Vista do Rio de Janeiro a partir do morro do Corcovado.| Foto: EFE/ Antonio Lacerda
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As redes sociais – ou, antes, as pessoas que as usam – são muito esquisitas. Entre os dias 4 e 6 de julho de 2022, anno Domini, os internautas do território nacional decidiram que Washington Olivetto publicara um texto revoltante, acintoso. Fui a um perfil de estimação que uso para descobrir o que vai na cabeça desse povo. Não foi muito explicativo. Trazia uma foto de boa resolução com o texto e a legenda: “Como é que alguém escreve e publica um texto como este????” Nas respostas, todos indignados. “Inacreditável”, diz um, enquanto outro fala de apologia da meritocracia. Ao menos o texto estava lá. O título é um clichê: “O Rio de Janeiro continua lindo”. Descrevia a vinda do jovem Theo, filho do autor, dos EUA para o Brasil. Antes de começar um curso superior naquele país (curso de cinema), veio passear no Brasil com amigos gringos. Foram recebidos pela antiga babá, que se tornara parte da família, e se divertiram bastante com um dado roteiro. Finda a estadia, Theo concluiu que fez pós-graduação em vida. Pelo meu esquerdês desatualizado, a única coisa problematizável ali era dizer que a ex-babá era parte da família. “Se é parte da família, tem direito à herança”, diz-se, e não sem razão. Eu mesma já vi um senhor chamar a criadagem de uniforme, com aventalzinho e tudo, e apresentar como “parte da família”. Esse tipo de coisa existe e dá vergonha alheia, mas eu não sei da vida de Washington Olivetto para saber se ele trata a ex-babá como uma querida tia-avó solteirona – que não tem direito à herança, diga-se –, ou se bota ela de aventalzinho e paga um salário mínimo. Desconfio que se trate do primeiro caso, já que no segundo ela moraria numa favela e não teria condições de receber o filho do patrão. O único julgamento moral que me ocorre é que eu teria desgosto caso tivesse um filho Theo, estudante de cinema, pós-graduado em vida. Eu esconderia, jamais botaria em jornal. Mas talvez Theo Olivetto esteja para os Theos como Enzo Celulari (1997) está para os Enzos e Luã Mattar (1987) está para os Luans. Moral da história: se você for famoso e influente, não bote nome esquisito em filho, senão uma multidão imita e vira cafona (a propósito: vocês não acham que isso implica uma certa mudança de mentalidade da parte dos pais? Antes, dava-se o nome a um filho tendo em vista alguém importante – seja um imperador ou o avô da criança. Agora dá-se o nome a um filho tendo em vista o filho de alguém importante. Não deixa de ser uma auto-homenagem dos pais, portanto. Em vez de dizerem “quero que meu filho seja como Alexandre, o Grande”, dizem “quero ser eu mesma igual a Claudia Raia”).

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É obrigatório ser infeliz à esquerda

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A busca não foi infrutífera. Descobri que Uóston Oliveira, um colunista negro® d’O Globo, fizera uma coluna em resposta (usemos símbolo de marca registrada, porque o mundo corporativo não aceita todo negro como negro, nem toda mulher como mulher etc. Uns são negros® e outros são só negros. Eu sou mulher, mas não sou mulher®). O texto é uma choradeira sobre como a vida do filho dele no Rio é sofrida, já que vive correndo da polícia. Qualquer pai sensato teria receio de falar que o filho corre da polícia, mas progressistas juram de pé junto que a polícia só persegue negros, e persegue negros só por serem negros. No texto ele fala que o filho sofre muito por não ter dinheiro para ir ao jogo do Mengão, de jeito que só resta ir ao baile funk, onde se diverte cantando proibidões até a madrugada (proibidão é como os cariocas chamam os funks que fazem apologia de facções). Se eu fosse mãe do rapaz, morreria de vergonha de o meu filho participar de bailes funks de patrocínio suspeito, feitos à revelia dos moradores, que impedem os trabalhadores de dormir. Mas progressista acredita que pobre gosta de baile funk, e que botar som de madrugada na porta dos outros não é um abuso do poder paralelo que impera nas favelas graças, em parte, a Edson Fachin.

Seja como for, a mensagem é: o filho de Washington Olivetto só pode ser feliz no Rio por ser branco e rico.

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O que é digno de nota é que o colunista negro® naturalmente não escrevia para os negros da favela. Daí depreendo que os esquerdistas de classe média tradicional, ou de classe alta, precisam procurar uma justificativa para a própria infelicidade. Infelizes, eles já são. Falta procurar algum motivo nobre para lavar essa infelicidade. Talvez tenham lido o texto do ricaço Olivetto e descoberto que seu filho que mora nos EUA veio ao Brasil para desfrutar de prazeres simples e ser feliz. Logo, a felicidade está ao seu alcance: eles não precisariam mudar o governo nem sair do país para serem felizes. Só há duas opções: ou bem eles aceitam que são responsáveis pela própria infelicidade, ou dão um jeito de dizer que Washington Olivetto está errado por ser feliz. Ah, se ele não fosse um alienado, ele seria infeliz também! Quer ver só? Leiam aqui o texto desse negro®.

A bem da verdade, Washington Olivetto é uma das piores pessoas para se apontar como alguém feliz em função da riqueza. Ele é uma famosa vítima de sequestro, ora bolas, e temer quadrilhas especializadas é uma prerrogativa dos mais ricos. Nem de longe a polícia é a coisa mais temível do Rio de Janeiro; e os ricaços têm muito mais a temer do que alguém de classe média.

Infelicidade à direita

Dá para ser feliz à direita, porque a felicidade (pelo menos até agora) não se reveste como a infração de uma obrigação moral. Ainda assim, o documentário Entre Lobos do Brasil Paralelo conduz a um sentimento semelhante. As estatísticas são verdadeiras; os dados preocupantes acerca da legislação, idem. No entanto, a lição passada para o espectador extrapola os dados: em todo o Brasil, a violência impera e o cidadão está encurralado entre lobos. Logo, não dá para ser feliz. Uma babaquice. Cheguei a comentar isso em rede social e não faltou quem me chamasse de alienada.

Cá estou eu, feliz. No meu texto mais recente sobre o Bicentenário, falei das festas e relatei por alto o meu dia com amigos, que incluiu sair da sede do município de Cachoeira e ir almoçar junto às ruínas do Convento de São Francisco, num distrito rural. Se eu fosse doida (ou “consciente”, como queiram), poderia pegar as estatísticas de mortes violentas na Bahia e dizer que não dá para ser feliz na Bahia. Se não dá para ser feliz na Bahia, não vou convidar amigo nenhum para vir aqui em casa, nem daria ideias de lugares afastados aonde irmos. E vejam que a Bahia contraria a tendência nacional de queda na criminalidade. Além disso, Rui Costa concentra o policiamento em Salvador e aqui não tem nada na maior parte do ano. Não obstante, moro numa casa sem medo de ser assaltada. E mais: muita gente tem casa aqui sem morar de fato, deixando-a fechada com tudo dentro, sem alarme nem nada. Essas pessoas em geral moram em Salvador e vêm passar festas ou fins de semana.

Aqui existe tráfico, como em toda cidade brasileira de qualquer tamanho. No entanto, qualquer pessoa minimamente ponderada sabe que uma coisa é morar em favela dominada, outra é morar em áreas de classe média e outra, ainda, é morar em prédio de ricaço cheio de protocolo pra entrar. Dos três, a melhor situação é o de bairro de classe média. Se for no interior, melhor ainda, pois os assaltos são um problema frequente nas cidades grandes o bastante para ser todo o mundo anônimo.

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É claro que existe violência na minha cidade – outro dia me falaram de dois defuntos deixados em uma canoa, para serem vistos . Ao mesmo tempo, é verdade que o padre sai com prataria em dia de procissão. Se o Brasil inteiro fosse o caos que Entre Lobos diz ser, isto seria impossível.

Vou ser “consciente”

Mas digamos então que eu me imbua de consciência crítica e largue a minha alienação. Não vou mais sair de casa, não vou passear pela Bahia, nem pelo Brasil. O mais seguro é ficar em casa: vou botar muitas grades nas janelas e virar a única pessoa da rua com um alarme, chamando a atenção de todos os bandidos da região e passando para eles duas mensagens: que eu sou medrosa ou eu tenho objetos de valor excepcional. Em gente medrosa, bandido monta.

Vou ficar infeliz, presa, dentro de casa, com medo de invasores que eu inadvertidamente atraí. Vou sair só para comprar comida. A minha janela para o mundo será a internet. Nela, reunirei provas irrefutáveis de que o Brasil é horrível, a Bahia é horrível, e minha decisão de ficar em casa é embasada na Ciência. Quando invadissem minha casa, eu usaria o fato para provar que o governo Rui Costa é mesmo horrível, que o PT não presta etc.

Depois, traumatizada, faria terapia pelo Zoom. Vou escolher a dedo a psicóloga mais catastrofista, para que eu não tenha que mudar meu estilo de vida. Sendo mulher, eu encontraria mais um montão de estatísticas pavorosas para provar que eu estaria certa em ser infeliz. E eu não precisaria virar feminista para isso, pois assisti à entrevista da nova presidente da Caixa aos Pingos nos Is e ouvi uma chuva de estatísticas desse tipo, inclusive que um quarto das mulheres são vítimas de violência doméstica.

Aí eu ganharia de todo mundo em matéria de consciência e ninguém me chamaria de alienada. Mas, como esse não é objetivo que escolhi para a minha vida, posso ser feliz.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]