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Expectativa de vida fora do útero não é consenso

Nem mesmo dentro da comunidade médica há consenso sobre as chances de vida extrauterina de um feto que apresente anencefalia. O médico e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Rodolfo Acatauassú Nunes explica que o julgamento se baseia na tese de que as crianças com essa malformação não têm possibilidade de vida extrauterina e teriam por isso uma situação especial. "No entanto, essa tese não tem fundamento na literatura médica, porque, embora seja pouco frequente, ela pode cursar com uma sobrevida de semanas, meses ou até mais de um ano. Dessa forma não é possível dizer que não há a menor possibilidade de vida extrauterina", relata.

De acordo com o professor, essas crianças podem ter alta do hospital, apresentar movimentos, deglutição e respiração espontâneas, ou seja, conseguem viver sem o auxílio de equipamentos. Ele ainda conta que há casos em que os bebês chegam a ter um certo grau de interação com seus genitores. "A mãe de uma criança que viveu um ano e oito meses relata que ela se acalmava ao ouvir sua voz, mas não se acalmava com a voz de um estranho, o que denota que talvez possa existir um certo grau de consciência primitiva."

Já para o médico e professor de ginecologia da Faculdade de Medicina de Jundiaí, Thomaz Gollop, a interrupção da gestação de um feto com anencefalia não deveria ser considerada um aborto, já que não há perspectiva de sobrevida do bebê. O termo correto, segundo ele, é antecipação do parto. "Não estamos discutindo o aborto de um feto normal. No caso da anencefalia, a situação é mais dramática", destacou.

Sem morte cerebral

De acordo com a coordenadora da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) Neonatal do Hospital São Francisco, Cinthia Macedo Specian, a anencefalia é uma das principais má-formações neurais detectadas em fetos em todo o mundo. Para ela, o feto anencéfalo, ao contrário do que considera o Conselho Federal de Medicina (CFM), não deve ser considerado um natimorto cerebral. "Ele tem um comprometimento severo de um órgão muito importante, mas não posso classificá-lo como um indivíduo que está em morte encefálica. Estudos mostram que todos eles têm respiração espontânea, mais de 50% conseguem mamar, sugar e deglutir o leite. Pacientes com morte encefálica não deglutem nem a saliva e não têm movimento ocular", explicou.

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Casos

Mesmo sob incerteza jurídica, juízes concedem liminares para aborto. Veja quatro casos recentes de decisões favoráveis ao aborto de fetos anencéfalos:

Rio de Janeiro, 2012

Desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro decidem que Jaqueline Alves de Lima pode interromper a gravidez de um feto de seis meses. Para ele, havia risco à liberdade física da paciente e violação ao princípio da dignidade humana.

Rio Grande do Sul, 2011

O juiz Leandro Raul Klippel alega que o aborto vai preservar a saúde física e psicológica de uma gestante – e que não há viabilidade de vida –, por isso autoriza o procedimento.

São Paulo, 2011

A Defensoria Pública de São Paulo consegue liminar para uma mulher com gestação de seis meses. Os médicos não indicavam possibilidade de tratamento para a malformação e que a gravidez traria riscos físicos e psicológicos à mulher.

Minas Gerais, 2010

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais autoriza o aborto de um feto anencéfalo. A gestante alegava que havia "anencefalia e ausência de calota craniana, o que resulta em probabilidade de morte em 100%".

Fonte: das agências.

Após oito anos de debates acalorados que envolveram a comunidade médica, jurídica e religiosa, o Supremo Tribunal Federal (STF) deve julgar hoje a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) sobre a realização de aborto em caso de fetos anencéfalos. A ação – proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) em 2004 – é bastante emblemática, pois coloca em discussão dois pontos que estão longe de ser unanimidade: o direito à vida do feto com malformação encefálica e o direito da mulher de optar por levar uma gravidez adiante ou não, mesmo sabendo que a criança pode viver por poucos instantes após o nascimento.

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Hoje, de acordo com o Código Penal brasileiro, o aborto não é punido apenas em duas situações: quando a gravidez for resultado de estupro ou quando houver risco à vida da mãe. Mulheres que desejem interromper a gravidez de feto anencéfalo precisam recorrer à Justiça, cuja decisão pode levar meses (veja quadro ao lado).

Votos

O resultado do julgamento é imprevisível, já que a maioria dos ministros ainda não se manifestou sobre o tema. O que se sabe é que o relator da ação, ministro Marco Aurélio Mello, deve votar a favor da interrupção da gravidez nesses casos, pois já concedeu liminar a pedido de gestante para realizar o aborto de feto que apresentava malformação congênita. Também se espera que o ministro Antonio Dias Toffoli se declare impedido tendo em vista que na época em que era advogado-geral da União apresentou parecer favorável à interrupção da gravidez nesses casos.

O ministro Carlos Ayres Britto declarou apenas que o julgamento será um "divisor de águas no plano da opinião pública." Para ele, o julgamento da ação será rico em reflexões e intuições. "Ele é divisor de águas no plano da opinião pública, repercute muito no campo da religiosidade, da saúde pública", disse Ayres Britto.

O jurista Ives Gandra Martins, doutor honoris causa na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e diretor-presidente da União dos Juristas Católicos de São Paulo, afirma que essa é uma questão eminentemente jurídica e que apresenta três pontos cruciais. "Consideramos que o Supremo não tem competência para isso, porque é criação de nova hipótese de impunidade para o aborto, e só o Congresso Nacional pode legislar."

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Além disso, segundo ele, o art. 2.º do Código Civil declara que os direitos do nascituro são assegurados desde a concepção. "Seria um absurdo dizer que menos o direito à vida seria assegurado. Se as pessoas considerarem que esse direito só é assegurado após o nascimento, então o Código Civil é inconstitucional. E ele foi feito por ministros do Supremo."

Segundo ele, há ainda uma outra razão jurídica para não se permitir a interrupção da gravidez nem mesmo nesses casos, que é o fato de o Brasil ser signatário do Pacto de San José da Costa Rica, que preserva a vida desde a concepção.

Já para a consultora jurídica especializada em Direito Médico da Saúde e membro da Comissão de Direito da Saúde da OAB-SP Sandra Franco, a negativa do STF a essa ação representaria um adiamento de uma decisão que tem de ocorrer para acompanhar a realidade da evolução da medicina e das mulheres na sociedade.