lado o aspecto econômico para focar em temas de "identidade" e "direitos das minorias". O outro é a emergência das redes sociais como forma de divulgação da atividade parlamentar, que parece ter incentivado os deputados a focar em temas controversos ou que tenham maior possibilidade de gerar interesse no ambiente virtual. A carga tributária e a gestão do SUS provavelmente não estão no topo da lista de assuntos mais explosivos. O avanço de temas como a transfobia e o aborto é curioso porque a Câmara não votou qualquer projeto de relevância sobre a transição de gênero ou o aborto nos últimos anos.

Na opinião de Leonardo Paz, pesquisador do Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da FGV (Fundação Getúlio Vargas), o processo de mudança no foco dos parlamentares não se restringe ao Brasil. Ele afirma que a adoção de pautas progressistas em temas como sexualidade e aborto por parte da esquerda e a subsequente reação de grupos conservadores ajudam a explicar o fenômeno. Ele concorda, entretanto, que as redes sociais potencializam o esvaziamento do debate mais aprofundado. Na visão dele, o Congresso brasileiro tem muitos exemplos desse fenômeno. "Há um conjunto de congressistas nesse momento cuja agenda é identitária e não propositiva. E existe uma falta de compreensão de como a máquina pública funciona", diz.

Segundo Leonardo Paz, o realinhamento também exige uma redefinição dos próprios rótulos tradicionais de esquerda e direita, que costumavam se dividir principalmente em temas econômicos. "A gente imaginava que o aspecto fundamental das preferências dos indivíduos era econômico. Mas, especialmente depois de 2018, a gente passa a ver que a questão da ideologia conservadora ou progressista é tão ou mais relevante que a econômica", afirma.

Doutor em Ciência Política e professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Manoel Leonardo Wanderley Duarte Santos acredita que a internet carrega parte da culpa pela mudança nos temas abordados em plenário. "Em boa medida, o conteúdo gerado por um discurso em Plenário tem se convertido imediatamente em conteúdo veiculado nas redes, e não parece absurdo pensar que alguns deputados não estão falando exatamente para os seus pares ou para os partidos políticos no Plenário", afirma.

Para Santos, as consequências desse comportamento dos parlamentares são negativas — já que a persuasão deixou de ser um objetivo. O que resta é a troca de provocações e acusações para ganhar o aplauso dos eleitores. "Não me parece exatamente um diálogo baseado em argumentos mais sofisticados, com o objetivo de informar e oferecer uma alternativa de mediação no processo decisório no parlamento. O importante agora parece ser mais 'lacrar' do que contribuir para o debate", diz ele.

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