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O estádio Walfrido do Rosário, do Bacacheri Atlético Clube, pode desaparecer | Daniel Castellano/Gazeta do Povo
O estádio Walfrido do Rosário, do Bacacheri Atlético Clube, pode desaparecer| Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo

O estádio Walfrido do Rosário, do Bacacheri Atlético Clube, está em vias de desaparecer da paisagem de Curitiba. Há exatos 55 anos, o portal amarelo ouro – com detalhes em preto – é um marco arquitetônico da Rua Lodovico Geronasso, 805, por ironia, no bairro Boa Vista. A área de quase 13 mil metros quadrados foi vendida no segundo semestre do ano passado para a Rede Condor por R$ 11 milhões, mas o prédio não está listado entre as Unidades de Interesse de Preservação, as Uips, nome dado à política de patrimônio praticada no município. O grupo Zonta não confirma que fará um supermercado no local.

GALERIA: O Bacacheri A.C. vive

A prefeitura admite que não há impedimentos à demolição, embora nenhum alvará tenha sido expedido até agora. “Uma lei para tombamento de imóveis históricos da cidade está na Câmara de Vereadores, à espera de votação. Enquanto não for aprovada, só resta lamentar essas perdas”, informa o historiador Hugo Moura Tavares, diretor de Patrimônio da Fundação Cultural de Curitiba, secretaria que divide com o Ippuc a gestão do setor.

Nocaute

Não é a primeira derrota para a memória da cidade. Na última década, a tática de “tombar por decreto”, tal como é praticado quando um bem é declarado unidade de interesse de preservação, acumula pelo menos meia dúzia de perdas na Justiça. Os juízes entendem a supremacia da propriedade privada por sobre o valor histórico de um bem, o que inclui o direito de botá-lo abaixo. E consideram que a legislação local é frágil, por não ter poder de tombamento, daí a urgência de uma lei, ainda que a medida seja controversa. Engessados, sem uso e na dependência de verbas estatais, muito bens podem ficar sujeitos à degradação, mesmo que protegidos de forma integral. Políticas de patrimônio funcionam se feitas a várias mãos – concordam os estudiosos.

No caso do Bacacheri A.C. a situação é ainda mais delicada. O local nem sequer despertou interesse dos observadores do patrimônio. Nunca foi cadastrado e é difícil encontrar um especialista em bens históricos que reivindique sua manutenção – em especial a do portal amarelo, um déco tardio. Mesmo impasse ocorreu três anos atrás, quando da demolição da fábrica do Matte Leão, no Rebouças, para dar lugar ao novo templo da Igreja Universal do Reino de Deus. O prédio era relevante para a memória da cidade, não para a história da arquitetura – daí a causa perdida.

Venda de estádio “deu bronca” entre sócios e foi parar na Justiça

A venda do Estádio Walfrido do Rosário acabou virando uma história das mais divertidas. Ou pelo menos até a página 2. O clube tem pouco mais de 50 associados, que pagavam R$ 80 de mensalidade. A venda da “sede de campo” – como o estádio é chamado desde 1974, quando o estatuto passou por uma remodelação – rendeu algo próximo de R$ 190 mil a cada um deles. É como ganhar na loteria.

A decisão pela venda – pressão imobiliária comum a times da Suburbana e quetais – não se deu em águas tranquilas. Além da dúvida de parte dos associados, expressa em assembleia após assembleia, havia o medo de desapropriação por parte da prefeitura, o que poderia reduzir o valor do metro quadrado. Uma rua acaba na parte dos fundos do estádio. Haveria intenção de abri-la, informa o microempresário Didier Akim, 71 anos, que fez parte da direção do Bacacheri A.C. “Além do mais, o clube estava desgastado. Tentamos de tudo.”

O caso foi parar na Justiça. Sócios remidos – como são chamados os que deixaram de contribuir com a mensalidade – recorreram. Eles reivindicam sua parte no bolo da agremiação. Houve dois ganhos de causa e atraso na segunda parcela do pagamento. “Mas a venda é fato consumado”, assegura Didier.

O mesmo se pode argumentar em relação ao Bacacheri A.C. – e essa é a questão. A preservação dos estádios de futebol ainda não encontrou seu lugar em meio a um sem número de impasses que rondam a defesa do patrimônio. A premissa vale para clubes e sociedades étnicas em geral. Exceto imóveis de vulto, a exemplo do Clube Concórdia ou Garibaldi, devidamente protegidos, os demais ficaram à própria sorte. Lembre-se da Sociedade Urca e do União Juventus, ambos demolidos. E do perigo de beijar a lona em que se encontra o Estádio Durival Britto e Silva, no Capanema.

Em boa parte dos casos, sedes recreativas e esportivas se confundem, somando pelo menos 40 agremiações na cidade. Acrescendo à conta as sociedades apenas futebolísticas, esse cálculo inflaciona. Impossível salvar todas. Mas excluí-las do debate é sepultar um mecanismo de sociabilidade que marcou a vida urbana em mais da metade do século 20. Em meio a esse cipoal, o fim anunciado do estádio do Bacacheri A.C. tende a se tornar um símbolo – por razões que extrapolam a curiosa fachada do clube.

Em miúdos – qualquer um que queira contar a história do Bacacheri e do Boa vista, áreas que juntas somam 12 quilômetros quadrados e abrigam 55 mil pessoas – vai ter de forçosamente passar pelas famílias Geronasso e Rosário e pelos times de futebol que ora uniram, ora separaram os clãs que catalisaram a comunidade. Se foram populares? “Ora se foram. Domingo era dia de ir até lá, fazer piquenique, passar o dia”, conta o comerciante Marcos Antônio do Rosário, 53 anos, neto do mítico Jovino do Rosário.

Números

Na loja em que vende chuveiros, torneiras e material elétrico, perto do Terminal do Boa Vista, Marcos mantém na parede a foto do avô Jovino, em ternos. No celular, traz a reprodução de um retrato da fundação do Bacacheri A.C., em 1948. Fala da grande família de oito filhos do patriarca, um deles o craque Walfrido do Rosário, a quem o estádio foi dedicado, quando de sua inauguração, em 25 de setembro de 1960. Evita polêmicas, como as rusgas com os primos Geronasso e a controvertida decisão dos sócios em vender o estádio (leia nesta página). No mais – lamenta. O clube continua existindo, mas num sobrado atrás da antiga sede.

Não está sozinho. Um dos primeiros a fazer o luto pelo Bacacheri A.C. foi o jornalista Levi Mulford Chrestensen, 85 anos, maior especialista em futebol amador do estado e dono de maior acervo sobre os clubes da Suburbana. Ele – que chegou a jogar no clube entre 1949 e 1954 – guarda em casa todo o acervo de fotos, troféus, quadros e documentos da agremiação. Arranjou o material impresso em dez volumes, por ordem cronológica, um acervo que não deixa dúvidas: o time está no epicentro dos dois bairros. E tinha um ídolo – “Walfrido do Rosário foi um dos maiores artilheiros que vi”, avaliza Levi. Na ponta da língua, os feitos do clube: vice-campeão de 1952; 17 partidas ganhas em 1954; fábrica de atletas, como Duvair e Alcione...

Levi não vive só de saudade. É bom igualmente em estatísticas. Seu gigantesco acervo sobre a segunda divisão soma mais de 50 pastas sobre times – quais o Bacacheri A.C – que ou se licenciaram ou penduraram a chuteira de vez. A dizer – Bola de Ouro, Belmonte, América, Cinco de Maio, Olimpique, São Paulo do Xaxim. “O bairro do Boqueirão tinha mais de dez campos. Só o Paissandu perdeu três áreas. O Fanny está sempre ameaçado”, informa, à medida que calcula: das agremiações que jogaram entre 1949 e 1959, apenas cinco ainda estão na ativa.

As mudanças nas práticas de lazer, de vizinhança e a especulação imobiliária – que empurra os estádios rumo ao desaparecimento – provocaram uma conta de menos. Entre 1960 e 1980, sumiram 14 dos 32 times da Suburbana; entre 1980 e 2000, 22 sumiram de um total de 32 times participantes do campeonato; e outros 23 dos anos 2000 até hoje. Total: 59 em 55 anos. Impossível que nenhum marco tenha se perdido. Depois de tudo, o Bacacheri A.C. tende a se tornar mais um deles.

O “Maçã”

Daniel Castellano/Gazeta do Povo

“Nunca bebi, nunca fumei. Sou do tempo em que tinha de ser macho, um jogador de raça”, brinca o catarinense Máximo dos Reis, 78 anos, vulgo “Maçã”, seu nome de guerra no Bacacheri A.C., por pelo menos duas décadas. Apelidos eram regra da casa – Molho, Arruda, Rato, Coca-Cola, Escovinha, Babá. A lista é longa, divertida e deixa “Maçã” a nervos expostos.

O ex-atleta guarda num baú, em casa, uma relíquia – o retrato do “glorioso” time que jogava no Estádio Walfrido do Rosário, em 1965. Trajava camisa parecida com a da seleção da Croácia.

Aceitou posar para uma sessão de fotos no velho “clube de campo”, como costumam dizer os sócios. Cada canto do terrenão e das instalações lhe dizem respeito: a cancha de bocha, a capelinha do Perpétuo Socorro, o salão dedicado ao pesquisador Levi Mulford, a quem está confiado o acervo do Bacacheri A.C. É o que o consola.

O pesquisador

Brunno Covello/Gazeta do Povo

Em tempos idos, Levi Mulford, um dos fundadores do time, montava painéis escritos à mão, com os desempenhos do Bacacheri A.C. São relíquias de seu acervo ainda não mensurado. Na foto, um quadro de desempenho do time em 1962.

Amarelo e preto

Brunno Covello/Gazeta do Povo

Ano passado, ao saber da venda do Estádio Walfrido do Rosário, Levi Mulford se tornou tutor do acervo do clube. Aos poucos, organiza as memórias do time em que jogou como ponta-direita. Na imagem, uma das formações dos anos 1960.

Walfrido, o craque

Daniel Castellano/Gazeta do Povo

De 1948 a 1960, o Bacacheri A.C. jogou em terrenos emprestados da região. Ao ganhar seu estádio próprio, a agremiação decidiu homenagear um de seus mitos, o craque Walfrido do Rosário, figura mítica da Boa Vista. “Não foi pelo sobrenome”, diz-se por lá.

  • Levi Mulford no seu corredor de arquivos, que contam um pouco da história do futebol paranaense.
  • Levi observa as fotos do Bacacheri A.C. das década de 50 e 60.
  • Mulford segura cartaz feito à mão com os resultados do Bacacheri em 1962.
  • Com seu gatinho, posa para um retrato no local preferido de sua casa.
  • Mulford guarda também um grande acervo de fotos antigas, entre elas alguns retratos de quando era jovem.
  • Mulford jogava como ponta-direita do Bacacheri e criou uma paixão por documentar o futebol amador e profissional.
  • Mulford é a maior autoridade em Suburbana. Seu acervo tem 68 anos., sendo iniciado na adolescência do jornalista.
  • O time do Bacacheri nos tempos áureos . Nas décadas de 1950 e 1960, clube se destacou na segunda divisão.
  • Outra imagem do time do Bacacheri nos anos 50.
  • Mulford guarda livros com placares dos jogos do tempo em que era jogador.
  • Walfrido do Rosário, jogador que deu nome ao estádio do Bacacheri. “Ele fazia gol de tudo que é jeito. Era exímio”, diz Levi Mulford.
  • Reprodução das fotos do estádio Walfrido do Rosário. em 1960. Sócios descontentes com a venda do estádio alegaram que o terreno teria sido doado, o que tornaria a negociação inválida. Fontes ouvidas pela reportagem refutam tese.
  • O ex-jogador de futebol Máximo dos Reis, o “Maçã”, com uma foto de sua coleção, no Estádio Walfrido do Rosário”.
  • Clube tem uma capelinha dedicada a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.
  • Uma das tentativas da direção foi alugar o clube para escolas de dança e para bailes. Reclamações da vizinhança por causa do barulho tornaram fonte de renda inviável.
  • “Maçã” no clube onde passou parte de sua juventude. À maneira de outros veteranos, não acredita que haverá futuro para os antigos clubes da Suburbana.
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