Existe a convicção corrente em alguns meios sobre a existência de uma “indústria” relacionada à promoção de processos contra profissionais da área da saúde (banalização do dano moral). Em geral, o argumento sustenta-se sobre a impressão de que o paciente, movido pela emoção ou má-fé, processa o profissional sem as devidas evidências constituídas. Entretanto, os mesmos defensores deste argumento também não apresentam dados sobre a real existência da suposta indústria do erro médico/odontológico, salvo a indicação de alguns casos particulares de ações propostas por pacientes com pedidos julgados improcedentes pela justiça.

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Na observação empírica do mercado (natureza das publicidades relacionadas ao direito médico), bem como na análise de dados resultantes de pesquisas quantitativas a motivação de ações envolvendo profissionais e pacientes parece estar, na sua maioria, relacionada a variáveis técnico-administrativas das clínicas ou devido à perda do vínculo de confiança entre as partes.

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A ausência de evidências não permite afirmar com base científica que o aumento da frequência de processos contra profissionais da área da saúde tem relação exclusiva com ações deliberadas de promoção de conflitos. Neste sentido, uma análise exploratória do contexto em que o fenômeno ocorre pode auxiliar na construção de hipóteses para explicá-lo.

O sistema jurídico brasileiro fundamenta-se no Direito Europeu Continental, que procura regulamentar os fatos antes das suas ocorrências, sua base são as leis escritas (não as jurisprudências). Nos países como o Brasil, em que as desigualdades representam um grande problema social, o direito assume a função de compensar esta distorção de maneira mais imediata que a execução de reformas político-educacionais, por meio do chamado direito compensador. Significa, que de algum modo, leis com características de parcialidade, como o Código de Defesa do Consumidor (CDC), procuram proteger a parte vulnerável, no caso, o paciente, das relações sociais desiguais.

Assumindo o CDC como uma conquista social, logo para benefício de profissionais e pacientes, e reconhecendo o dever do profissional da saúde em prestar as melhores diligências para alcançar o melhor desfecho clínico. Porém sem garanti-lo (pois sua responsabilidade é, em regra, de meio), então cabe a este adotar as melhores práticas técnicas e administrativas para gerir o risco processual, fundamentadas em três princípios:

1- Sustentação científica da técnica – considere a situação em que o paciente vai ao médico e recebe a recomendação de determinado tratamento. Preocupado com sua condição, procura uma segunda opinião e para sua surpresa esta é distinta da primeira. Qual dos tratamentos adotar? Qual profissional está empregando as melhores práticas clínicas? Neste sentido, cabe ao profissional da saúde recomendar as intervenções baseadas nas melhores evidências para o caso individual do paciente . Isto porque a não utilização do tratamento com maior nível de evidência científica pode, em tese, gerar a responsabilização civil por perda de uma chance, se a opção não apresentada (informada) ao paciente, tecnicamente viável e aprovada pela comunidade científica gerar o desaparecimento de um benefício futuro para a saúde ou qualidade de vida deste.

2- Boas práticas de gestão – a gestão de risco processual é um elemento do processo administrativo das clínicas e deve ser fundamentada em três documentos mínimos: contrato de prestação de serviços, plano de tratamento e ficha clínica. Estes pactuam os direitos e deveres das partes, os riscos, limites e benefícios do tratamento e o estado inicial do paciente, respectivamente. É dever do profissional documentar e bem informar o paciente antes de qualquer intervenção, intenção que decorre essencialmente do Princípio da Boa-fé, consagrado pelo CDC. Nesse contexto, já existe decisão judicial definindo que a omissão ou pouca clareza da informação transmitida ao paciente sobre os procedimentos de saúde gera o dever de indenizar, em particular se ocorrer dano.

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3- Humanização do atendimento – diferente da postura de países nos quais a medicina defensiva (aquela relacionada à contratação de seguros de responsabilidade civil e exigência de exames clínicos para fins de proteção profissional) coloca em posições opostas profissionais e pacientes, a prática de baixo risco é uma filosofia que recomenda a humanização do atendimento. Entende-se que o paciente sempre está numa situação de vulnerabilidade física, emocional ou de informação frente ao tratamento de saúde. A humanização do atendimento está relacionada à postura ética de respeito ao outro.

Não obstante a má intenção por parte de alguns pacientes na promoção de litígios, bem como a postura defensiva de outros profissionais quando solicitam exames com fins exclusivos de proteção contra ações possam ser variáveis que influenciam a frequência de processos envolvendo a área da saúde, estas variáveis ainda encontram-se no campo das hipóteses. Mais coerente assumir que, até a produção de evidências consistentes, a gestão de risco processual por meio de medidas simples, preconizadas pela ética e pela ciência, podem ser efetivas para reduzir a frequência de conflitos entre profissionais e pacientes, bem como fortalecer a natureza primária das profissões da área da saúde, o tratamento humano das pessoas.