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Robert Dahl, autor de "Sobre a Democracia".
Robert Dahl, autor de “Sobre a Democracia”.| Foto: Autor desconhecido/Domínio público

Palavras são símbolos. Representam coisas, carregam sentidos. Constituem o alicerce da cultura, pois está na linguagem humana a forma de troca de ideias, a expressão de sentimentos e a organização da sociedade como um todo. Não é à toa que, na política, o “lugar de se falar” é, justamente, o parlamento.

Palavras são ferramentas. Constroem, edificam, apontam o caminho. Educam para a fixação dos valores de determinado povo, cujos momentos de heroísmo criaram pontos de inflexão que fizeram com que – normalmente pela força das palavras expressando grandes ideias – as rodas da história ali deixassem marcas profundas.

Palavras são também armas. Seu uso desmedido, que atira “pra todo lado”, deixa feridos (alguns mortos) e coleciona intrigas, inimizades e problemas. Mas é o lado estratégico da “palavra” em sua desconstrução que mais assusta. O uso maquiavélico da guerra cultural que desconstrói o sentido de palavras há muito estabelecidas no inconsciente coletivo, e vai, pouco a pouco, instilando gotas de veneno para transformar seu sentido, ou mesmo deixá-lo vazio. E, certamente, uma dessas palavras é democracia.

Entidades ditas “pela democracia” lutam justamente contra as liberdades fundamentais, baseadas em uma visão coletivista de controle social travestido de “cuidado com as pessoas”

Há algumas semanas uma tal associação “mães e pais pela democracia” promoveu uma cena dantesca no Rio Grande do Sul. Depois de o ano letivo de 2020 ser praticamente perdido e o de 2021 começar a dar os mesmos sinais, o governo estadual, embasado em diversos estudos e análises, resolveu liberar o retorno às aulas, com todos os cuidados de biossegurança e um sistema de revezamento entre os alunos para manter o distanciamento em sala de aula.

Entretanto, a tal associação (pelo que parece, “inspirada” pelo Cpers, o sindicato dos professores estaduais do Rio Grande do Sul) ingressou com uma Ação Civil Pública para impedir o retorno as aulas! O processo deflagrou uma batalha jurídica com um abre e fecha frenético. O bom senso, a educação e a liberdade, felizmente, venceram. Porém, algo que saltou às vistas foi justamente o uso da expressão “pela democracia”.

Mas não é a primeira vez que vemos por aí entidades “pela democracia” que lutam justamente contra as liberdades fundamentais, baseadas em uma visão coletivista de controle social travestido de “cuidado com as pessoas”. Por isso temos de lembrar da palavra (o símbolo e a ferramenta, não a arma) democracia, e com esse objetivo resolvemos fazer um brevíssimo resumo de alguns capítulos da obra Sobre a Democracia, do prestigiado autor Robert Dahl (com edição brasileira publicada em 2001 pela UnB).

“Por que a democracia” – assim Dahl começa o capítulo 5 de sua obra. Lembra que os regimes não democráticos recorriam à máxima de que as pessoas simplesmente não têm condições de saber o que é melhor para si e, consequentemente, de participar de um governo de Estado. Na prática, o que acontecia era que a coerção e o totalitarismo assumiam o controle, não interessando o que a população quisesse ou do que precisasse.

Todavia, a imposição de um pequeno grupo ou de um tirano nunca é a melhor saída, como todos inferimos. Dahl, ao racionalizar sobre o assunto, elenca dez vantagens em prol da democracia: 1. Evita a tirania; 2. Garante os direitos essenciais; 3. Garante a liberdade geral e a 4. Autodeterminação; 5. Autonomia moral; 6. Desenvolvimento humano; 7. Proteção dos interesses pessoais essenciais; 8. Igualdade política; 9. A busca pela paz; 10. A prosperidade.

A grande missão da democracia é evitar os terrores causados por governos autocratas e corruptos como os de Stalin (1929-1953), Hitler (1933-1945) e Pol Pot (1975-1979). Contudo, o autor também alerta que os governos populares também devem respeitar os direitos humanos dos estrangeiros, citando o exemplo da Índia, que, quando colonizada por ingleses, possuía convicções democráticas mais fortes que até mesmo algumas democracias. Lembrando do vício da “tirania da maioria” trazida por Alexis de Tocqueville em A democracia na América, Dahl lembra, também, que o poder da maioria não faz o direito da maioria. A democracia também é um sistema de direitos. Na democracia os cidadãos, inclusive aqueles que representam uma minoria, devem ter o direito de expressar e defender seu voto e seus interesses. As liberdades políticas devem ser estendidas a todos. E o sistema deve proteger tal direito fundamental, entre outros. Além da liberdade de expressão, a liberdade pessoal e todas as liberdades decorrentes devem ser garantidas, pois são fundamentais para a existência de uma democracia.

Regimes democráticos, ao contrário de regimes não democráticos, promovem o desenvolvimento humano de forma mais satisfatória

O autor segue dizendo que, para se viver em uma democracia, faz-se necessário associar-se a outros. E, ao fazer isto, a liberdade de se fazer “qualquer coisa que vier à telha” é suprimida pela liberdade dos outros, nascendo a necessidade de leis. E quais seriam as leis que expressariam o consenso de todos? Dahl menciona alguns critérios: antes da promulgação de uma lei, a garantia de que todos tivessem a oportunidade de apresentar seus pontos de vista; garantia de que todos terão as mesmas oportunidades para discutir, deliberar, negociar e procurar soluções conciliatórias; sem um consenso, que a lei proposta pela maioria fosse promulgada.

Dahl também aceita o desafio de dizer que regimes democráticos, ao contrário de regimes não democráticos, promovem o desenvolvimento humano de forma mais satisfatória. Na democracia, as virtudes da justiça, coragem, honestidade e amor são potencializadas, enquanto regimes não democráticos reduzem o campo em que os adultos podem “agir para proteger seus próprios interesses, levando em conta os interesses dos outros”. Outro motivo importante é que na democracia pode-se alcançar a igualdade política entre os cidadãos. Se olharmos os fatos do século 20, nenhuma guerra internacional entre 1945 e 1989 ocorreu entre países democráticos, isto porque democracias representativas modernas são menos ameaçadoras e mais confiáveis, e seus cidadãos “aprendem as artes da conciliação”. Assim, um mundo mais democrático promete ser também um mundo mais pacífico.

Países democráticos também são mais ricos: os mercados em geral são menos regulados, os trabalhadores são livres para mudar de endereço e emprego, existe alta competitividade entre as empresas. Também promovem a educação de seu povo, instruindo seus trabalhadores. Os tribunais são independentes e os direitos de propriedade, mais seguros, além de os acordos contratuais serem cumpridos com maior eficácia e menos interferência governamental.

Enfim, são muitas as referências trazidas para nossa reflexão. Queremos usar este espaço para o reposicionamento de muitos conceitos (o próprio “Estado laico”, que dá nome à nossa coluna, é um deles) que foram usados como “arma” por grupos identitários, querendo dividir para conquistar, inclusive nos confundindo quanto ao sentido das palavras, numa Babel dos dias atuais.

Na próxima semana voltamos com o restante do resumo dessa obra genial de Robert Dahl, que mostra como a política, a “arte do possível”, consegue acomodar sob esta tensão de interesses conflitantes o estabelecimento da voz a todos, prevalecendo as melhores razões embasadas em princípios sólidos e instituições permanentes.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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