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Prisão em segunda instância
| Foto: Pixabay

Conforme noticiou a Gazeta do Povo, há poucos dias, membros de dois ramos do Ministério Público recomendaram ao Governo do Paraná que adotasse medidas de fiscalização e coação de pais, a fim de assegurar a vacinação infantil contra COVID no Estado.

Com todo respeito aos subscritores do documento, a recomendação é jurídica e moralmente equivocada e deve ser rejeitada pelo respectivo governo.

É importante deixar claro que com este texto não pretendemos, de modo algum, desestimular a vacinação, mas mantê-la dentro dos parâmetros jurídicos apropriados. De fato, acreditamos que a profundida e duração da crise sanitária provocada pela COVID, em alguma medida, acabou por gerar a convicção de que todo e qualquer meio seria apropriado para debelá-la. Isso é um equívoco. Ainda que instrumentos e poderes extraordinários de Estado sejam passíveis de utilização em cenários crise, alguns diques de proteção aos direitos fundamentais e às estruturas de deliberação democrática devem ser assegurados, uma vez que a história demonstra que cenários de crise geram incentivos à tomada de decisões de baixa qualidade e desproporcionais. Aliás, já pudemos testemunhar no próprio enfrentamento à pandemia medidas dessa espécie.

No tocante à vacinação, embora sejamos seus entusiastas, do ponto de vista legal e moral inexiste fundamento para sua imposição, especialmente entre crianças, de modo que se torna juridicamente inaceitável o uso de métodos coativos. Permanece cabível apenas o uso de políticas de incentivo e esclarecimento.

Vejamos por quê.

Vacinação infantil contra COVID, legalmente, tem caráter facultativo

A questão sobre esse ponto é simples: a legislação prevê que é obrigatória a vacinação infantil apenas quando houver recomendação da autoridade sanitária. No caso concreto da vacinação infantil contra a COVID, nenhuma autoridade de saúde com competência para tanto – nacional ou do Estado do Paraná – recomendou sua obrigatoriedade. Por conclusão, ela tem caráter meramente facultativo.

Com efeito, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 14, § 1º, prevê: “É obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias.”

Por sua vez, a Lei 6.259, a qual trata, dentre outras matérias, do Programa Nacional de Imunizações, dispõe em seu art. 3º: “Cabe ao Ministério da Saúde a elaboração do Programa Nacional de Imunizações, que definirá as vacinações, inclusive as de caráter obrigatório.”

A lei geral de enfrentamento à pandemia também traz lacônica previsão acerca da possibilidade de que a autoridade sanitária federal e os gestores locais de saúde instituam vacinação obrigatória no combate à pandemia.

Pois bem. Diante desse quadro jurídico, como dissemos acima, ocorre que nem a autoridade federal, tampouco a do Estado do Paraná, instituíram a obrigatoriedade da vacinação infantil contra a COVID (nem da vacinação adulta, aliás; contudo, trataremos aqui apenas da vacinação infantil).

No que concerne aos órgãos federais, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) divulgou no dia 16/12/2021, por meio de Comunicado Público nº 01/2021, a aprovação, no Brasil, da vacina Cominarty (Pfizer) para imunização de crianças de 5 a 11 anos de idade contra a Covid 19. No documento, o órgão registrou a competência do Ministério da Saúde para avaliação das possibilidades e condições para eventual inclusão da vacinação infantil no Programa Nacional de Imunização – PNI: “Importante ressaltar que cabe ao Ministério da Saúde do Brasil a decisão quanto à conveniência e oportunidade para a inclusão dessa vacina no Programa Nacional de Imunização – PNI (…)”.

O Ministério da Saúde, por sua vez, optou por não incluir a vacinação infantil contra COVID no mencionado Plano Nacional de Imunização. Pelo contrário, inseriu-a apenas no chamado  Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, o qual encontra previsão legal no art. 13 da Lei 14.124/21, que conta com a seguinte redação: “A aplicação das vacinas contra a covid-19 deverá observar o previsto no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, ou naquele que vier a substituí-lo.” O § 1º daquele dispositivo, por sua vez, prevê que “o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19 (...) é elaborado, atualizado e coordenado pelo Ministério da Saúde”.

Nesse sentido, a pasta federal da Saúde emitiu a Nota Técnica nº 02/2022-SECOVID/GAB/SECOVID/MS, recomendando a inclusão da vacina Cominarty (Pfizer), para crianças de 5 a 11 anos, no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19 (PNO), contudo apenas dede forma não obrigatória”.

Inclusive, o referido Ministério, no intuito de esclarecer a diferença entre o Programa Nacional de Imunização - PNI, regido pela Lei nº 6.259/1975, e o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação, instituído pela Lei 14.124/2021, expediu a Nota Técnica nº 4/2022-SECOVID/GAB/SECOVID/MS, ressaltando que a vacinação infantil contra COVID teve sua inclusão recomendada apenas no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação, o qual – consoante dispositivo mencionado acima – define as diretrizes básicas da vacinação realizada no contexto do enfrentamento da pandemia.

O Plano Estadual de Vacinação do Paraná, por sua vez, foi elaborado seguindo as diretrizes do Ministério da Saúde e não prevê casos de vacinação compulsória.

Por conseguinte, decorre dos preceitos legais acima, bem como da decisão das autoridades sanitárias relevantes para o caso, que a vacinação contra a Covid19 das crianças e adolescentes no Paraná não tem caráter obrigatório, seja porque não está inserida no Programa Nacional de Imunização - PNI, seja porque foi incluída no PNO com a recomendação de não obrigatoriedade, pela autoridade competente sobre a matéria, qual seja, o Ministério da Saúde.

Frise-se que a exigência de comprovação de vacinação como meio indireto de indução da vacinação compulsória somente pode ser estabelecida por meio de lei, ou ato dela decorrente, consoante entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal – STF, nas ADI nº 6.586 e ARE 1267879/SP (Repercussão Geral - Tema 1103). Como visto, inexiste no âmbito paranaense lei ou ato dela decorrente instituindo a obrigatoriedade da vacinação infantil contra COVID.

Desse modo, patente que do ponto de vista jurídico tal vacinação guarda caráter facultativo, de maneira que inexiste fundamento para que se fiscalize a situação vacinal das crianças ou que se persiga os respectivos pais ou responsáveis.

Existem razões legítimas para que a vacinação seja facultativa

Além do fato de que, do ponto de vista legal, é inequívoco o caráter facultativo da vacinação infantil contra a COVID no Paraná, é importante ressaltar que há razões legítimas para a adoção dessa sistemática.

Sinal claro nesse sentido é que tal abordagem tem sido regra entre as democracias consolidadas, mesmo naquelas que (a nosso ver, equivocadamente) instituíram passaportes vacinais para grupos adultos.

Cabe aqui elencar algumas dessas motivações. Inicialmente, o desenvolvimento das vacinas contra COVID foi bastante acelerado. Jamais outra vacina foi desenvolvida tão rapidamente, muito menos imposta coercitivamente. Esse fato, naturalmente, gera o receio natural em parcela da população acerca da ausência de informações de longo prazo. É de se salientar que, apesar de a vacina da Pfizer já ter recebido registro definitivo, ainda há pesquisas em andamento acerca do imunizante.

Inclusive, o contrato entre a Pfizer e o Governo Federal, prevê expressamente que: “O Comprador reconhece que a Vacina e os materiais relativos à Vacina, e seus componentes e materiais constitutivos, estão sendo desenvolvidos rapidamente devido às circunstâncias de emergência da pandemia de Covid-19 e continuarão sendo estudados após o fornecimento da vacina para o Comprador de acordo com este Contrato. O Comprador ainda reconhece que a eficácia e os efeitos a longo prazo da Vacina ainda não são conhecidos e que pode haver efeitos adversos da Vacina que não são conhecidos atualmente.” (Item 5.5 do Contrato 52/2021, firmado em 18 de março de 2021 entre a Pfizer e a União).

Particularmente, concordamos que parece pouco provável que surjam grandes novidades no tocante aos efeitos adversos, tendo em vista o número já elevado de doses aplicadas, o domínio razoável da tecnologia utilizada e o acompanhamento constante da evolução da vacinação por várias autoridades sanitárias e órgãos científicos mundo afora. De todo modo, parece absolutamente descabido que um produto que envolve tecnologia recente, pesquisas em curso e aquisição com cláusula dessa natureza possa ser imposta coercitivamente.

Aliás, há que se questionar também se há necessidade dessa espécie de medida e se ela seria proporcional. Isso porque - embora ainda se trate de fato novo e pendente de estudos mais aprofundados - aparentemente, países ou estados que adotaram mecanismos compulsórios de vacinação contra COVID não têm apresentado desempenho necessariamente superior àqueles que optaram por uma abordagem baseada na livre-responsabilidade dos cidadãos. Ressalto que essa alegação não se baseia em um ceticismo relacionado à eficácia da vacina. Outros fatores, como, por exemplo, a elevada adesão voluntária entre grupos de risco, podem tornar a compulsoriedade despicienda e até contraprodutiva. Ademais, ainda que haja ganhos, caso eles sejam marginais, há que se examinar os custos sobre outros bens jurídicos.

Isso tudo é ainda mais patente em relação ao público infantil, visto que os números de casos graves e óbitos – mesmo que significativos – não atingiram a mesma magnitude do que ocorreu em relação a outros públicos. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), há proporcionalmente menos infecções sintomáticas e casos com doença grave e mortes por COVID-19 em crianças e adolescentes, em comparação com grupos de idade mais avançada. Os casos desagregados por idade notificados à OMS entre 30 de dezembro de 2019 e 25 de outubro de 2021 mostram que as crianças menores de cinco anos representam 2% (1.890.756) dos casos globais notificados e 0,1% (1.797) das mortes globais notificadas, enquanto crianças e adolescentes de 5 a 14 anos foram responsáveis por 7% (7 058 748) dos casos globais relatados e 0,1% (1 328) das mortes globais relatadas. As mortes em todas as idades inferiores a 25 anos representaram menos de 0,5% das mortes globais relatadas.

A relação entre custos e benefícios, nesse caso, não é trivial. Tanto assim que países como Suécia e Noruega, democracias com instituições fortemente operantes e acesso a material na fronteira do conhecimento científico, conforme matéria da Gazeta do Povo, “optaram por não recomendar como necessária a vacinação de crianças a partir dos cinco anos contra a COVID-19”, ainda que tenham aprovado a vacinação para esse público-alvo e forneçam gratuitamente às famílias que assim desejem. Também na Inglaterra houve uma abordagem inicial mais cautelosa.

Cremos que diante desse quadro não é jurídica ou moralmente aceitável que se obrigue ao recebimento das vacinas. Mais ainda, havendo debate inclusive entre autoridades sanitárias de países desenvolvidos acerca da recomendação para uso em crianças saudáveis, é certo que órgãos jurídicos não possuem a aptidão científica e técnica para tomar decisões acerca dessa problemática.

No atual cenário das pesquisas, compete ao Estado, basicamente, divulgar os dados, corrigir informações incorretas e promover a vacinação, sem porém violar direitos fundamentais ou restringi-los de modo desproporcional, como ocorreria em caso de uso de mecanismos coercitivos.

Não tendo a vacinação infantil contra COVID sido instituída legalmente como obrigatória e tratando-se de política controversa, o MP não possui legitimidade para determinar sua implementação

Conforme expusemos em texto publicado nesta coluna na semana passada, quando um tema social comporta mais de uma alternativa legítima capaz de concretizar os vários valores constitucionais envolvidos, e levando em conta a limitação do conhecimento científico sobre um tema, cumpre aos gestores e não ao Ministério Público escolher, com base em razões públicas, qual opção adotarão, uma vez que falece ao órgão ministerial legitimidade e capacidade institucional para tanto.

Nesse sentido, inclusive, em meados de 2020, o Presidente e o Corregedor do Conselho Nacional do Ministério Público expediram recomendação na qual expuseram que: a fim de “evitar invasões de atribuições alheias”, e considerando que “a efetivação das políticas públicas se dá exclusivamente por atos administrativos de gestão e não por atos judiciais ou de controle”, além de “que a função ministerial é de controle e não de execução, e a decisão administrativa é parte fundamental da cadeia de execução da política pública”, de modo que “a decisão administrativa em geral, e na execução de políticas públicas em particular, é atribuição exclusiva do gestor” e “não incumbe ao Ministério Público a eleição de políticas públicas”.

Com base nessas razões, o documento recomenda “aos membros do Ministério Público brasileiro que atentem para os limites de suas funções institucionais, evitando-se a invasão indevida das atribuições alheias” e “que, na fiscalização de atos de execução de políticas públicas, seja respeitada a autonomia administrativa do gestor”.

Em ponto que é extremamente relevante para o debate aqui tratado acerca da imposição de mecanismos coercitivos de vacinação infantil contra COVID, o documento recomenda também que “diante da falta de consenso científico em questão fundamental à efetivação de política pública, é atribuição legítima do gestor a escolha de uma dentre as posições díspares e/ou antagônicas”.

Como no caso há ampla controvérsia acerca da conveniência do uso de passaportes de segregação contra não vacinados, sendo inclusive francamente majoritária a não adoção desse mecanismo para vacinação infantil nas democracias consolidadas, é inviável que o Ministério Público tente impor tal sistemática.

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