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Um diploma hoje em dia não o faz mais rico. Por outro lado, a folha de papel é capaz de determina se você terá ou não de prestas mesuras ao progressismo.
Um diploma hoje em dia não o faz mais rico. Por outro lado, a folha de papel é capaz de determina se você terá ou não de prestas mesuras ao progressismo.| Foto: Pixabay

Com Sandel, vimos o drama causado pela queda do padrão de vida dos norte-americanos. Descontada a prole da imigração mais recente, é correto dizer que, lá, o filho é mais pobre que o pai e o pai, mais pobre que o avô. Esse empobrecimento tem como causa a “globalização”, ou, dando nome aos bois, a China.

Desde que as grandes corporações norte-americanas aceitaram usar trabalho escravo, foram sumindo do mapa dos Estados Unidos empregos para trabalhadores livres. Ao mesmo tempo, as corporações vêm aumentando sua margem de lucro, e isso resulta na tão falada desigualdade: uma panelinha de super-ricos ganhando cada vez mais, enquanto o resto do país vai tendo mais dificuldades em pagar as contas, sem paz para gastar com lazer.

Decerto a desigualdade econômica está longe de ser um mal em si (quem se preocupa com as diferenças de renda entre um trabalhador competente e um incompetente?). Mas quando se cava, à custa de trabalho escravo, um fosso entre a cúpula e o comum de uma sociedade, a liberdade fica ameaçada. É como se o país fosse um Titanic a naufragar e uns poucos poderosos estivessem de helicóptero jogando cordinhas: o ímpeto é o de abandonar o barco, nem que seja pisando na cabeça do compatriota, para agarrar a cordinha e servir como escravo ao seu salvador.

Profissionais substituíveis

Dificilmente veremos médicos e fazendeiros sujeitando sua profissão à ideologia do Vale do Silício, que é o progressismo ou identitarismo. Médicos e fazendeiros são indispensáveis. Já as engajadíssimas beldades de Hollywood são substituídas pelo par de seios mais novo num piscar de olhos – daí a necessidade de, entre uma plástica e outra, garantir algum (pretenso) diferencial. Ela é bonita e tem as ideias corretas, logo, acha-se preferível à que é apenas bonita. A adesão contrita ao credo progressista é mais visível justo nas estrelas do sexo feminino, cujos poderes de atração sexual dependem mais da idade.

Homens de letras são outra classe complicada: há uma baciada de gente disposta a escrever de graça. Ter a própria escrita reconhecida como digna de valor pecuniário requer alguma dose de sorte. Assim, vemos os escritores – sobretudo os de qualidade mais duvidosa – alegando que devem ganhar um emprego ou oportunidade em função de sua cor de pele, do seu sexo, etc. Eles aderem justamente à ideologia do Vale do Silício, dos donos do poder, para aumentar as chances de conseguir um trabalhinho.

Nesse particular, o Brasil é a mesma coisa que os EUA. Saindo de Hollywood para o Projac, encontramos o mesmo engajamento entre as beldades na flor da idade. Por outro lado, médicos e fazendeiros, forças conservadoras, têm contra si os escravos cubanos, o MST e as pastorais da terra.

Queda no padrão de vida

Mas creio que essa semelhança não vá mais longe do que a página dois. Vou fazer uma aposta: se você tem menos de cinquenta anos e é filho de profissionais liberais ou de funcionários públicos, o seu padrão de vida hoje é inferior ao dos seus pais quando eles tinham a sua idade. Eles podiam casar e constituir família com pouco mais que vinte anos. Você provavelmente não.

Os que têm menos de quarenta costumam estar pior. Em geral, penam muito para conseguir um emprego do seu feitio (que exige diploma) e, conseguindo, dificilmente poderão sair de casa por conta própria, sem ajuda financeira dos pais. Ou saem de casa com mesada ou ficam na casa dos pais para não se endividar. Caso já tenham procriado, os avós se juntam para pagar escola ou plano de saúde do neto. Esse nicho brasileiro está numa posição similar ao do conjunto da sociedade norte-americana. Mas é um nicho, não o todo.

Melhora de vida

Gilberto Freyre teve a sacada de usar o tipo de habitação para descrever posição social: pegou os pares casa grande & senzala e sobrados & mocambos. Hoje vale a pena usarmos o par apartamento & favela.

Creio que esse recorte não seja menos importante do que o de renda. Digamos que dois jovens de vinte anos, um morador de favela, outro de apartamento, ingressem no doutorado e ganhem uma bolsa da CAPES de R$2.200, que os proíba de arranjar um emprego. Mesmo que o bem-nascido ganhe dos pais um apartamento, será impossível a ele pagar condomínio, locomoção, água, luz, internet, alimentação, empregada, TV a cabo e Netflix. É claro que estes três últimos itens não são imprescindíveis, mas fazem parte de uma espécie de “pacote existencial” desse nicho.

Enquanto isso, o seu colega da favela pagará pelo aluguel de uma casinha um valor inferior ao do condomínio, pagará meia passagem no ônibus em vez de usar Uber ou manter um carro, fará a própria faxina ou contará com a mãe faxineira, botará um wi-fi sem fibra ótica e, se bobear, ainda fará gato de água, luz e TV.

Se for uma favela pacífica e sem esgoto a céu aberto, esse jovem terá mais bem-estar do que o seu colega bem-nascido. Com o mesmo dinheiro, o jovem de apartamento vive angustiado por não conseguir se manter. Ou, pior ainda, vive sem achar que sequer precisa se manter, o que me parece ser um traço da geração com menos de trinta anos. Esse conforto financeiro é algo de suma importância que a contagem de eletrodomésticos por habitação do IBGE não pode captar.

A economia privada brasileira vive de agricultura e serviços. Nunca fomos nenhuma potência industrial, e, embora a China nos tire alguns empregos, ela própria precisa de nossa agricultura para comer. A China tampouco pode substituir nossa mão de obra de serviços, hoje concentrada nas favelas.

Classe social versus estilo de vida

É possível que agora haja no Rio de Janeiro um trabalhador honesto morando na favela com uma renda superior à de um morador da Zona Sul. Digamos que uma manicure ganhe R$3.000 por mês. Agora façamos a aposta nada exótica de que há aristocratas falidos, afundados em dívidas, morando de favor em apartamento com condomínio de R$3.000, sem medo de se endividar mais, porque nem têm como pagar. Conta com o nome da família influente para não ser expulso. Se classe social se determinar exclusivamente por finanças, a manicure será mais rica do que o falido da Zona Sul.

Num país capitalista típico, como as nações historicamente protestantes, faz todo o sentido colher informações sobre a renda para determinar a posição social de um indivíduo. Na Idade Média, porém, posição social era identificada com um estilo de vida. O aristocrata nascia com título de nobreza e posse de terras. Era o único a poder portar armas (para defender os camponeses e a Igreja de invasores), divertia-se com caçadas e não labutava. O camponês labutava só por dever (isto é, sem querer lucrar) e ia curtir a vida nas horas vagas. O clero era o único com mobilidade social: estudava e precisava da universidade para crescer em importância. No advento da burocracia e dos profissionais liberais, a universidade se manteve como um porteiro para quem quisesse subir de andar.

Se nos Estados Unidos a necessidade de ensino superior para um bom padrão de vida é recente, nas cidades brasileiras esse é o caso desde os tempos coloniais. Um cavalheiro tinha que ir à universidade, onde obtinha o papelzinho mágico que dá uma renda confortável e poder burocrático. Como não era qualquer pé rapado que mandaria o filho para Coimbra e como a universidade escolástica não produzia conhecimento, no fim das contas tratava-se de um gargalo para filtrar filhos de fazendeiros e de burocratas.

Trata-se mais de prestígio e poder do que de dinheiro. Comércio não tornava ninguém respeitável – pelo contrário, era coisa pecaminosa ou criminosa. Com o Estado na mão dos burocratas, era-lhes (e ainda é) fácil baixar leis moralistas impossíveis de serem cumpridas e depois cobrar propina para não prender. Prestígio e poder garantem dinheiro, mas não vice-versa.

É melhor dividir o Brasil entre a plebe sem prestígio, residente na favela, e os cidadãos especiais, que moram em apartamentos e gozam de alguma respeitabilidade (pensem na abordagem policial em área de apartamentos).

A ascensão dos plebeus

Desde a segunda metade do século XX, existiu pelo menos um momento em que uma massa plebeia conseguiu se alçar à condição de cidadão especial: durante o Milagre Econômico ocorrido no mandato de Médici. (A Era Lula foi marcada por um enriquecimento da plebe, mas uma próspera lanchonete na favela não torna ninguém um cidadão especial.) O Milagre foi precedido pela Reforma no Ensino Superior promovida em 1968 por Costa e Silva, que abriu o Brasil para o ensino superior privado não-confessional. A última ditadura tirou das universidades de elite (as públicas e as católicas) o monopólio dos papeizinhos que dão direito a emprego bem remunerado, ou seja, os diplomas. Surgiram as faculdades pagou-passou, que ainda por cima tinham mensalidade acessível para a plebe.

Durante os governos petistas, tentou-se uma imitação do período militar na universidade. O professorado perdeu privilégios, a oferta de vagas públicas cresceu muito, campi se espalharam pelo Brasil, as pagou-passou receberam gordo subsídio e foram compradas por conglomerados estrangeiros bastante predatórios.

Diplomados, os supérfluos

No caso do petismo, porém, a multiplicação dos diplomas não foi acompanhada pelo prestígio e nem sequer pela empregabilidade. Muita gente da minha faixa etária e da classe média tradicional fez faculdade de elite, jamais se humilharia exercendo atividades manuais ou comerciais e agora está desempregada ou subempregada, sem conseguir se sustentar. Assim, esses egressos das universidades de elite ficaram naquela situação das beldades de Hollywood: precisam posar de virtuosos para tentar se destacar.

Ao se tornarem tão lambe-botas, as universidades de elite incendeiam o próprio prestígio. Outrora vistas como nobres, vão se tornando cada vez mais desprezíveis perante os olhos da plebe. Trata-se de uma grande mudança nos valores deste país, e não sabemos que tipo de coisa será considerada nobre pelos brasileiros daqui a dez anos.

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