Ouça este conteúdo
Partidos de esquerda como PT, PSol, Rede, PCdoB e PSB, aliados ao grupo de organizações e entidades Coalizão Negra por Direitos, querem usar a via judicial para que o Estado brasileiro reconheça que há um genocídio de negros em curso no Brasil. Além disso, pretendem aprovar pela mesma via uma série de políticas públicas e normas de combate ao suposto genocídio.
>> Faça parte do canal de Vida e Cidadania no Telegram
Na semana passada, o grupo protocolou uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) fazendo esses pedidos. O texto inclui uma lista detalhada de leis e políticas públicas que deverão ser adotadas para combater o que os autores definem como “uma política de morte financiada e aplicada pelo poder público à população negra”.
Os grupos querem que sejam reconhecidas e sanadas as “graves lesões a preceitos fundamentais da Constituição” que resultam em “violação sistemática dos direitos constitucionais à vida, à saúde, à segurança e à alimentação digna da população negra”. O pedido ainda destaca preocupação com “exacerbado e crescente aumento da letalidade de pessoas negras em decorrência da violência institucional (sobretudo fruto da atuação policial)”.
Segundo o documento, a sociedade brasileira adota estratégias “condizentes com o que se compreende por genocídio”, como a “estigmatização de corpos negros” e um “processo de miscigenação que se origina da violência contra a mulher negra”. Para os autores, há no Brasil fenômenos como o “embranquecimento cultural” e a “proibição de discussões políticas sobre raça”. De acordo com eles, há “diversas estratégias para um mesmo objetivo: a subjugação do povo negro e sua destruição”.
Os grupos também solicitam que o STF obrigue a União a criar e implementar um “Plano Nacional de Enfrentamento ao Racismo Institucional e à Política de Morte à População Negra” em um prazo de um ano. Entre os requisitos mínimos para esse plano, os autores da ação repetem com frequência a necessidade de “enfrentamento ao racismo institucional”, especialmente dentro dos órgãos de segurança pública.
Há exigências bem específicas, que fazem o texto se assemelhar a um projeto de lei, como a de que o STF exija do governo a criação de “centros de referência multidisciplinares para o atendimento de pessoas vítimas do racismo institucional”. Pede-se até a “ampliação do Programa Restaurante Popular”, com “oferta obrigatória de refeições matinais e noturnas” em todo o Brasil – com base no argumento de que a submissão dos negros à fome faria parte do genocídio em curso.
Pedido pega carona no ativismo judicial e na ideologização do STF, diz jurista
O professor Alessandro Chiarottino, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP), enxerga na ação “um conjunto de absurdos, desde a questão da impropriedade de se criar novas políticas públicas por meio de ação judicial, até a própria ideia da existência do genocídio negro no Brasil, que é um absurdo completo”.
O uso da via judicial como atalho para aprovar pautas que teriam pouco apelo no Congresso e na sociedade se tornaram uma prática habitual de partidos de esquerda. Em 2017, por exemplo, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.668, ajuizada pelo PSol, pedia ao STF que adotasse uma interpretação do Plano Nacional de Educação para blindar de críticas e contestações à apresentação, nas escolas, da ideologia de gênero. Para Chiarottino, esse tipo de papel não cabe ao Supremo.
“O STF não é o local para se definir políticas públicas. As políticas públicas devem ser discutidas no seio do Congresso Nacional. Essas iniciativas pegam carona no ativismo judicial do próprio STF. São uma forma até esperta de você tentar impor goela abaixo da cidadania algo que não foi aprovado pelos órgãos democráticos, na esperança de que isso possa ser imposto pelo STF, cuja maioria dos integrantes partilha de uma visão de mundo progressista, tendente à esquerda. Assim, eles esperam impingir de uma forma totalmente não democrática as políticas que eles bem entendem”, afirma.
O especialista teme que os pedidos sejam total ou parcialmente acatados pelo Supremo, mesmo com as diversas inconsistências da ação. “Nos últimos anos, o STF vem se constituindo num quase legislador, numa instituição que abraçou o ativismo judicial com muita força. Através dessa postura, chegou até mesmo a criar novos delitos penais, que era uma coisa que, tradicionalmente, no Estado de direito, ficava reservada ao legislador. Eu acho possível, sim, que o STF responda de uma maneira positiva a esses pleitos. Não acho que isso seja só uma uma tentativa desses movimentos sociais, desses partidos, de ganharem visibilidade. Acho que eles podem conseguir efeitos práticos, mesmo”, diz.
Grupos usam ferramentas retóricas como a palavra "genocídio" para chantagear o poder público
Falando em primeira pessoa sobre os negros brasileiros, os autores da ação dizem que há “um projeto do Estado brasileiro que opera para nos matar, um a um, uma a uma”. “Nos matam à bala, de fome, por descaso, nos torturam, nos aprisionam, nos adoecem física e mentalmente. Arrancam de nós nossos pedaços, nossas alegrias, partes de nossas famílias. Ferem nossos ancestrais, nossa cultura. Destroem nossa terra, nossos quilombos, nosso passado. Invadem nossas casas, instalam o terror, nos tiram o sossego. Não reconhecem nossa existência. Negam a nós um futuro”, dizem.
Na visão do filósofo Paulo Cruz, colunista da Gazeta do Povo, há hipocrisia nesse tipo de discurso. “O sujeito que é pesquisador universitário, que recebe bolsa da Fundação Ford, uns três a cinco contos por mês, está lá falando que o Estado está matando ele. É retórica pura. Não tem materialidade nenhuma. São todos privilegiados. Podem não ser privilegiados economicamente, mas são socialmente privilegiados, porque estão aí falando, protegidos por cátedra universitária, por coletivos… Ninguém está passando fome, porque se estivesse passando fome não teria tempo para fazer manifesto”, diz ele.
Um ponto estratégico do texto da ação, para Chiarottino, é o uso impreciso da palavra “genocídio”. “A linguagem ideológica tem de ser imprecisa, porque senão ela não vai cumprir o seu fim, que é ideológico. Se ela for precisa, vai poder ser desmentida. É importante para eles se expressarem dessa maneira. A legislação nos regimes totalitários – no comunismo, no nazismo – tinha esse caráter de imprecisão. Existiam tipos penais, por exemplo, que falavam em ‘crimes por traição aos interesses superiores da pátria’. É uma linguagem vaga, e aí você coloca dentro o que quiser”, comenta o jurista.
Cruz define essa forma de uso dos conceitos como “filosofia Humpty Dumpty”. “O objetivo é chantagear o poder público, e essa chantagem só é possível mediante a má conceituação. Você pode pegar esses conceitos e jogar para qualquer canto. As palavras podem significar aquilo que você quiser. É a filosofia Humpty Dumpty: o que importa não é o que as palavras significam, o que importa é quem manda – quem manda pode fazer as palavras significarem o que for. Você transforma um problema de um tipo num problema de outro tipo. É um problema de classe social que você transforma num problema de raça”, afirma o filósofo.
Para ele, é bastante claro que não há genocídio de negros no Brasil. “Que existe um descaso em relação à população mais pobre no Brasil, disso eu não tenho dúvida. E que a população mais pobre é a população negra, e que fatalmente ela será mais afetada, disso eu também não tenho dúvida. Agora, isso não é um genocídio. Isso é um descaso. Por exemplo, se eu dou mais ênfase no assistencialismo do que no desenvolvimento das populações mais pobres, é claro que eu vou manter essas pessoas numa condição de dependência e privação. Não há genocídio. As pessoas morrem por causa do crime, do tráfico de drogas, das facções criminosas… Elas estão submetidas à vulnerabilidade por causa do crime. Há um descaso, que não está direcionado para a população negra propriamente, mas para a população mais pobre. Se a população mais pobre é a população negra, ela vai ser a mais afetada”, observa Cruz.