Prática secular e arraigada, o Brasil é o maior país do mundo a utilizar o voto obrigatório. Além da Argentina, Austrália, Bélgica, México e Suíça, acompanham o Brasil na obrigatoriedade do voto países como Bolívia, Costa Rica, Equador, República Democrática do Congo, Líbano, Grécia, Guatemala, Panamá, Peru, República Dominicana, Turquia, Uruguai e mais alguns poucos.

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Os dados do primeiro turno das eleições municipais mostraram um grande percentual de eleitores que não foram às urnas ou anularam seus votos. Analisando-se os dados do segundo turno, verifica-se que cerca de 21,6 % dos eleitores simplesmente não apareceram para votar nas 57 cidades em que houve eleição, algo como 7,1 milhões de pessoas. Somados aos que votaram em branco ou anularam os votos, o percentual chega a 32,5% do eleitorado que se recusou a escolher quaisquer das pessoas que se dispuseram a administrar o dinheiro público nas referidas cidades.

Consoante o art. 14, § 1º da Constituição Federal, o alistamento eleitoral e o voto são obrigatórios para os maiores de dezoito anos e facultativos para os analfabetos, os maiores de setenta anos e os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos.

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Na teoria, ao Estado cabe atuar como um tutor do cidadão, obrigando-o a exercitar seu direito/dever de participar da vida pública, como forma de amadurecer a consciência cívica da população. Na prática, o Brasil adotou o voto facultativo para a maioria dos cidadãos e, principalmente, para os de menor poder aquisitivo.

“O fato é que os cidadãos de menor renda praticamente não utilizam os serviços públicos aos quais a lei condicionou o acesso por intermédio da regularidade da situação eleitoral”

O Código Eleitoral (Lei nº 4.737/65) prevê que o cidadão que não votar, deve comparecer ao cartório eleitoral e justificar sua ausência ou pagar uma multa, atualmente fixada em R$3,51 (três reais e cinquenta e um centavos). O pagamento da multa não é simples, pois demanda ir ao cartório, retirar a Guia de Recolhimento (GRU), realizar o pagamento junto ao banco credenciado e levar o comprovante de quitação ao cartório. Não existe limitação para o número de justificativas ou pagamento de multa, mas a falta de justificativa em 3 abstenções levará ao cancelamento do título. Uma vez cancelado, o título de eleitor, basta comparecer ao cartório eleitoral para regularizar a situação e obter um novo título.

Cancelado o título, em tese o cidadão ficará impossibilitado de realizar algumas atividades, tais como: participar de concursos públicos, candidatar-se a cargos públicos, participar de licitações públicas, matricular-se em faculdades públicas e obter o passaporte, caso ainda não o tenha. Apesar de se divulgar que também existiria a vedação de contrair empréstimo de bancos públicos, a simples pesquisa nas páginas de internet dos principais financiamentos populares, inclusive financiamentos imobiliários, mostra que não se exige a apresentação de título de eleitor para contratação do financiamento.

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Para os cidadãos de maior renda, a burocracia representa a maior sanção para quem não vota. Caso não cumpra os trâmites burocráticos para justificação ou pagamento da multa, o cidadão poderá perder o título e ficar impossibilitado de acessar determinados serviços sempre almejados pela classe média e alta, como obtenção e renovação de passaportes, matrícula nas universidades públicas e realização de concursos públicos.

Para os cidadãos de menor renda, as restrições impostas pela lei eleitoral revelam-se inócuas. Seja pela ausência de uma efetiva distribuição de renda, seja pela própria disfuncionalidade da relação entre o sistema econômico e o de ensino público, o fato é que os cidadãos de menor renda praticamente não utilizam os serviços públicos aos quais a lei condicionou o acesso por intermédio da regularidade da situação eleitoral.

Entre aqueles realmente mais pobres, que desenvolvem atividades informais para sobreviver ou realizam trabalhos sem qualquer especialização, e mesmo os pequenos agricultores e trabalhadores rurais, não existe demanda significativa por passaportes, inscrição em concursos públicos ou matrículas em universidades públicas.

À falta de estímulos efetivos para que o eleitor cumpra seu dever cívico, resulta que muito provavelmente grande parte do eleitorado que se absteve de comparecer às urnas compõe-se de cidadãos de baixa renda e que não são afetados pelas restrições legais, pois os serviços públicos interditados já lhes eram inacessíveis. Não causa espanto, portanto, que o contingente de eleitores que deixam de votar aumenta a cada ano. E certamente o contigente de títulos cancelados deve seguir na mesma proporção.

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*Anderson Furlan é juiz federal, e foi presidente da Associação Paranaense dos Juízes Federais (Apajufe) em duas gestões.

** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.