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Ao sair da escola, crianças e adolescentes “pulam trem” na Vila Audi, na última quarta-feira. Ritual se repete duas vezes por dia | Henry Milleo/ Gazeta do Povo
Ao sair da escola, crianças e adolescentes “pulam trem” na Vila Audi, na última quarta-feira. Ritual se repete duas vezes por dia| Foto: Henry Milleo/ Gazeta do Povo

Cenas da vila

Manobra de trens deixa moradores em polvorosa

Por volta das 7 horas da manhã e das 5 horas da tarde – horários de "pico" para pais e mães que levam seus filhos à escola –, vilas como Audi, União, Ferroviário e Icaraí são fechadas para o tráfego. Nesses dois horários, os trens da ALL fazem manobra na região, parando por 30 minutos, impedindo a passagem para o lado em que está a maior parte das escolas.

Para não andar cerca de um quilômetro até a próxima entrada, os moradores, na maioria crianças e adolescentes, se apoiam uns nos outros e pulam os engates que unem os vagões. Não é tudo. Como são dois trilhos, a chegada do segundo comboio só faz piorar. Muita gente fica entre os trens, verdadeiro corredor da morte.

Como apelar para a grita de pouco vale, a população apela para a engenharia. Todo mundo tem um palpite sobre como poderia ser a passarela que permitiria chegar em casa sem ter de se sentir um figurante dos faroestes. Sem falar na agonia de ver os guris passarem por baixo dos vagões. De nada adianta lembrar o morador que morreu esmagado. Paciência: "pular o trem" virou uma necessidade, mas também um símbolo da forma de vida que se instalou na beira das cavas do Iguaçu.

  • Pontes de madeira se somam aos obstáculos de locomoção
  • Coleta é atividade principal no bolsão: 70% de informalidade
  • Na saída da escola, entre 17 e 17h30, crianças e adolescentes de colégios como o Estadual Aníbal Khoury têm sua vila
  • Muitos meninos aproveitam a parada para passar por baixo. Ou, literalmente, por cima do trem. O perigo é quando o comboio começa a se movimentar, sem apitar
  • Casal com filhos repete o ritual diário de
  • Há quem não tenha mais pernas para subir nos engates, em geral bastante sujos de poeira e de óleo.
  • Na tarde da última quarta-feira, cerca de 80 pessoas se aglomeravam, esperando que o trem saísse. É prova de obstáculos: os moradores passam por ponte de madeira sobre a valeta, sobem o morro do trilho e sobem nos engates
  • Cenas de uma maratona. Trem fica parado 30 minutos. Nesse espaço de tempo, vem um segundo veículo, fechando duplamente a passagem
  • Estudantes, pais e operários
  • Chega o segundo trem. Quem fica entre os dois se vê num verdadeiro
  • Crianças parecem desconhecer o perigo. De nada adianta falar da morte que ocorreu ali

A semana que passou foi agitada no "Uberaba de Baixo", como é chamada a região de Curitiba que fica espremida entre a BR 277, a linha do trem, as cavas do Rio Iguaçu, pontes que balançam e uma valeta de dar medo. As 4,4 mil crianças da região – vinculadas a 11 espaços de atendimento, entre centros de educação infantil, escolas e ONGs – faziam reproduções da Bandeira Nacional em papel crepom, tarefa para as comemorações da Semana da Pátria. Numa das instituições, a Ossa (Obra Social Santo Aníbal), 150 pequenos moradores saíram às ruas poeirentas da Vila União Ferroviária com cartazes, numa declaração de amor ao Brasil.

Quando crescerem, é provável, esses meninos e meninas vão descobrir que naquelas bandas o 7 de Setembro é importante, sim, mas que há outras três datas que não podem esquecer: a marcha do movimento sem teto que promoveu a ocupação da região, em 1998; a chacina de outubro de 2009, que vitimou oito pessoas – incluindo um bebê de 5 meses; e uma outra ocupação, em 1.º de março de 2012, dessa vez promovida não pelos órfãos do sistema habitacional, mas pela Polícia Militar, que declarou a parte mais pobre do velho Uberaba a primeira Unidade Paraná Seguro, a UPS, versão local da Unidade de Polícia Pacificadora, a UPP carioca.

INFOGRÁFICO: Veja os índices socioeconômicos do bolsão Audi-União

Slideshow: Veja algumas fotos da região do Uberaba e comunidade

A escolha da região para iniciar a "era UPS" em Curitiba não causou espanto. A área formada por 15 vilas, mas conhecida sobretudo por duas – a Audi e a União – tem lugar cativo nos rankings locais de violência. Apenas em 2011, o Uberaba – o de Cima e o de Baixo – foi cenário de 53 homicídios, quase 10% do grosso da criminalidade na capital paranaense. Desses 53 mortos, pouco mais da metade vivia em vilas como Icaraí, Ferroviária e Marumbi, para citar três áreas do bolsão. É como se a cada mês dois mortos fossem encontrados numa área minúscula, com dois quilômetros em linha reta, à mercê de serem en­contrados pelas crianças a caminho da escola. O que de fato acontece. "Os meninos chegavam dizendo ter visto um corpo", lembra Eliete Werner, coordenadora da ONG canadense Voice For Change, que atua há sete anos na comunidade.

O modelo de "violência con­centrada" do bolsão serviu como uma luva para um laboratório de segurança pública. Se funcionasse ali, a experiência poderia ser replicada. Em seis meses de ocupação policial, contudo, o "caso Audi-União" se mostrou muito mais resistente do que, suspeita-se a boca pequena, parecia a princípio. Não faltou investimento público no local, convertido num campo de obras, mas a violência, qual febre, às vezes sobe.

Nesses 180 dias de UPS, 45 policiais circularam dia e noite, aos olhos dos quase 20 mil moradores. Flagrar a ronda passando no portão de casa virou rotina. O poder municipal – que acentuou sua presença na região a partir de 2007, com verbas federais do Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC – apertou ainda mais o passo, inaugurando unidades de educação infantil e iniciando a construção de um espetacular Centro da Juventude. Ao todo, esses investimentos da prefeitura são na casa dos R$ 51 milhões.

Ainda assim, dos 28 homicídios registrados no Uberaba de janeiro a agosto deste ano, 17 ocorreram na área da UPS, segundo dados da Delegacia de Homicídios. O efeito desses números renitentes sobre o moral da UPS e dos moradores é flagrante. "Em julho-agosto, 15 alunos deixaram a escola. É comum. Quando há picos de violência, os pais ficam assustados e mudam de bairro", conta a educadora Lisiane Gastaldim, 34 anos, da Escola Municipal Maria Marli Piovezan, único diretor de escola dentre os procurados que aceitou falar com a reportagem da Gazeta do Povo.

Diante das muitas recusas em tratar da pacificação, pode-se deduzir que o Uberaba de Baixo permanece um território de medo, à revelia da autoridade policial. Mas é uma meia verdade. Em paralelo, há gente como a dona do bazar da Rua Helena Carcereri Pierkaski, a "Avenida Brasil" do bolsão, que fecha as portas do comércio assim que avista a imprensa, há quem declare entusiasmo com o projeto e use os dedos para contar os benefícios alcançados pela comunidade de março para cá. "Dá para ir à igreja e receber amigos, sem preocupação. A viatura sempre passa", festeja José Aparecido Dudu Silva, do Conselho de Segurança do Uberaba.

Uma pesquisa trimestral da Regional Cajuru – à qual pertence o Uberaba – junto a 300 moradores do bolsão apontou que 74% identificam o que seja uma UPS, o que é uma proeza numa região com índices educacionais baixíssimos: 65% da população têm fundamental incompleto. E 97% aprovam a iniciativa. É a opinião de quem sai para trabalhar e enfrenta a geografia ingrata das vilas – nas quais só se pode entrar por duas vias, isso se os comboios não estiverem estacionados nos trilhos, fechando o caminho. O carro da polícia, nesse cenário, é um refresco.

Resta saber se as rondas darão conta dos labirintos que fizeram do Uberaba de Baixo um campo de guerra. Nascido de forma organizada, nos anos 1990, o espaço se degradou, redundando na tragédia de 2009, o "dia da chacina". Há seis meses, um espetáculo de helicópteros e de cavalaria deu a entender que esse capítulo tinha acabado. Mas algo resiste em ceder. Resta saber o que pode ser mais forte do que uma UPS com 45 policiais a postos, podendo chegar a 100 em horas de reforço. Tudo indica que o Audi-União não é tão pequeno quanto parece.

Bolsão Audi-União - linha do trem

Estação Uberaba- 6 meses de UPS

De hoje a terça-feira, a Gazeta do Povo publica série de reportagens sobre o Bolsão Audi-União, primeira Unidade Paraná Seguro. Leia amanhã: religiosos, líderes, representantes de ONGs estrangeiras e populares combatem a violência e a pobreza nas vilas da região.

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