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Em artigo dessa semana, o articulista Cláudio de Moura Castro tratou em sua coluna do tema “Profiling”. Palavra da língua inglesa que significa um critério de decisão subjetivo, levando o indivíduo a decidir baseando-se não em uma racionalidade perfeita, mas em um impulso originado e decorrente de seus valores pessoais. O exemplo emblemático dado pelo articulista foi o do professor de Harvard que, sem a chave de sua casa, estava em seu jardim, tentando arrombar a janela, quando foi preso por um policial americano, não obstante todos os seus argumentos. Um detalhe chamava a atenção: o policial era branco e o dono da casa era negro. Vários exemplos podem ser extraídos do cotidiano: a) o fiscal da alfândega que examina determinada pessoa porque a aparência da mesma se enquadra no perfil de “muambeiro” que o fiscal tem em mente; b) o administrador que seleciona o estagiário pela aparência, por ser a aparência um critério que ele possui como indício de competência; c) o motorista que seleciona suas caronas por um determinado perfil, excluindo outros perfis, geralmente para não correr risco de ser assaltado; d) o agente de aeroporto que revista pessoas que se enquadrem aparentemente no perfil de terrorista, ainda que esteja longe de ser um.

Não menos interessante foi a entrevista, dada pelo psicólogo Walter Mischel, nas páginas amarelas do mesmo periódico (Revista Veja). Esse renomado estudioso do comportamento humano, idealizou e realizou o experimento chamado “O Teste do Marshmallow”, lançando agora livro com o mesmo nome. Referido teste tinha por objetivo estudar os mecanismos do auto-controle. Aprofundando os estudos a partir da realização do teste, Walter Mischel defende que o auto-controle é conseguido quando a região cerebral conhecida como córtex pré-frontal consegue se sobrepor aos impulsos instintivos emanados do sistema límbico. Um indivíduo sem o devido auto-controle geralmente é refém de impulsos do sistema límbico que prevalecem sobre a racionalidade radicada no córtex pré-frontal. Por outro lado, um indivíduo ponderado, com grande auto-controle, consegue suprimir esses impulsos instintivos e reagir com a racionalidade típica da análise feita a partir do córtex pré-frontal.

Conjugando-se todas as informações, é possível se concluir que geralmente as decisões conhecidas como profiling decorrem de impulsos instintivos que se sobrepõem à racionalidade. Não se trata de algo incomum, vez que estas decisões são comuns à própria vida em sociedade, necessárias, desde tempos imemoriais, à própria sobrevivência do indivíduo. Quando o motorista evita dar carona a alguém que, em sua concepção, aparenta ser uma pessoa perigosa, age com instinto de preservar a si e ao seu patrimônio. O mesmo acontece com o empregador que rejeita um empregado ao julgá-lo por sua aparência desleixada, por temer que esse desleixo seja uma característica de sua forma de trabalhar.

Obviamente todas as decisões tomadas dessa forma podem estar completamente erradas. Aquele que pede a carona pode não ser perigoso como aparenta ao motorista, tampouco o empregado pode não ser desleixado, como assim pareceu ao empregador. Se em circunstâncias assim tais decisões já se mostram questionáveis, muito pior se os critérios de decisão impulsiva tenham origem em preconceitos de raça, sexo, cor, religião ou qualquer outra forma abominável e ilegítima de preconceito.

Esses julgamentos impulsivos, muitas vezes originando ações na realidade, são muito comuns em atividades que demandem ações rápidas e respostas imediatas, como nas áreas segurança e policiamento, assim como, no cotidiano, em situações como o do motorista que se vê na contingência de aceitar um terceiro em seu veículo ou do dono do estabelecimento comercial que é demandado a atender alguém suspeito ao final do expediente.

Se por um lado a humanidade, por sua própria natureza, não pode prescindir desses julgamentos impulsivos, por outro lado a sociedade, na medida em que nivelou alguns valores fundamentais, também não pode permitir que as ações ilícitas decorrentes desses impulsos não sejam adequadamente punidas. O que aconteceu com o professor de Harvard, levando-o à prisão, também aconteceu ao brasileiro que foi assassinado por policiais londrinos, ocupados com a caça aos terroristas, por ter pulado uma catraca do metrô.

Em matéria jurisdicional, essa matéria também tem importância. Os juízes são pessoas que diariamente tomam decisões que afetam a vida de outras pessoas. Condenar ou absolver réus, dividir patrimônio de casais que estão se divorciando, decidir a guarda dos filhos, conceder ou indeferir pedidos de indenizações por danos morais.

A sociedade espera que os juízes, como de resto todos os servidores públicos, pautem suas decisões pela justiça e com rigor lógico, sempre atento às provas dos autos. Não se pode conceber, em qualquer civilização, a existência de juízes que possuam o poder de decidir arbitrariamente. Como os seres humanos são naturalmente falíveis, a sociedade impõe regras que devem ser observadas pelos juízes ao proferirem decisões. Dentre tantas regras, duas são as mais importantes: o juiz deve oportunizar o contraditório e deve fundamentar suas decisões (com a necessária liberdade para apreciação da prova). Para que erros não sejam perpetuados, as decisões judiciais ainda podem revisadas por outros juízes, geralmente nos Tribunais.

Em que pese o fato de existirem tantas regras, a liberdade de consciência do julgador, ao proferir sua decisão, é uma garantia da sociedade. A decisão judicial não é um exercício matemático, com decisões pré-programadas. Cada juiz, como personalidade única, possui seus critérios de decisão, lastreados principalmente em sua formação familiar, cívica, cultural, religiosa, entre tantas outras influências que pode sofrer desde a mais tenra infância.

Em certa ocasião, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Eros Grau, ao proferir seu voto em um julgamento sobre lei goiana que tratava das taxas judiciais (STF, ADI nº 3826/GO, julgamento em 20.08.2010) fez referência ao entendimento do Ministro Marco Aurélio, afirmando que: “É bem verdade que o Ministro Marco Aurélio está coberto de razão ao dizer, na ementa do RE n. 140.265, cogitando do ofício judicante e da postura do juiz, que, “[a]o examinar a lide, o magistrado deve idealizar a solução mais justa, considerada a respectiva formação humanística. Somente após, cabe recorrer à dogmática para, encontrado o indispensável apoio, formalizá-la”.”

Não se trata, como pode parecer à primeira vista, em um julgamento impulsivo. Trata-se de dizer que, segundo sua própria formação, o juiz percebe a solução mais justa para o caso e depois se encarrega de racionalizá-la. E assim é porque o julgador, ao se deparar com o processo, não é uma folha em branco, neutro de valores. O julgador deve ser imparcial, ou seja, não prestigiar nenhuma das partes, mas não quer dizer que seja neutro, pois ele carrega em si seus valores, sua historicidade, que fomentam a percepção da sua solução justa para o caso. O juiz é alguém de seu tempo e deve conhecer as leis e a sociedade. Como disse Calamandrei, “não basta que os magistrados conheçam com perfeição as leis tais como são escritas; seria necessário que conhecessem igualmente a sociedade em que essas leis devem viver”.

Quando o julgador se depara com questões sensíveis a valores sociais, como aborto, união homoafetiva, alimentos transgênicos, tratamento médico forçado a pessoas de determinada religião, etc, muitas vezes seus impulsos e sua formação levam-no a idealizar uma decisão. Muitas vezes - embora não seja uma regra válida universalmente -, dada a necessária e fundamental liberdade para fundamentar e decidir, o julgador racionalizará a decisão idealizada. Esse traço, inclusive, não é uma característica incomum, pois geralmente as pessoas racionalizam as decisões impulsivas tomadas, procurando justificá-las. E, por outro lado, nada objetivamente indica que uma decisão idealizada devidamente racionalizada não seja justa.

Nesse sentido, o filósofo alemão Hans Georg Gadamer alude à expressão “Reabilitação do Preconceito”, no sentido de que “é só o reconhecimento do caráter essencialmente preconceituoso de toda a compreensão que pode levar o problema hermenêutico a sua real agudeza” (Verdade e Método, I, p. 14). O julgador, como qualquer outra pessoa, está condicionado às suas experiências, sua historicidade, seus preconceitos, que se tornam condições inexoráveis do julgamento, pois formam o horizonte que o limita. Existem, porém, preconceitos legítimos e preconceitos ilegítimos. E é a partir da racionalização da decisão idealizada que será possível separar o que pode ser considerado e o que não deve ser considerado, levando à revisão da decisão, seja pelo próprio julgador, seja pelos tribunais superiores.

Não por outra razão, adverte Calamandrei que “a fundamentação da sentença é sem dúvida uma grande garantia de justiça, quando consegue reproduzir exatamente, como num levantamento topográfico, o itinerário lógico que o juiz percorreu para chegar à sua conclusão, pois, se esta é errada, pode facilmente encontrar-se, através dos fundamentos, em que altura do caminho o magistrado desorientou”.

Considerando a complexidade do tema e a importância das decisões, já que afetam a vida de pessoas, cumpre ao Poder Judiciário velar para que os concursos para ingresso na carreira da magistratura sejam sempre muito criteriosos, especialmente com profunda exigência de conhecimento jurídico mas, principalmente, com atenção rigorosa à vida pregressa, formação humanística e análise psicológica do candidato. E como a prática da racionalidade decisória sempre pode ser aprimorada e aperfeiçoada, convém aos tribunais o desenvolvimento de uma constante política judiciária de observação, apoio e estímulo para que se fomente essa prática. A sociedade, para se desenvolver, precisa de um Judiciário preparado para enfrentar os desafios decisórios, uma vez que nele reside a última fortaleza de defesa do cidadão contra a ofensa aos seus direitos.

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