Em passagem de ano, a gente aperta o botão e se repetem, num vai e vem, os votos de feliz ano-novo, automaticamente, sem que a gente se dê conta que do lado de fora de nossos corações e mentes, tudo mais na Terra continua a girar, sem saber do calendário que marca como um ano, essa volta completa que nosso planeta dá em torno de sua estrela.
O calendário cria em nós a ideia de que um ano velho se foi e virá agora um novo ano cheio de esperanças. É a ideia do fim e do recomeço. Já passei por isso 83 vezes e posso garantir-vos, lembrando Lavoisier, que nada acaba nem começa de novo. É tudo continuação. O que vamos colher num novo ano é o que plantamos nos anos anteriores.
O ano que chega parece cheio de perigos para as liberdades, a Constituição, a democracia.
Em relação ao que sonhamos e queremos, ficamos parados no tempo se esperarmos por outros. Há quem espere por Deus para melhorar de vida, há quem espere pela sorte e há quem espere de governos. Mas o melhor investimento no futuro ano é em nós mesmos. Em geral, ganhamos sempre se apostarmos em nós mesmos. Além disso, para quem depende de milagres divinos, me disse dia 31 meu amigo monge beneditino: “Deus muitas vezes nos usa para realizar milagres”. Quem sabe não poderemos ser instrumento desses milagres?
A melhor charge desta passagem de ano mostra um grupo de pessoas assustadas se esgueirando por trás de uma parede, enquanto uma delas, cutuca uma longa vara, e vai empurrando para abrir uma porta onde está escrito 2024. Pois nessas 83 passagens de ano que vivi, nenhuma delas me apresentou tantas incertezas como esta.
O ano que chega parece cheio de perigos para as liberdades, a Constituição, a democracia. O devido processo legal parou de funcionar, os representantes eleitos ou estão abduzidos, ou assustados, ou perplexos, ou inermes, e o Executivo parece que apresenta a cada dia um novo improviso. Um 2024 indecifrável; uma porta perigosa atrás da qual pouco se vê. Nem quero imaginar o verso de Dante: “Deixai toda esperança, vós que entrais”. Afinal, brasileiro é profissão esperança.
Quando o perdido no deserto clama água! água! água!, a gente sabe do que está carente. Pois nunca ouvi e li tantas vezes repetida na mídia a palavra democracia, revelando a carência. Quando direitos e garantias fundamentais são desprezados, assim como o devido processo legal, e há tanto silêncio a respeito, é porque a palavra democracia está sendo usada não para exigir democracia, mas para fingir que ela está presente. É a forma esperta da ideologia que não convive com a democracia, de ser cúmplice da conquista do poder totalitário, de controle da liberdade de expressão e restrição de direitos. O que ainda nos espera neste ano, a continuar a marcha ré na democracia? O que há por trás da porta?
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