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A insegurança jurídica acompanha o Brasil há décadas como uma sombra persistente sobre nossas melhores intenções de desenvolvimento. Lembro-me de quando passei a frequentar debates econômicos, ainda no início dos anos 1990: já naquela época, ela era apontada como um dos maiores entraves ao investimento produtivo.
À época, muitos atribuíam o problema aos sucessivos choques de política econômica — planos que mudavam regras, alteravam contratos e surpreendiam empresas e cidadãos da noite para o dia. O país parecia incapaz de oferecer aquilo que todo investidor, pequeno ou grande, nacional ou estrangeiro, mais valoriza: previsibilidade.
Com a estabilização econômica dos anos 2000, esperava-se que esse problema fosse superado. A inflação foi domada, as contas públicas ganharam maior racionalidade e o arcabouço macroeconômico se fortaleceu.
Mas a insegurança jurídica não desapareceu; ao contrário, mudou de forma e ampliou seus endereços. Deixou de ser apenas um subproduto de políticas econômicas erráticas e passou a emanar também — e de maneira crescente — do funcionamento das próprias instituições do Estado: Executivo, Legislativo e, de modo cada vez mais relevante, do Judiciário.
Hoje, a confusão normativa e a imprevisibilidade das decisões tornaram-se temas recorrentes em qualquer conversa séria sobre crescimento econômico. Fortalecer a segurança jurídica deixou de ser um slogan elegante: tornou-se uma condição essencial para investir, empregar, inovar e planejar o futuro.
Nenhuma economia cresce de forma sustentada quando contratos são frágeis, regras mudam ao sabor de interpretações voláteis e decisões fundamentais dependem mais da convicção pessoal de autoridades do que da letra da lei
É justo reconhecer que, ao longo dos últimos anos, ocorreram avanços. O Executivo e o Legislativo, com todos os seus limites e falhas, passaram a reconhecer parte de suas responsabilidades e buscaram corrigir excessos: melhoria regulatória, marcos legais mais claros, preocupação com governança e técnica legislativa.
Esse movimento, ainda que incompleto, revela maturidade institucional. Mas houve também um fenômeno preocupante: enquanto dois Poderes passaram a exercitar a autocrítica, o Judiciário mostrou-se muito menos disposto a fazê-lo.
Em eventos públicos, é comum ver representantes do Executivo defendendo previsibilidade e segurança regulatória; é comum ver parlamentares atentos à qualidade técnica das leis. Já quando membros do Judiciário abordam o tema da insegurança jurídica, a explicação costuma ser invariavelmente a mesma: “o problema está nas leis mal elaboradas”.
Não nego essa realidade. Leis ruins existem, geram litígios e precisam ser revistas e aprimoradas. Melhorar a qualidade legislativa é, sem dúvida, parte da solução. Mas reduzir toda a insegurança jurídica a esse fator é ignorar uma dimensão importante do problema.
Minimizar o papel das decisões judiciais erráticas, das interpretações oscilantes e do ativismo jurisdicional é fechar os olhos para uma fonte concreta de instabilidade. Nos últimos anos, tornou-se evidente que parcela significativa da insegurança jurídica no Brasil decorre de leituras pouco ortodoxas da legislação vigente por parte do Judiciário e de atuações expansivas do Ministério Público.
Não se trata de isentar Executivo ou Legislativo — todos têm responsabilidades —, mas de afirmar algo elementar: reconhecer o próprio erro é o primeiro passo para corrigi-lo.
Esse ponto é crucial, porque a insegurança jurídica cobra um preço alto, silencioso e cumulativo. Ela afasta investimentos de longo prazo, encarece o crédito, reduz a produtividade e limita o crescimento potencial da economia. Projetos de infraestrutura, essenciais para elevar a competitividade do país, tornam-se apostas de alto risco.
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Investidores exigem retornos maiores para compensar a incerteza ou simplesmente escolhem outros destinos. O resultado é a redução do investimento, a perda de produtividade, a queda nos empregos e na renda e, por fim, o baixo crescimento econômico — um custo pago por toda a sociedade, especialmente pelos mais pobres.
No Brasil, investimento em infraestrutura verdadeiramente seguro simplesmente não existe. Toda iniciativa relevante enfrentará juízes de primeira instância convictos de teorias próprias; enfrentará membros do Ministério Público com interpretações peculiares da lei; enfrentará tribunais regionais com padrões decisórios inconsistentes.
Depois virão o STJ e, em muitos casos, o STF. Para empresas, famílias, governos subnacionais e até para a União, o Judiciário tornou-se um fator permanente de incerteza, e não um garantidor de estabilidade.
É cada vez mais comum observar magistrados e membros do Ministério Público convencidos de que seu papel não é interpretar a lei aprovada pelo Parlamento, mas implementar princípios abstratos conforme suas próprias convicções. Nessa lógica, passam a interferir diretamente em políticas públicas, a reescrever contratos, a substituir escolhas legítimas de prefeitos, governadores e presidentes.
Não se trata apenas de políticas públicas: do direito tributário ao empresarial, do administrativo ao constitucional, o Judiciário assumiu posição relevante na geração de instabilidade jurídica no Brasil.
Instituições preservam sua autoridade não pelo alcance de seu poder, mas pelo uso responsável dele. A estabilidade de um país é maior do que qualquer protagonismo individual ou glória momentânea.
Quem julga, quem legisla e quem governa deve lembrar-se de que a lei não existe para satisfazer vontades pessoais, mas para criar ordem, previsibilidade e confiança. Quando as leis são confusas e suas interpretações acrescentam desordem, em vez de clareza, o resultado inevitável é a insegurança para toda a sociedade.
Se quisermos um Brasil que cresça de forma sustentada, que atraia investimentos, que gere empregos de qualidade e que ofereça oportunidades reais às próximas gerações, precisamos reafirmar um princípio simples e poderoso: a lei deve ser estável, clara, previsível e igualmente aplicada a todos.
Segurança jurídica não é apenas importante para os investidores; é um direito da sociedade. E, sem ela, não há crescimento econômico duradouro, não há prosperidade compartilhada, não há futuro sólido a construir.




