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O episódio protagonizado por Alexandre de Moraes e o ex-ministro Aldo Rebelo durante uma audiência no Supremo Tribunal Federal ultrapassou os limites da normalidade institucional. Trata-se de mais um sintoma do preocupante colapso da democracia brasileira, não por falta de eleições, mas pela crescente corrosão das garantias fundamentais que sustentam o edifício do Estado de Direito.
Não é novidade que as instituições vivem uma crise de credibilidade. O que surpreende é a naturalização do abuso, a transformação do arbítrio em liturgia. E, neste contexto sombrio, o Supremo Tribunal Federal, que deveria ser o baluarte da Constituição, tem se comportado, cada vez mais, como um órgão de exceção.
A audiência em que Aldo Rebelo foi intimidado e ameaçado de prisão por Alexandre de Moraes é expressão cristalina de um modelo de justiça que se afasta da técnica e se aproxima perigosamente da truculência.
Relembramos os fatos: chamado como testemunha de defesa no processo do almirante Almir Garnier, o ex-ministro da Defesa Aldo Rebelo, homem de vida pública extensa e respeitada, tentava explicar o uso de uma expressão corriqueira – “estar à disposição” – dentro do contexto da língua portuguesa.
Foi interrompido abruptamente por Moraes, que, com ar de superioridade, desqualificou a opinião de Rebelo e, diante de sua insistência em afirmar seu direito de interpretação, ameaçou-o de prisão por desacato.
Sim, leu-se corretamente: uma testemunha de defesa foi ameaçada de ser algemada por ousar expressar um ponto de vista em plena audiência. O que isso diz sobre o atual estado da justiça no Brasil?
Ministros que se colocam acima da lei, que tratam testemunhas com desdém e advogados como intrusos, estão corroendo os pilares da democracia. O que se vê é um Judiciário transformado em arena de humilhação, em que o tom autoritário suplanta o equilíbrio que deveria orientar a magistratura. A toga não é escudo para a prepotência.
Ao tentar elucidar o sentido figurado de uma frase, Rebelo foi tratado como moleque. A resposta do ministro do STF – “se o senhor não se comportar, vai preso por desacato” – fere não apenas a dignidade do depoente, mas também o próprio sentido de um processo justo.
O comportamento de Moraes, que chegou a dizer em outra sessão que o Supremo é “meu tribunal”, revela mais do que arrogância institucional: expõe uma mentalidade autoritária que vê no contraditório uma ameaça e na divergência uma forma de insurgência. Não se trata de uma questão pontual ou episódica. É um padrão. É um método.
Dias antes, em outro julgamento, Moraes já havia ameaçado cortar o microfone da defesa de Anderson Torres. Nessa mesma sessão, acusou uma testemunha de mentir e disse, em tom inquisidor, que ela deveria “pensar bem” antes de responder.
Não é mais o juiz como garantidor da justiça; é o juiz como parte da contenda. E, quando o magistrado perde o distanciamento, perde-se também a legitimidade do julgamento.
A Constituição de 1988 não é uma ficção romântica. Ela existe para limitar o poder, inclusive – e especialmente – o poder daqueles que julgam. Quando um ministro do Supremo ridiculariza a liberdade de expressão de uma testemunha, ameaça prender quem ousa raciocinar com autonomia e se apresenta como o proprietário do tribunal, não está defendendo a democracia. Está a feri-la de morte.
É preciso lembrar: o Supremo Tribunal Federal é guardião da Constituição, não seu substituto. Quando ministros assumem a postura de inquisidores, ignoram que sua autoridade não nasce da força, mas da lei
A lei não tolera ameaças, muito menos intimidações. A democracia não é apenas um regime de regras, é uma cultura. E essa cultura está sendo envenenada pela lógica da imposição, pela retórica do medo, pelo autoritarismo togado.
Aldo Rebelo não cometeu desacatos. Cometeu o “crime” de pensar, de articular uma ideia, de fazer uma ponderação linguística – algo elementar para quem presta um depoimento. A reação desproporcional e agressiva de Moraes expôs mais do que um estilo pessoal: revelou o estágio preocupante de uma Corte que se distancia, a passos largos, do espírito democrático.
A política brasileira vive uma fase de polarização radical. Em meio a esse ambiente hostil, o Supremo deveria ser o fiador da estabilidade, o árbitro sereno, a instância máxima de ponderação. Mas, quando seus ministros trocam o equilíbrio pela arrogância, a autoridade pela intimidação, o respeito pela prepotência, deixam de ser referência. Passam a ser parte do problema.
O Brasil não precisa de juízes justiceiros. Precisa de magistrados republicanos. Precisa de homens e mulheres comprometidos com a Constituição, não com agendas pessoais ou cruzadas ideológicas. Democracia não se constrói com silêncios forçados, mas com liberdades garantidas. E o direito à palavra é uma dessas liberdades fundamentais – talvez a mais essencial de todas.
O caso de Aldo Rebelo é um alerta. Não podemos permitir que o STF se transforme em um tribunal de exceção permanente. Porque, quando até uma testemunha passa a ser ameaçada por exercer o direito de pensar, já não estamos mais discutindo justiça. Estamos discutindo o fim dela.
Conteúdo editado por: Aline Menezes




