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Está em trâmite na Assembleia Legislativa do Estado do Paraná o Projeto de Lei 419/2016, que possui 153 (cento e cinquenta e três) artigos e trata de assuntos da mais alta relevância para a cidadania e também para a Administração Pública estadual. Os seus efeitos são de longo prazo – a exigir reflexões apuradas.

O texto do projeto foi redigido com boa técnica, nada obstante agrupe – de forma juridicamente indevida – assuntos bastante díspares em um só projeto de lei. O PL 419/2016 trata de vários objetos, diferentes entre si. Inclusive, alguns de forma enigmática, pois apenas se reporta às leis que pretende modificar (sem especificar o seu assunto). Assim, fato é que desobedeceu à Lei Complementar 95/1998 , cujo art. 7º, inc. I, é expresso ao preceituar que “excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto”.

Só se consegue cogitar de explicações políticas para a soma de tais assuntos – o que se agrava pelo regime de urgência imposto à sua tramitação.

Afinal, o PL 419/2016 trata simultaneamente do processo administrativo fiscal e do conselho de contribuintes (arts. 1º a 90); cria novos tributos, denominados de taxas relativas a recursos hídricos e minerais (arts. 91 a 119) e, por fim, sob o pretexto de tratar de “disposições gerais” (art. 120 a 153), avança em temas muito específicos e propõe alterações no Imposto sobre Circulação de Mercadorias - ICMS e no Imposto sobre Transmissão “Causa Mortis” e Doação - ITCMD; regula a cobrança da dívida ativa (judicial e extra); cria o Conselho de Controle das Empresas Estatais – CCEE e lhe atribui competências relativas a empresas públicas e sociedades de economia mista (aumento, subscrição e integralização de capital), autoriza o Poder Executivo a vender ações das estatais (desde que não afete o seu poder de controle), disciplina temas da Companhia de Habitação do Paraná – COHAPAR, extingue créditos antigos do IPVA etc. etc. Juridicamente inapropriada e desrespeitosa de Lei Complementar nacional, só se consegue cogitar de explicações políticas para a soma de tais assuntos – o que se agrava pelo regime de urgência imposto à sua tramitação.

Como era de se esperar em projetos que tratam de tantos temas sensíveis de uma só vez, o PL 419/2016 despertou intensas polêmicas – a ponto de a OAB/PR já ter se posicionado publicamente contra muitos de seus dispositivos, devido à sua inconstitucionalidade, em manifestação que conta com a participação da eminente Professora Betina Treiger Grupenmacher.

São tantos e tão dessemelhantes os assuntos do PL 419/2016, que este artigo focalizará em um só: a venda de ações das empresas estatais. Ainda que numa primeira leitura, quer parecer que tais dispositivos do projeto são ou supérfluos ou perigosos. Podem fazer nascer um problema insolúvel.

Em primeiro lugar, por que tais previsões seriam supérfluas? A resposta é simples: é inconstitucional o bloqueio legislativo a respeito da venda de ações das empresas estatais em quantidades que não digam respeito ao poder de controle. Isso é pacífico desde junho de 1995, quando o Supremo Tribunal Federal – STF declarou a desnecessidade de autorização prévia da Assembleia Legislativa como condição para a venda de ações de empresas estatais, desde que não afetado o poder de controle. Trata-se da ADI 234-1, cujo relator foi o Ministro Néri da Silveira. Muito embora refira-se à legislação do Estado do Rio de Janeiro, o precedente está firmado e todos lhe devem obediência.

Conforme consta da ementa do julgado: “Isso significa que a autorização, por via de lei, há de ocorrer quando a alienação das ações implique transferência pelo Estado de direitos que lhe assegurem preponderância nas deliberações sociais. A referida alienação de ações deve ser, no caso, compreendida na perspectiva do controle acionário da sociedade de economia mista, pois é tal posição que garante a pessoa administrativa a preponderância nas deliberações sociais e marca a natureza da entidade. [...] Importa ter presente que isto só se faz indispensável, se efetivamente, da operação, resultar para o Estado a perda do controle acionário da entidade.” Em outras palavras, parte do PL 419/2016 pretende revogar lei inconstitucional, quando bastaria um recurso ao Poder Judiciário para que fosse liminarmente suprimida a proibição.

Porém, o verdadeiro perigo não reside na possibilidade (ou não) de venda de ações irrelevantes à configuração do poder de controle societário em empresas estatais. Esse tema está vencido, pelo menos há 21 anos. A situação se complica no que diz respeito ao destino que se conferirá ao valor oriundo da venda. São duas as perguntas básicas que precisam de resposta prévia: (1) por que vender, hoje, as ações das estatais? e (2) o que será feito com o dinheiro que resultar de tal venda? Em termos mais técnicos, onde está a Avaliação de Impacto Legislativo – AIL que autorizaria a decisão de vender ações de empresas públicas e sociedades de economia mista?

Conforme consta de estudos oficiais da Câmara e do Senado, a AIL é metodologia que permite esclarecer se a legislação proposta é necessária e apropriada, pondo à luz os motivos do projeto de lei, suas premissas e consequências socioeconômicas. Muito embora o Poder Legislativo tenha autonomia para legislar a propósito dos temas que lhe são constitucionalmente cometidos, fato é que tal liberdade precisa ser exercida com responsabilidade.

Hoje, é imprescindível que se saiba o porquê e o para quê da lei a ser debatida, votada e promulgada. Assim, qual o motivo e qual a finalidade do projeto de lei? A que ele se destina, sobretudo se forem acertadas as notícias de que a venda de ações pode gerar mais de R$ 2 bilhões de receita.

Se o destino de tais recursos forem despesas com pessoal, encargos sociais ou despesas correntes, a venda das ações implicará um desastre anunciado. Isso porque tais despesas permanecerão no longo prazo, mas o dinheiro acabará no curto prazo.

Aprofundando o caso do PL 419/2016, as perguntas específicas que precisam ser debatidas e respondidas são, quando menos: (1) qual o problema que se pretende resolver com a venda das ações e como ele pode ser projetado no longo prazo?; (2) quais são os objetivos a serem atingidos com a arrecadação de R$2 bilhões?; (3) quais são as consequências econômicas e sociais da venda das ações – como se compensará, nos próximos anos, a perda da receita dos dividendos?; (4) se existem alternativas para resolver tal problema, como elas podem ser comparadas entre si e qual é a mais eficiente?; (5) como se organizará o monitoramento do destino da verba oriunda da venda das ações?

Por exemplo, se o destino de tais recursos forem despesas com pessoal, encargos sociais ou despesas correntes, a venda das ações implicará um desastre anunciado. Isso porque tais despesas permanecerão no longo prazo, mas o dinheiro acabará no curto prazo – assim como a fonte que o gerou. Sem ações societárias e sem receita, em pouco tempo o dinheiro chega ao seu fim. O mesmo se diga se a finalidade forem despesas de capital (planejamento e execução de obras, aquisição de imóveis ou bens, etc.). Todos estes destinos têm prazo certo de validade e esgotam a receita: de usual, o dinheiro sacrificado num bem de capital não se reproduz nem frutifica (ao contrário das ações, que podem gerar dividendos).

Não nos esqueçamos do exemplo de má-administração de verbas públicas vindo recentemente do Estado do Rio de Janeiro. Às vésperas das Olimpíadas, o governador editou o Decreto 45.692/2016, que declarou “estado de calamidade pública”. O governo não conseguia cumprir suas obrigações mais básicas (salários e aposentadorias aos servidores públicos, despesas de saúde e de educação públicas, etc.). Ao que tudo indica, havia se valido das receitas derivadas do petróleo para expandir gastos permanentes – quando elas diminuíram, veio a calamidade econômico-financeira (e os danos à população, sobretudo aos mais vulneráveis). Isso precisa ser levado em conta.

Fica aqui o alerta a propósito do destino a ser dado à verba oriunda da venda de ações das empresas estatais paranaenses. Mesmo que se descarte a AIL (eis que a proibição de venda é inconstitucional), é necessário trazer à luz o seu escopo. Se é bem verdade que a Constituição brasileira assegura ao governo do Estado a validade de tal operação, de igual modo é verdadeiro que o eventual problema está na destinação que se pretenda conferir a tal receita extraordinária (e o respectivo controle). Os debates precisam ser intensificados.

*Egon Bockmann Moreira: Advogado. Doutor em Direito. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Professor visitante da Faculdade de Direito de Lisboa (2011) e do Centro de Estudos de Direito Público e Regulação - CEDIPRE, da Faculdade de Direito de Coimbra (2012). Conferencista nas Universidades de Nankai e de JiLin, ambas na China (2012). Palestrante nos cursos de MBA, LLM e Educação Continuada na FGV/RJ. Escreve às segundas-feiras, quinzenalmente, para o Justiça & Direito.

** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.

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