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As discussões sobre o ensino jurídico e o mercado de trabalho em direito no Brasil voltaram a levantar polêmicas nos últimos dias. O Ministério da Educação suspendeu por 120 dias, nesta terça-feira (25), a tramitação dos pedidos de autorização de cursos superiores de tecnologia em serviços jurídicos ou equivalentes. A portaria do MEC também institui um grupo de trabalho para “aperfeiçoar a política regulatória dos cursos superiores da área jurídica”, a ser composto por representantes da OAB, das entidades representativas de Instituições de Ensino Superior (IES), do Conselho Nacional de Educação (CNE) e do próprio MEC.

A decisão vem uma semana depois de o Ministério autorizar o funcionamento de um curso do tipo na Faculdade de Agronegócio Paraíso do Norte (Fapan), no Paraná. A instituição conseguiu a homologação depois de recorrer de uma decisão da Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (Seres), que tinha negado o pedido depois de uma intervenção do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A falta de clareza sobre o assunto é o que mais preocupa profissionais e estudiosos da área.

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Rodrigo Rios, presidente da Comissão de Educação Jurídica da OAB-PR, enfatiza que a posição do Conselho Federal da OAB é contrária à criação dos cursos técnicos superiores em serviços jurídicos. “A Ordem entende que esses cursos agravariam a mercantilização de uma atividade profissional que já está sendo atendida pelos próprios advogados. Isso é criar um advogado de classe B”, afirma Rios.

Jorge Bernardi, advogado e vice-reitor do Centro Universitário Internacional Uninter, é também coordenador do curso “Gestão de Serviços Jurídicos e Notariais a Distância”, oferecido desde 2014. É o primeiro do tipo no Brasil. Segundo Bernardi, o curso oferecido pela Uninter não pertence à área de direito, mas à de gestão. “O curso é da área de gestão e é ligado às atividades paralegais: pessoas que trabalham em cartórios, escrivães de polícia, gestores de escritórios. Só um terço das nossas disciplinas são da área de direito, e são introdutórias”, diz Bernardi. “Esses profissionais estarão ligados ao Conselho Regional de Administração”, completa.

Rios entende que o papel da OAB é dialogar com as instituições de ensino que oferecem grande parte da grade curricular em matérias de direito. “A OAB não abrirá mão desse poder de fiscalização e de crítica de um profissional paralelo. A nossa desconfiança é que se trata mais de uma mercantilização revestida de necessidade”, diz. O advogado reconhece, porém, que se existe a demanda por novos profissionais para atender demandas específicas, que não serão fiscalizados pela OAB, isso deve ser discutido no grupo de trabalho instituído pelo MEC.

Conforme matéria publicada pelo site Conjur, no dia 26 de abril, a descrição do curso técnico da Uninter no site da instituição era a seguinte: “O curso prepara você para um excelente desempenho nas carreiras parajurídicas do Poder Judiciário, cartórios judiciais e extrajudiciais, tabelionatos, escritórios de advocacia, esfera policial, departamentos jurídicos e de recursos humanos de empresas, assessoria parlamentar, ou como profissional autônomo. Bela carreira, com belas possibilidades de ganhos”. No dia 27, o texto já tinha mudado para “Prepare-se para atuar na área parajurídica, desenvolvendo atividades relacionadas à gestão, cartórios, comunicação e planejamento estratégico, além de poder desempenhar atividades administrativas nos escritórios de advocacia”.

A assessoria de imprensa da instituição informou que a mudança do texto se deu com o objetivo de evitar polêmicas desnecessárias, mas que o curso sustenta as informações originais.

Indefinição

A advogada Alynne Nunes, especialista em direito educacional, destaca a falta de regulamentação do tema. A Lei 8.906/1994, que dispõe sobre o Estatuto da OAB, prevê no inciso XV do artigo 54 que compete ao Conselho Federal da Ordem “colaborar com o aperfeiçoamento dos cursos jurídicos, e opinar, previamente, nos pedidos apresentados aos órgãos competentes para criação, reconhecimento ou credenciamento desses cursos”. Por sua vez, o Decreto 5.773/2006, no §2º do seu artigo 28, prevê que o Conselho da Ordem deve ser ouvido previamente à criação de cursos de direito, e não de cursos jurídicos. “A lei prevalece sobre o decreto, mas não deixa de ser curioso. O próprio MEC diverge, entre seus órgãos, sobre o que pode ou não ser considerado um curso jurídico, embora eles não citem esses dispositivos”, avalia Alynne.

Para Alexandre Veronese, professor da UnB e presidente da Associação Brasileira de Ensino do Direito (Abedi), a discussão sobre os tecnólogos não é a questão principal. “O grupo de trabalho instituído pelo MEC já chegou atrasado, depois de aprovarem o curso. Além disso, as novas diretrizes curriculares do curso de direito estão em debate desde 2014. Esse é o debate precípuo, que vem se arrastando, não os cursos técnicos”, diz Veronese. “A discussão principal é o que queremos para o curso de direito no Brasil”, completa.

A Abedi ainda não tem uma posição oficial sobre os tecnólogos, uma vez que os membros da diretoria têm posições muito divergentes, mas Veronese deixa claro: “a associação acha que esse tipo de iniciativa precisa ser precedido de debates públicos mais amplos”. A Abedi já enviou ofício ao MEC para que o CNE realize audiências públicas nacionais sobre o tema e participe dos fóruns que as entidades científicas e acadêmicas mantêm. “Mas 120 dias é um prazo bem curto”, ressalva Veronese.

José Eduardo Faria, professor da USP e da FGV-SP, estuda as transformações e desafios no ensino do direito há décadas. Faria vê com desconfiança as iniciativas de cursos técnicos em serviços jurídicos, pois o conceito dos cursos ainda é muito vago e, na prática, o auxílio a advogados, procuradores e juízes vem sendo feito por estagiários e trainees há tempos. “A impressão que se tem é de que os tais cursos de tecnologia interessam apenas às instituições universitárias privadas mais fracas. Como não têm condição de ver reconhecidos seus cursos de direito, elas tentam criar brechas para entrar no setor”, afirma.

Para Faria, essa estratégia abre precedentes perigosos no já complicado cenário da educação jurídica no país. “Esses precedentes podem desfigurar o ensino do direito e fazer com que parte dele seja transferido da alçada das delegacias de ensino para outras, como as delegacias de costumes”, completa.

Entenda a discussão no MEC

Já existem vários cursos de “técnico em serviços jurídicos” sendo ofertados no Brasil. Em 2011, esse tipo de curso foi inserido no Catálogo Nacional de Cursos Técnicos (CNCT), que uniformiza os cursos técnicos de nível médio no país. De acordo com o catálogo, essa classe de profissionais “executa serviços de suporte e apoio administrativo às atividades de natureza jurídica, coordena e executa o arquivamento de processos e documentos técnicos e presta atendimento ao público”. Cursos de nível médio são de educação básica, não superior.

A OAB também vem tentando excluir essa previsão do CNCT, mas a Câmara de Educação Básica (CEB) do Conselho Nacional de Educação negou o pedido em fevereiro deste ano. Segundo a OAB, a análise dos objetivos desse curso e de sua matriz curricular revelariam uma tentativa de criar uma profissão com atribuições que se sobrepõem às do advogado, o que violaria o artigo 133 da Constituição e o art. 8º da Lei 8906/1994, que dispõe sobre o Estatuto da Ordem. Além disso, a OAB argumentou que a falta de um conselho de classe ou órgão técnico que regule a profissão poderia levar os técnicos a exercerem atividades conflitantes com as dos advogados, principalmente em causas menores e menos complexas nas quais a legislação dispensa a presença de advogados.

Por sua vez, o Catálogo Nacional de Cursos Superiores de Tecnologia (CNCST) ainda não prevê o curso superior de tecnologia em serviços jurídicos. Em julho de 2016, a Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (Seres) negou o pedido de autorização desse tipo de curso para a Faculdade de Agronegócio Paraíso do Norte (Fapan). Faculdades precisam de autorização prévia do MEC para iniciarem cursos, o que não é exigido de Universidades e Centros Universitários, como o Uninter, o Claretiano e o Unifil, que são as três instituições que já têm cursos de tecnólogo em serviços jurídicos. Mas após a criação, cabe ao MEC reconhecer a validade do diploma de quem fizer o curso.

Segundo o parecer da Seres que negou o pedido da Faculdade, “a OAB emitiu manifestação contrária à autorização do curso alegando que haverá um conflito profissional no que tange a exercer uma atividade sem regulamentação e fiscalização, podendo ainda ser confundido com o exercício da advocacia, principalmente nas causas de menor porte, onde a legislação dispensa, inicialmente, a presença de advogado. Outro ponto apontado pelo Conselho foi o fato de que não existe uma regulamentação que possa limitar o exercício do aprendizado do aluno do curso, o que pode incidir na violação de prerrogativas exclusivas de advogados”.

A Fapan recorreu de decisão perante o Conselho Nacional de Educação, que veio a autorizar o funcionamento do curso em fevereiro deste ano. O Conselho entendeu que “não há fragilidade apontada no Relatório de Avaliação que seja impeditiva para a oferta do curso e não há necessidade de manifestação da Ordem dos Advogados do Brasil, pois se trata da oferta de curso superior de tecnologia em Serviços Jurídicos, cuja finalidade não é formar profissionais em Direito”.

O professor Veronese pondera, entretanto, que a portaria do MEC suspendendo a tramitação dos pedidos de autorização dos novos cursos para tecnólogos em serviços jurídicos por 120 dias, ao instituir um grupo de trabalho para discutir a política regulatória dos cursos superiores da área jurídica, assumiu, de certa maneira, a posição de que esses cursos pertencem à área jurídica. “Há uma ambiguidade aí. A portaria dá essa interpretação”, diz Veronese.

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