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Com maior ou menor grau de empenho científico, prova-se que qualquer atividade quotidiana ordinária “é terapia”: até lavar louça
Com maior ou menor grau de empenho científico, prova-se que qualquer atividade quotidiana ordinária “é terapia”: até lavar louça| Foto: Pixabay

Certa feita, resolvi fazer um teste com uma senhora que me aborrecia. O motivo do aborrecimento era ela olhar dicas de saúde e beleza num site natureba e pontificar sobre as coisas que dão câncer. Esse conhecimento era aprimorado pelas amigas. Assim, fui informada de que beber água quente dá câncer e beber água gelada também. Eu é que não vou discutir. Em vez disso, resolvi entrar no jogo e dizer que coisas aleatórias davam câncer. Comecei pela mais modesta, o cigarro na mão dela. Ela concordou e eu segui distribuindo pílulas de conhecimento. Meus comentários de “dá câncer” só geraram protesto quando eu falei que vinho dá câncer.

Foi uma falha elementar, essa. Pois dia sim, dia também, produz-se algum texto ou vídeo sobre os benefícios do vinho à saúde. Algum médico é ouvido e diz que deve-se tomar uma quantia X (sempre modesta) todos os dias, porque faz bem à saúde. O vídeo ou texto é mostrado por uma pessoa à outra, que comenta algo como: “Mas só uma taça”. E vai espalhando pelas redes.

Antes das redes sociais, já era assim com o jornalismo tradicional. Às vezes jornalistas e cientistas ficavam obcecados com alguma comida em particular, tais como a margarina e o ovo. A margarina foi tão amada quanto o vinho, mas caiu em desgraça depois de a gordura trans entrar em cena. Margarina é uma pasta de gordura vegetal, coisa dependente de tecnologia e bem propensa a ter gordura trans. (Depois de aparecer a gordura trans, os governos fizeram regulamentações para reduzir sua quantidade nas margarinas.)

É uma pena que não tenham se ocupado em fazer retratações quanto à pasta de gordura animal que difamaram, a manteiga. Quanto ao ovo, caiu no anonimato. Depois de não conseguirem se decidir se é panaceia ou veneno, deixaram-no para lá.

Causa real da preocupação natureba

Recentemente surgiu a ideia de “produção de conteúdo”. Há tempos existiam blogues e sites, mas eram coisa da diminuta parcela que costumava usar a internet para lazer e informação. A situação mudou com a difusão das redes sociais, quando os blogues e sites passaram a dividir o espaço com jornais tradicionais e disputar leitores. Isso foi impulsionado pelo smartphone na palma das mãos.

Há coisas previsíveis na “produção de conteúdo”. Nos sites naturebas, aprendemos que limão e alho têm propriedades mágicas. Mil dicas prometem deixar você alcalino, embora nenhuma recomende comer pilhas Duracell.

Não é o caso de crer que os smartphones tornaram as pessoas interessadas em naturebices místicas. A verdade é que esses sites, páginas e similares só se tornaram coqueluche porque supriam um interesse do público. E tanto no anárquico mundo online, como no jornalismo tradicional, não é difícil descobrir a causa da coqueluche: preocupação com o peso e doenças associadas à obesidade. Tive muita ocasião de observar que gente do povo come pão integral firme na crença de que esse não engorda, porque é “saudável”. O mesmo se dá com madames às voltas com a balança, que já vi trocarem sal normal por sal rosa “do Himalaia”, que é “saudável”. Se você tiver a chance de crer que basta acrescentar um ingrediente com propriedades mágicas à sua alimentação, irá agarrá-la com todas as forças. Não precisará repensar seu estilo de vida, nem lidar com compulsões ou paladar infantil. Comer coisas “saudáveis”, então, ganha um ar de mandinga ou promessa religiosa: você faz penitência comprando coisas caras e/ou comendo coisas que não são gostosas à espera de alcançar as graças do emagrecimento e da saúde.

Mas o que eu queria registrar é que, por mais despirocados que sejam os remédios, eles apontam para um problema real: mais da metade dos brasileiros estão acima do peso. Nosso povo está gordo, e não será de admirar se a nossa expectativa de vida seguir a tendência dos EUA e começar a cair.

Tudo agora “é terapia”

Atinei que, se eu quisesse, daria para repetir o jogo do “dá câncer”, trocando por “é terapia”. Em vez de dizer que coisas aleatórias dão câncer (água, carne, ovo, cigarro, vinho…), basta trocar por atividades úteis executadas por vontade espontânea. Cozinhar é terapia. Caminhar é terapia. Bordar é terapia. Cuidar das plantas é terapia. Até faxina é terapia!! Com maior ou menor grau de empenho científico, prova-se que qualquer atividade quotidiana ordinária “é terapia”.

Dois apontamentos a serem tirados daí. 1) Tal como a coqueluche natureba, a coqueluche da terapia reflete um problema real, que é o da difusão de doenças mentais como ansiedade e depressão. 2) Essas atividades ordinárias, agora consideradas “terapia”, são extraordinárias para muita gente. Afinal, é possível viver sem cozinhar (comprando comida pronta ou comendo besteira o dia inteiro), sem caminhar (andando de carro ou transporte público) e sem faxinar (pagando uma faxineira). As pessoas deixam de fazer atividades e economizam tempo. Agora, a pergunta de 1 milhão de dólares: o que elas fazem com o tempo economizado?

Se perguntados, a resposta será: "me mato de trabalhar!" Mas, ainda que os workaholics existam, há motivos para receber a resposta com ceticismo. Por exemplo: das muitas atividades ordinárias das quais se diz que “é terapia”, olhar o Instagram não é uma delas. Na verdade, é justo o contrário. Há uma montanha de estudos tratando de efeitos negativos do uso de redes sociais sobre a saúde mental, em geral das mulheres jovens.

Então eu creio que as pessoas parem de fazer atividades que, bem ou mal, levem a um grau de introspecção (não dá para cozinhar distraído) e passem o dia inteiro recebendo e buscando estímulos visuais e sociais, coisas nas quais os sites de pornografia e as redes sociais são pródigas. Daí o povo endoida, e qualquer interrupção nesse ritmo doido é interpretado como “terapia”, já que faz bem.

Diferenças dos sexos?

Naturalmente, boa parte desse cenário que descrevi se refere às fêmeas da espécie. (Especifiquemos enquanto ainda não é proibido dizer que a espécie humana tem macho e fêmea.) No entanto, vale notar que as fêmeas se diferenciam dos machos por falar mais sobre problemas pessoais.

Homens e mulheres ficam deprimidos, mas as mulheres falam muito mais de depressão. O fato de as mulheres reclamarem mais não altera o fato de que os homens se suicidam mais. Do mesmo jeito, as mulheres falam mais de peso, mas o sobrepeso e a obesidade são um problema unissex. Quanto ao abuso das redes sociais, as pesquisas costumam focar nas adolescentes – mas não é difícil imaginar que os meninos tenham problemas análogos com estímulos visuais. Basta supor, por exemplo, que as meninas fiquem idealizando a vida alheia em coisas como o Instagram, onde todos são bonitos e felizes, enquanto que os meninos arranjem um monte de problemas ligados ao âmbito sexual por causa da overdose de pornografia oferecida por sites gratuitos e inesgotáveis como o Pornhub.

Ninguém nega que a conexão proporcionada pelas redes sociais é algo sem precedentes. É preciso notar que, embora a pornografia seja velhíssima, esse modelo viciante de pornografia é algo sem precedentes, de modo que a preocupação com ele não pode ser tachada de puritana.

Qualquer problema ligado à liberação sexual que não possa ser assimilado pelo feminismo é cercado de tabus progressistas. Felizmente, porém, a ciência já estuda os da efeitos negativos do vício em pornografia sobre a saúde mental masculina, em vez de focar somente na saúde mental das mulheres filmadas.

Raiz do problema?

Voltemos às “terapias”. O que mais me chamou a atenção nesse jargão é que ele apaga a ideia de passatempo, distração ou hobby. Eu digo coisas como: “Eu gosto de cozinhar”, “Eu gosto de caminhar” e “Eu gosto de cuidar das plantas”. No jargão atual, o correto seria eu dizer: “Cozinhar é uma terapia para mim”; “Ai, miga, caminhar é terapia!” e “Mana, cuidar das plantas faz bem à saúde mental”.

A diferença entre o que eu digo e o que o jargão diz é que a razão primária para eu cozinhar, caminhar e cuidar das plantas não é a minha “saúde mental”, mas sim, respectivamente, a comida, a locomoção e a as ervas. Todas essas atividades demandam de mim um grau de introspecção que não me permite ficar olhando para o Instagram, que eu nem tenho. (Já escrever, como qualquer trabalho feito no computador, me permite dar umas olhadelas no Twitter e em aplicativos de mensagem. Na verdade, até demanda.)

Mas todas essas atividades que exigem uma introspecção maior podem se transformar em lazer com uma certa facilidade: posso pensar em aprimorar as receitas; posso escolher a padaria em função da beleza do trajeto até ela; posso cuidar de plantas curiosas das quais não tenho a menor necessidade. A transformação em lazer está aí, no desnecessário.

Me pergunto se, quando uma mulher conclui que tal coisa é terapia, ela consegue continuar extraindo prazer daí. Porque se for terapia, é necessário; e se algo é percebido como necessário, aí não há lazer. Deixe um homem fazer um caminho bonito espontaneamente, e ele poderá criar uma rotina por se acostumar a sentir esse prazer. Se a rotina for quebrada, ele sentirá falta. Mas diga a esse homem que ele está obrigado a fazer esse caminho sempre do mesmo jeito até o fim dos seus dias, e com certeza sua capacidade de sentir prazer com isso será afetada.

A vida dessas pessoas ansiosas seria mais simples se elas se acostumassem ao conceito de lazer e arranjassem hobbies que demandam introspecção.

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