| Foto: Rudy and Peter Skitterians/Pixabay
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Dos primórdios da filosofia, a disputa é entre Parmênides, que negava a existência de mudança ao dizer que “o que é é e o que não é não é” (ou seja: uma coisa não poderia vir a ser outra), e Heráclito que, ao contrário, negava a estabilidade e considerava que tudo seria devir, transformação. São duas aporias, dois raciocínios que quando levados ao extremo impedem que se entenda de fato a realidade. Quem conseguiu resolver perfeitamente essas aporias foi Aristóteles, que nos ensinou sobre o ato e potência. “Potência” é o que “pode ser”; “ato” é o que é.

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Contudo, a maioria esmagadora das pessoas não estuda filosofia. O resultado, claro, é que elas adotam sem pensar alguma linha filosófica que, se fosse examinada, os conduziria a alguma aporia, algum beco sem saída logicamente absurdo. Há heraclíticos e parmenídicos anônimos e famosos por toda parte, vivendo num mundo em que a mudança é incompreensível ou a estabilidade é impossível. Na forma de ver a sociedade, são essas as visões de mundo que conduzem às duas forças maiores que se digladiam no campo da política.

Os heraclíticos percebem a sociedade e a cultura como em estado permanente de fluxo, de transformação. Para eles, como para Heráclito, não é possível tomar banho duas vezes no mesmo rio; afinal, a água em que nos banhamos anteriormente já está no oceano. São os que se percebem – devido justamente a essa visão em que o agora é, antes de tudo, o momento de plantar a semente da árvore futura – como “progressistas”. As ideologias do século passado eram predominantemente “progressistas”, diferindo apenas na forma do futuro desejado, não na base filosófica em que só existe o fluxo, o devir. A estética fascista, por exemplo, é justamente o futurismo, as formas aerodinâmicas do art déco. A estética comunista, com seu realismo socialista, procurava mostrar o mundo como deveria ser e, por eles, no futuro seria. O presente real não interessava senão como a terra onde estava sendo plantada a semente do futuro.

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A sociedade de consumo capitalista, em que o telefone que ontem era novo e cobiçado hoje é velho e vergonhoso, é a mais completa heraclitização da noção de “padrão de vida”

Finalmente, o mesmo está presente na estética capitalista, que chegou mais tarde por razões de força maior. Na hora do grande “vamos ver” ideológico dos anos 1930 ela estava combalida devido às consequências do crash da bolsa de Nova York. Após a Segunda Guerra haver desviado as fortunas europeias para os cofres americanos, todavia, ela levantou-se com força e rapidamente recuperou o tempo perdido, com uma estética em grande medida baseada no futurismo fascista. A diferença essencial era que ela levava ao individual (o automóvel) o que no fascismo era coletivo (o trem). A sociedade de consumo capitalista, em que o telefone que ontem era novo e cobiçado hoje é velho e vergonhoso, é a mais completa heraclitização da noção de “padrão de vida”.

Já o conservadorismo é o oposto. Ao contrário do progressista, para o conservador é o passado que é luminoso, não o futuro. Não apenas em time que está ganhando não se mexe, mas em qualquer time que não esteja perdendo de goleada. A única razão aceitável para modificações do modus vivendi é a tragédia mais completa: um terremoto devastador, uma mudança climática que impeça que se continue a plantar o que sempre se plantou com os mesmos métodos dos antepassados. Não sendo possível estabelecer uma estabilidade parmenideia radical, resta-lhe ao menos desconfiar a priori de toda mudança e exigir que ela seja muito bem justificada. O adjetivo “novo”, que desperta a excitação do progressista, apavora o conservador: ele não quer ser cobaia de nada. Ao contrário, o maior elogio que o conservador pode dar a algo é “antigo”, que para ele carrega denotações de coisa efetivamente testada, sem surpresas desagradáveis, que resistiu ao tempo, o mais rigoroso dos testes. O velho – idoso – é por definição o sábio, dotado duma sabedoria eterna. Denotar “ultrapassado”, no fim das contas, só faz sentido quando se corre rumo a algo, não quando se está afastando cada vez mais do lar e avançando em direção a um precipício.

Há inúmeros exemplos em que essas visões não examinadas se enfrentam na rua, na urna e na mídia. O mais evidente é o da dita teoria de gênero, em que o conservador fica horrorizado com a ideia de “trocar de sexo” e o progressista horroriza-se igualmente com a impossibilidade de fazê-lo. Neste texto, todavia, tomo outro exemplo, que me parece mostrar diferenças mais profundas: a visão que cada um dos lados tem da existência, ubiquidade, controle estatal, e tudo o mais das armas de fogo.

Tive a ideia de usá-las como exemplo ao ler, da pena do maestro espanhol Íñigo Pirfano, que é “curioso constatar como o homem constrói, ao mesmo tempo, armas e instrumentos musicais. Talvez isso ocorra porque ambos os tipos de objetos exprimem e asseguram o seu instinto de conservação” (grifo do autor). É uma observação curiosa, mais ainda na medida em que para o progressista ela parece completamente desprovida de sentido, enquanto para o conservador maestro ela é em grande medida autoevidente. Para o progressista a música é algo que se projeta no futuro. Mozart é importante por ainda haver quem o toque e ouça, não por ser antigo, por exemplo. Do mesmo modo, para o progressista é quase um dever moral habituar-se a apreciar a “música nova” (que pode variar do erudito atual ao funk carioca, dependendo de seu círculo sociocultural). Já para o conservador, a música, por definição, é o que nos vem do passado e sobreviveu ao tempo, a mais rigorosa das provas. Pode-se ter certeza de que a música de Mozart é boa por ser ouvida há séculos, enquanto os Beatles, por exemplo, com seu parco meio século de história, ainda não são dignos de que se lhes possa atestar a qualidade da produção.

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Mais ainda, diria eu, ocorre com as armas – encontradiças em quase toda escavação arqueológica, em medida ainda maior que os instrumentos. Mais que qualquer outro objeto cultural palpável, muito mais que os instrumentos musicais, as armas são um perfeito exemplo das diferenças de visão entre heraclíticos e parmenídicos, entre progressistas de todas as estirpes e conservadores. Afinal, o que são armas se não projeções cinéticas da posição de cada um? E, mais ainda, projeções cinéticas em potencial, ou seja, futuras? Um revólver ou arco-e-flecha em repouso é um objeto prenhe de significados futuros possíveis, e quem enfatiza o futuro os vê como estando prontos para uso, enquanto quem enfatiza o passado os percebe como inertes. Daí o chavão conservador de que a arma não criará perninhas para atirar sozinha, contraposto ao progressista de que elas só servem para matar.

São visões radicalmente diferentes, explicadas apenas pelo contraponto entre o presente como continuação do passado ou como preparação do futuro. Para o progressista, que percebe o futuro como anterior em importância ao presente, é o uso futuro da arma que salta aos olhos. Já para o conservador, a situação presente da arma é o que importa. Para este a arma é uma espécie de “reserva”, duma certa maneira semelhante a um bom plano de saúde, dinheiro em caixa ou amigos na praça. Ela está ali, quietinha, na gaveta, e seu uso futuro é indesejado. “Melhor ter e não precisar que precisar e não ter” é como ele a percebe. O futuro é incerto e duvidoso, e é para ter a tranquilidade decorrente de saber ser possível defender-se dele e da ameaça que ele traz que serve a arma.

A “pessoa má” do conservador é uma vítima da sociedade para o progressista, que é incapaz de se colocar na posição da vítima futura da agressão armada

Já para o progressista, o futuro por definição é melhor que o presente; daí o sucesso de todos os hegelianismos, com suas teleologias de otimismo irrefreável. Uma arma, então, por definição não combina com o idílico futuro esperado. Ver-se no futuro com a arma na própria mão significaria prever um futuro “malvado”, pior que o presente, em que o mal bateria à porta e se faria necessária a arma de que hoje não se precisa. A única outra opção seria ainda pior: a arma estar na mão de quem o venha a atacar. Ambos os futuros, justamente, são inimagináveis por negarem cabalmente a qualidade primeira do futuro, que é o progresso, a evolução, o desabrochar de mil flores.

Já o conservador a priori desconfia, e muito!, do que o futuro venha a trazer; para ele, assim, a arma é exatamente o oposto. Seu papel neste mundo, por definição, é defender tudo o que ele preza das ameaças que traz o futuro. A arma, destarte, é-lhe uma ferramenta de conservação. Uma arma na mão da ameaça futura torna a ameaça futura mais ameaçadora, e isto a torna ainda mais real. A qualidade primeira do futuro, para o conservador, é ser inseguro e perigoso; a ameaça e o realismo dum futuro imaginado têm para o conservador proporção direta. Daí sua segurança absoluta ao afirmar que a única maneira de fazer cessar o ataque de uma pessoa má armada seja uma pessoa boa armada.

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Para o progressista, essa afirmação é mais que absurda: é cruel. Para ele as pessoas são todas boas, e quando não parecem sê-lo foi a sociedade (a mesma que para o conservador garante a paz, como veremos) que as perverteu. Quando o conservador enuncia o dito acima, o progressista troca automaticamente o sinal da frase. A “pessoa má” do conservador é uma vítima da sociedade para o progressista, que como já vimos é incapaz de se colocar na posição da vítima futura da agressão armada. Já a “pessoa boa” do conservador é a encarnação da mesma sociedade malvada que jogou sua vítima/agressor-inocente naquela triste posição e agora, só para tripudiar do pobrezinho, deseja matá-lo. Aquele que a sociedade perverteu seria feito seu bode expiatório, o que consegue ser ainda pior que a situação inicial. Daí a ironia com que os progressistas tratam expressões comuns na boca de conservadores, como “pessoas de bem”.

Já para o conservador a situação é exatamente a oposta: as pessoas são em geral tidas por minimamente decentes, justamente por a sociedade as ter civilizado. Domado seus maus instintos naturais, sua tendência ao egoísmo, sua luxúria desenfreada, sua cobiça, sua ira desordenada. Se não por introjeção dos valores, ao menos por medo de ser ostracizado ou mesmo preso. As pessoas “normais”, que trabalham, casam e têm filhos, fazem o que sempre foi feito e por isso mesmo são tidas por “pessoas de bem”. O ameaçador, o malvado, por definição, é o ponto fora da curva, a exceção maligna, o elemento antissocial. Daí ser evidente ao conservador que ao dizer “pessoa de bem” ele esteja se referindo à maioria das pessoas.

É isto que explica o apoio do conservador – ainda que não examinado – à facilidade de obtenção de armas de fogo por processos legais. Afinal, os elementos antissociais que ele teme, justamente por serem antissociais, não se comportam de acordo com os padrões de comportamento da sociedade, e desprezam solenemente os devidos processos legais. Para aquelas poucas células cancerosas num corpo social sadio, destarte, as armas estariam sempre à disposição, independentemente da legislação. Faz-se assim necessário garantir à maioria, aos “normais”, às famosas “pessoas de bem”, a conservação da vida e dos bens da família. Isto só se poderia dar pelo acesso legal a armas de fogo, com uma burocracia navegável sem dificuldades maiores que as enfrentadas para poder conduzir legalmente e possuir automóveis ou motocicletas.

Contudo, se lhe for necessário dar exemplos de “pessoas de bem” ele provavelmente os sacará de sua própria classe. Como o raro debate de ideias entre os opostos de que ora tratamos, no contexto brasileiro, sói ocorrer entre membros das classes mais favorecidas, isto abre o flanco para o ataque classista do progressista. Para este parecerá evidente que a “bondade” da “pessoa de bem” do discurso conservador seja mero eufemismo para pertencimento à classe alta ou média alta. É, como em todo o resto da questão, a superposição de dois monólogos de surdos, em que um e outro entendem realidades radicalmente diferentes pelas mesmas palavras. Em que filosofias adotadas sem exame conduzem as pessoas a entrincheirar-se em posições que lhe parecem óbvias, mas que ao ocupante da trincheira oposta parecem delirantes ou mesmo suicidas. Ninguém, evidentemente, convence ninguém; só o que pode acontecer daí é perder uma amizade, ou mesmo o afeto por um familiar. Afinal, para que possa haver uma busca de resolução dialógica é necessário que ambos tenham premissas em comum, e para identificá-las o mínimo necessário é examinar a filosofia subjacente às ideias que se defende. Enquanto o pseudodebate se atém a pseudorrespostas que só fazem sentido para quem já concorda com quem as dá, não há sequer a possibilidade de diálogo real.

Espero ter conseguido deixar claro que o que está por trás desta e de tantas outras diferenças aparentemente apenas ideológicas é uma diferença filosófica de base. É ela que leva à adoção duma ou doutra vertente de pensamento ideológico, ou mesmo de nenhuma (caso do conservadorismo que não tenha mescla de capitalismo/liberalismo progressista ou fascismo). É ela que leva à percepção do ser humano como dotado duma natureza ou até dum sexo imutável, ou como completamente fluido e maleável. É ela que leva à valorização da estabilidade social ou do avanço – tecnológico ou social. É ela, em suma, que conduz quem não examina as próprias premissas a adotar o que muitas vezes acabaria conduzindo, caso levado às últimas consequências, a conclusões com as quais dificilmente concordariam os que alegremente adotam dadas ideologias, movidos pelo espírito de seu tempo ou pelo amor à própria herança cultural.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]