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Deus é Criador e, ao chamar os seres humanos ao rela­cionamento consciente, ao torná-los sua imagem e se­­melhança, partilha com os humanos o poder de criar. Por isso o ser humano se torna parceiro da criação, se torna "co-criador", mas não pode se atribuir arrogan­temente essa função, pois ela foi concedida por Deus, e não conquistada por mérito próprio.

Quando um cientista anuncia uma nova descoberta no âmbito das ciências biológicas, como a criação de uma célula controlada por genoma sintético, anunciada na quinta-feira, muitas pessoas indagam: estão eles brincando de Deus? A reflexão que deve ser feita é vasta e complexa: qual é o papel do ser humano na criação? Quem é este ser humano que tem habilidade para manipular tão significante poder?

Aqui estamos, de fato, diante de uma questão extremamente rica para a tradição cristã. Deus é Criador e, como criador, ao chamar os seres humanos ao relacionamento consciente, ao torná-los sua imagem e semelhança, partilha com os humanos o poder de criar. Por isso o ser humano se torna parceiro da criação, se torna "co-criador". É exatamente por ser co-criador que o ser humano tem este poder fantástico de manipular a matéria, de direcionar o processo de desenvolvimento e da própria evolução. Isso faz dele uma espécie única entre as espécies – mas os seres humanos não podem atribuir-se arrogantemente a função de co-criadores, pois ela lhes foi concedida por Deus, e não conquistada por mérito próprio.

Avaliando o ser humano como "co-criador criado", assume-se em princípio uma atitude positiva frente às ciências e a todo o avanço em biotecnologia. Uma atitude positiva não significa que tudo e qualquer coisa que seja feita pelas ciências será avaliado positivamente, e sim que de fato o ser humano tem a missão de desvendar os mistérios da natureza, e ao desvendar a realidade impõe-se o compromisso de uma intervenção. De modo algum a pessoa está roubando o espaço de Deus na criação quando inventa novas técnicas para conhecer e intervir na criação; pelo contrário, ela está apenas sendo fiel à missão dada a ela pelo próprio criador, exercendo algo inerente ao seu ser como um "ser criado co-criador".

A ciência não pode ser vista nunca como uma adversária do ser humano. A ciência é uma decorrência daquilo que o ser humano é, da sua potencialidade criativa, querida por Deus. Cada nova técnica inventada pode ser vista como um desdobramento da fidelidade humana ao compromisso de continuar sendo co-criador. Se a técnica servir para continuar cuidando da criação, curando a dor de cada ser vivo, assim as tecnologias são dons divinos.

Mas a teologia aponta que há algo mais a ser dito. A criatividade humana e o controle sobre a natureza devem ser exercidos em resposta a este chamado divino, deve imitar os modos divinos e se colocar a serviço da causa divina. Numa perspectiva cristã, estamos aqui diante da problemática da existência humana e do agir humano, entre a liberdade e a dependência – liberdade para agir e dependência de Deus para agir corretamente. Sem Deus a liberdade humana se absolutiza, se torna um valor em si mesmo, e a ação que nasce de tal liberdade é confusa, justifica-se por si só, não tem direção nem coerência.

Quando alguém denuncia que os cientistas estão "brincando de Deus", podemos dizer que é exatamente esta a missão de todo ser humano e também do cientista, pois o ser humano é chamado a se assemelhar a Deus. Se nós "brincamos de Deus" como Deus o deseja, então trabalhamos por uma sociedade onde cada humano se sentirá digno do amor de Deus. O ser humano é chamado a se assemelhar a Deus, se tornar divino, mas não se endeusar, ser adorado como Deus. Assemelhar-se a Deus é participar da vida divina; endeusar-se é querer ser divino sem Deus. O problema não é quando os cientistas "brincam de Deus", o problema é quando eles brincam sem Deus.

Mario Antonio Sanches é professor de Teologia e Bioética no Mestrado em Teologia da PUCPR, autor do livro Brincando de Deus – bioética e as marcas sociais da genética, publicado pela Ave Maria

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