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Revista Veja falando de wokismo é uma novidade velha: por que só agora?
| Foto: Midjourney

Este fim de semana, a capa da Veja conseguiu chamar muita atenção pelo texto e pela ilustração ao mesmo tempo. Nela, um militante apontava para a cara do expectador com uma mão de seis dedos (claro indício de uso de inteligência artificial) e as letras grandes diziam “O exagero da patrulha”, seguidas pela legenda: “Em nome do louvável propósito de banir o preconceito da sociedade, a turma que abraça a cartilha do politicamente correto sem limites – o woke – acaba por reproduzir a intolerância que diz combater”.

Não sei quanto aos senhores leitores, mas em mim a capa produziu uma contraditória sensação de novidade velha. É novidade um veículo grande que não tenha o carimbão de DIREITA fazer essa crítica. É verdade que a Veja, até meados da década passada, era uma grande publicação de direita; mas a internet varreu as três grandes revistas semanais noticiosas: a Época, da Globo, acabou; Veja e IstoÉ tornaram-se sombra do que foram outrora. A própria mão de seis dedos revela a decadência do veículo que já teve os maiores capistas – profissão agora em extinção no jornalismo. Para dar mais ares vetustos à situação toda, a repercussão não foi além da capa. Se alguém passou pela paywall para ler a matéria da Veja (disponível para quem tem Vivo Fibra), não parece ter se manifestado.

Bom, a última razão pela qual a frase me pareceu velha é, em parte, pessoal. Desde quando as quotas raciais apareceram, eu sabia que aquilo era moralmente errado (era racismo) e que aquilo fomentaria o mal que dizia combater (os negros mais estudiosos passariam por cotistas sem ser, e os mestiços seriam obrigados a se classificar racialmente). Nunca mudei de opinião quanto a isso. Do caso dos gêmeos da UnB, que rendeu uma baita capa da Veja em seus tempos áureos em 2007, eu me lembro muito bem, e tinha só 17 anos. A causa racial foi o primeiro totem da ideologia woke a se institucionalizar no Brasil, por isso destaco-a.

Em geral não é prudente aferrar-se a uma ideia aos 17 anos e só a abandonar no túmulo em idade avançada. Mas essa é uma ideia simples que até uma criança bem criada no Brasil é capaz de entender: as pessoas não devem ser discriminadas em função de sua raça ou cor. Aquilo que nos EUA foi conquistado a duras penas só na segunda metade do século XX, nós temos de berço há séculos. É verdade que crer numa ideia é diferente de colocá-la em prática; havia, e ainda há, preconceito contra negros no Brasil. Mas quem é flagrado nisso se envergonha. Historicamente, não há orgulho em ser racista na imensa maioria do Brasil, bem ao contrário dos EUA.

Cansei de escrever sobre isso. Não é figura de linguagem, cansei mesmo. Mas não me cansei de ver isso sendo publicado: porque ainda que muitos brasileiros pensassem como eu, poucos escreviam o que pensavam. Aos poucos, até falar isso foi ficando difícil; só com gente de confiança. Assim, manifestar-se contra o neorracismo negro acabou se tornando um ato de coragem, mesmo que essa opinião fosse majoritária.

A causa racial foi o primeiro totem da ideologia woke a se institucionalizar no Brasil

Ainda muito jovem, antes de eu ter redes sociais e de elas serem relevantes no Brasil, me encantei ao encontrar uma coluna de Antonio Risério no jornal impresso A Tarde defendendo uma mãe de santo que estava sendo linchada pelo movimento negro por se dizer marrom, mistura de preto e branco, em vez de preta, como queriam os neorracistas. Anos depois, eu descobriria que Risério publicou um livro bem premonitório contra o racialismo já em 2007, intitulado A utopia brasileira e os movimentos negros. O livro é um clássico de pouco reconhecimento, e passou anos na gaveta antes de ser publicado. Em 2009, sairia outro livro muito importante de um autor brasileiro: Uma gota de sangue, de Demétrio Magnoli. No ano de 2007, saiu a coletânea contra as quotas raciais Divisões perigosas,organizada por Peter Fry, Yvonne Maggie, Marcos Chor Maio, Simone Monteiro e Ricardo Ventura dos Santos.

Creio que nenhuma dessas pessoas se considere de direita. Risério e Magnoli são de formação trotskista. Antes de vir para o Brasil trabalhar na novíssima Unicamp, Peter Fry era um antropólogo inglês na Rodésia entusiasmado com a luta anticolonial dos negros. Dificilmente estaria do lado destro na política inglesa da época, já que na África essa era uma causa ligada ao mundo comunista. Na direita, recordo o historiador monarquista José Murilo de Carvalho, com seu contundente e informativo textinho “Genocídio racial estatístico”, que segue atual.

Esses eram só os autores vivos. Entre os mortos, eu poderia ler o pedetista Darcy Ribeiro ou (muito melhor) o conservador Gilberto Freyre, que são os mais ilustres no tema da miscigenação brasileira. Gilberto Freyre, que estudou antropologia em Colúmbia, escrevia “americano” para se referir às Américas e “estadunidense” para se referir aos EUA, sem que ninguém sonhasse que ele era “esquerdista” por isso.

Bom, falei que essa razão para achar a capa da Veja velha era em parte pessoal porque creio que os leitores também pensem isso há muito tempo, mesmo que porventura não tenham se dedicado a estudá-lo. Agora vamos a uma experiência mais pessoal: a de escrever para desconhecidos na internet.

Em meados da década passada, alguns internautas descompromissados criaram uma página no Facebook para fazer troça com o wokismo antes de existir esse termo. A razão era simples: as ideias propostas por essa ideologia eram risíveis, e quem estava na vida acadêmica tinha muita vontade de debochar delas. A página foi um sucesso de público e, quando eu era apenas leitora, muitas vezes entrava no Facebook só para olhar se eles tinham postado algo. Assim, fiquei muito contente quando Eli Vieira me chamou para escrever lá também, tratando de humanas, já que a maioria dos acadêmicos era de ciências naturais. Isso foi possível porque eu escrevia no meu Facebook sobre o assunto com o meu perfil pessoal aberto. Primeiro eu fiz um perfil era fechado. Quando percebi que as pessoas do meu meio estavam me rechaçando por causa do que eu pensava, calculei que, das duas, uma: ou bem eu viveria submissa a idiotas, ou bem eu ampliava o meu círculo para poder escapar deles. Se tem quem brigue comigo por causa do que escrevo, deve haver quem goste de mim pela mesma razão. A minha decisão de abrir o perfil escrever contra aquilo que chamávamos de identitarismo (e que depois passou a ser chamado de wokismo ou simplesmente de “esquerda”) pareceu um suicídio profissional.

A razão era simples: as ideias propostas por essa ideologia eram risíveis, e quem estava na vida acadêmica tinha muita vontade de debochar delas

De certa forma, foi: eu não conseguiria mais passar num concurso de professora universitária (já escrevi aqui como são tais concursos). Mas eu só cometi esse “suicídio” porque julgava que a vida acadêmica não valia mais nada, consistindo ela agora na sujeição a um bando de idiotas. Também pensei que essa gente estúpida estava fadada a agradar a um grupo pequeno, portanto não poderia se impor à sociedade eternamente. Uma pena que, na tentativa, destruíssem a universidade pública.

Mas bom, voltemos à história da página no Facebook: lembro que entrei em 2015. Depois (não lembro quando) as denúncias começaram a derrubar a nossa página com cada vez mais frequência. Nossas postagens, mesmo quando consistiam somente em texto, eram denunciadas até como “nudez” e derrubadas por isso. Criamos páginas e mais páginas, sempre derrubadas, e acabamos jogando a toalha. Em 2019, quando criei minha conta pessoal no Twitter, isso já tinha acontecido.

Eis que agora, em 2024, de repente é lícito criticar o identitarismo (ou wokismo, ou “esquerda”) sem temer uma grande difamação (com gente pedindo a sua cabeça aos empregadores por “racismo”, por exemplo). Uma revista insossa faz. Tem até filme contra o neorracismo negro concorrendo ao Oscar (refiro-me a American Fiction). Como algo relegado à marginalidade pôde, de repente, voltar à sala de jantar?

Em mais uma importantíssima entrevista, Tucker Carlson apresentou um convidado que oferece uma resposta. Chama-se Mike Benz, é ex-funcionário do Departamento de Estado dos EUA e toca uma fundação em defesa da liberdade online. Este é o site da instituição.

Vou cometer a temeridade de resumir uma hora de entrevista numa longa frase com algumas orações: a internet livre foi uma invenção da inteligência dos EUA para fomentar revoluções coloridas pelo mundo sem ter que gastar muito dinheiro com exército, mas em 2016 a reanexação da Crimeia pela Rússia fez com que a inteligência dos EUA constatasse que a internet livre escapava ao seu alcance, levando-a então a criar, a partir de 2016, um aparato de censura global.

Isto é uma humilde coluna de opinião; o factual, que aprofundaria, matizaria ou negaria o que escrevi acima, cabe aos colegas jornalistas. O que posso apontar é que isso reflete a minha experiência pessoal: em 2015, era muito legal escrever na internet contestando aquilo que hoje chamamos de wokismo – e fazer isso era algo comum dentro da esquerda, já que a opressão woke se fazia sentir dentro da universidade pública, que era cheia de esquerdistas.

O fato de Olavo de Carvalho ter feito muito sucesso na era da internet, portanto, não pode ser atribuído a uma mera argúcia pessoal. Pessoas como Eli Vieira e eu experimentaram, meados da década passada, um cancelamento promovido pela principal plataforma de agitação política sediada nos EUA. Olavo de Carvalho, por outro lado, só fez crescer nas redes sociais, e cresceu sobretudo graças à internet. Ele foi um dos que apresentaram a internet como um terreno livre, por oposição à imprensa e à universidade. No entanto, esse terreno não permaneceu assim: nele passaram a vigorar as mesmas regras anti-woke que as da imprensa comum e até – aos poucos, por meio do ativismo judicial – da jurisprudência suprema. Só quem podia tudo na internet eram os bad boys oficiais, o guru da Virgínia e seus seguidores. Do alto de sua influência, o trabalho de Olavo, longe de ser construtivo, consistiu em destruir o respeito à autoridade da Igreja e das Forças Armadas, as duas instituições tradicionalmente respeitadas pela direita brasileira (como escrevi aqui). Assim como a Nova Esquerda acabou com o que havia de valioso na esquerda tradicional, que era a luta pela melhoria das condições de vida do trabalhador, a Nova Direita acabou com o que havia de valioso na direita tradicional, que era o seu respeito pelas autoridades responsáveis pela coesão nacional. A Nova Direita e Nova Esquerda Woke são forjadas nas redes sociais mantidas pelos EUA – e não nos levam a lugar algum.

O fato é que o wokismo só passou a poder ser criticado porque alguma instância decisória ocidental assim permite. Resta saber se uma outra ideologia igualmente histérica e canceladora não está se erigindo como ideologia do establishment ocidental.

É preciso ter muita clareza quanto ao fato de que este é um momento histórico altamente conflituoso no qual a informação é muito, muito instrumentalizada. Recomendo o texto "A internet não é mais global", que traduzi aqui para esta Gazeta.

Assim, muito me aflige constatar que o establishment ocidental está tendo sucesso em censurar, via histeria, informações que não são do seu interesse, e impor as versões das agências ocidentais como artigos de fé para brasileiros decentes. Só no Twitter vejo comentarem os novos eventos relativos a Assange. Tomem o caso de Navalny, por exemplo. No meu Twitter, sigo uma porção de conta pró Rússia, pró Palestina e terceiromundista de modo geral. Nas condições normais de temperatura e pressão, isso seria algo natural para quem trabalha num jornal; hoje, eu preciso acrescentar que faço isso porque não me intimido com patrulha histérica. Pois bem: apareceram no meu feed vídeos que mostravam Navalny como um evidente racista pregando o extermínio de muçulmanos e desfilando com neonazistas. Na imprensa ocidental, sobretudo a do pseudoconservadorismo mainstream, o homem foi canonizado – chegou a "mártir da democracia", num artigo bem sabujo do City Journal. Mas eu não ia duvidar da versão ocidental para acreditar em qualquer conta russófila que aparecesse no Twitter.

Como eu felizmente não uso minhas forças na procura pelo isolamento, nem pela aceitação do clube dos puros, pedi informações ao jornalista russófilo Lucas Leiroz, que me explicou que Navalny não era neonazista, mas um ultranacionalista agitador do divisionismo étnico na Rússia, e me enviou esta matéria do RT na qual há uma trajetória do político. Em resumo, ele era um militante supremacista étnico russo (nessa época ele gravou o vídeo defendendo o extermínio de muçulmanos – há muitos na Chechênia), foi passar um tempo nos EUA e voltou como ativista anticorrupção dono de ONG. Quem não gostar, pode me xingar; só não espere que eu leve a sério. Caso queira que eu leve a sério, prove que o RT está mentindo. De minha parte, acho preocupante essa tendência do Ocidente de apoiar supremacismo étnico por aí. Não basta o da Ucrânia (que incorporou milícias neonazistas ao Exército), não basta o de Israel (chego a ele no próximo texto), precisa pintar racista de paladino da democracia na Rússia também.

Mas é o que vem sendo feito há muito tempo. Inclusive no Brasil, já que o wokismo, com seus neorracistas negros e indigenistas suspeitos, sempre quis gerar tensões étnicas entre nós e vilipendiar a mestiçagem formadora da nossa nação.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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