A Constituição Federal impede que pessoas sejam privadas de direitos por possuírem convicções filosóficas ou políticas.| Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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Além de violar a liberdade de expressão e outros direitos previstos na Constituição, a realização de perguntas de caráter político a um suspeito de crime, por parte de agentes policiais, tem um papel intimidatório, afirmam juristas consultados pela Gazeta do Povo. A prática tem sido frequente nas últimas operações realizadas pela Polícia Federal, como o interrogatório ao jornalista português Sérgio Tavares, à família Mantovani, envolvida em confusão com o ministro Alexandre de Moraes no aeroporto de Roma, e a Miguel Fernando Ritter, preso pela participação dos atos de 8 de janeiro.

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O jornalista português Sérgio Tavares, por exemplo, teve as suas convicções políticas questionadas em relação aos atos do 8 de janeiro. Durante a detenção temporária no Aeroporto de Guarulhos no último domingo (25), Tavares ficou calado, por recomendação do seu advogado, ao ser interrogado sobre os comentários que fez em seu canal do YouTube quanto às condutas dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e à segurança de urnas eletrônicas. Depois da repercussão negativa do fato, a Polícia Federal chegou a alegar que o jornalista não teria apresentado um visto de trabalho que, nas condições do jornalista era dispensável, segundo o próprio site do Ministério das Relações Exteriores. O jornalista depois gravou um vídeo desmentindo a PF, apresentando o documento do interrogatório em que constavam as perguntas de teor político e nada sobre o visto.

Ana Luiza Rodrigues Braga, doutora em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP, explica que a Constituição Federal garante que convicções políticas ou filosóficas não podem ser motivos para retirar direitos dos cidadãos (art. 5º, inciso VIII).

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“Esse tipo de questionamento feito por uma autoridade policial que está investigando um suposto ilícito tem um papel intimidatório. Além do indício de que teria sido violado à liberdade de consciência e crença, mais precisamente de convicção política”, analisa Braga. A jurista considera que essas perguntas ferem a liberdade de expressão, pois “se é preciso saber o que a pessoa pensa ou dirá a respeito de um determinado tema para estabelecer a conduta policial que ela receberá, então, indiretamente, ela está sendo intimidada”.

Casal Mantovani foi questionado sobre urnas eletrônicas e intervenção militar

O casal Mantovani, envolvido na confusão com o ministro Alexandre de Moraes no aeroporto de Roma, precisou responder igualmente sobre temas semelhantes aos do jornalista durante depoimentos prestado à Polícia Federal, em julho de 2023. “Indagado se participou, direta ou indiretamente (por intermédio de sua empresa), de alguma manifestação, movimento ou iniciativa que pregava intervenção militar, golpe de estado ou qualquer forma de ruptura institucional o declarante afirma que não”, diz trecho do documento oficial que está no processo do empresário Roberto Mantovani.

Durante o depoimento, a esposa do empresário, Andrea Munarao, precisou responder às mesmas perguntas de viés político feitas ao marido. Entre elas, “indagada se já recebeu mensagens ou conteúdo, por parte de seu marido Roberto Mantovani Filho, de forma privada ou em grupos, relacionado às urnas eletrônicas, a uma suposta fraude eleitoral, ou, de qualquer modo, atacando ou desacreditando o sistema eleitoral, a declarante afirma que não”.

Preso durante os atos do 8 de janeiro, o mecânico e empresário Miguel Fernando Ritter passou por uma nova busca e apreensão depois de ter recebido liberdade provisória. Na ocasião, ele foi questionado pela polícia se possuía algum vínculo político-partidário.

“Um laudo da Polícia Federal mostrou que não havia prova alguma contra ele. Não tinha DNA nos prédios, não tinha imagem, não foi apreendido o celular. Depois, houve uma busca e apreensão dizendo que se tratava de uma nova investigação pois, supostamente, ele seria organizador de um ônibus”, conta Gabriela Ritter, advogada e filha de Miguel Fernando.

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Delegados que atuam fora das atribuições devem ser responsabilizados

“Todas as perguntas que são feitas de forma adjacente, constrangedora e que não tenham relação com os atos apurados, relacionados a uma infração penal, são consideradas uma atuação desviada da autoridade policial”, menciona João Rezende, advogado criminalista e professor de prática penal. Rezende explica que as funções dos delegados, descritas no artigo 144 da Constituição Federal e no artigo 4º do Código Penal, são de apurar as infrações penais e a autoria dos crimes.

“Na prática, os bons delegados têm uma atuação limitada e focada no que diz respeito ao suposto crime cometido. Por outro lado, há delegados que usam o inquérito policial como um instrumento de constrangimento e coação e, de alguma forma, de manifestação política. Isso existe, sim”, relata Rezende.

“Quando a autoridade policial inquire as pessoas a respeito das suas convicções políticas, fazendo essas perguntas mencionadas, o que temos é uma desconexão entre o fato pelo qual elas estão sendo investigadas e suas convicções políticas. Se as convicções deles não podem ser utilizadas para qualquer tipo de restrição em seus direitos, por que isso está sendo questionado por uma autoridade policial?”, pontua Braga.

Para Rezende, caberia uma responsabilização administrativa dos delegados que atuam fora das funções estabelecidas. “Acaba sendo uma atuação que traz uma infração ética-disciplinar porque não está cumprindo as atribuições próprias da carreira e desviando a própria finalidade da investigação policial”, conclui.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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