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Diálogos de Páscoa no ruído pós-moderno
| Foto: André Rodrigues/Gazeta do Povo

É Páscoa novamente. A segunda neste momento de pandemia global, embora agora estejamos já mais entendidos sobre os efeitos da doença, conscientizados (em tese, pelo menos) sobre os cuidados a serem feitos, e alguns de nós já imunizados pelas vacinas. Será, ainda assim, um tempo de reflexão com este sabor amargo que o momento tenso que vivemos proporciona.

Em meio a tantos desafios, seja por casos fortuitos como essa pandemia, seja pela forma com que a sociedade brasileira tem agido em relação à mesma, surgem muitas reflexões a respeito dos problemas, e caminhos tentam ser apontados, gerando uma cacofonia incompreensível de vozes na arena pública – cada qual a defender sua ótica de sentimento (em detrimento da razão) nos difíceis tempos em que o espírito da época abomina o que seja um reconhecimento objetivo da verdade.

Porém talvez haja algum tipo de situação que possa acolher vozes aparentemente dissonantes, mas que convirjam e criem um uníssono: a pandemia desnudou fragilidades no sistema constitucional brasileiro, colocado à prova de forma cabal, neste ano incomum, verdadeira “realidade paralela” dentro daquilo que nos acostumamos a chamar normalidade. Talvez, na paráfrase de Baumann, uma normalidade líquida.

Estamos, como sociedade, reféns da decisão de 5.570 prefeitos, 27 governadores, um presidente, 11 ministros do Supremo, 57.839 vereadores, 1.059 deputados estaduais, 513 federais e 81 senadores. Quais as chances desse número todo funcionar como “torcida” em vez de “orquestra”?

A primeira consciência de fragilidade tem a ver com a própria noção do chamado pacto federativo. Vemos, na dificuldade de comunicação (quase invencível) das autoridades dos três níveis (União, estados e municípios) um problema sério. Afinal, o sistema não deveria ser coeso, funcional? A impressão é de que vivemos no tempo das capitanias, agora não mais hereditárias, mas eletivas. Estamos, como sociedade, reféns da decisão de 5.570 prefeitos, 27 governadores, um presidente e 11 ministros do Supremo. Neste “diálogo” institucional, somem-se 57.839 vereadores, 1.059 deputados estaduais, 513 federais e 81 senadores. Quais as chances desse número todo funcionar como “torcida” em vez de “orquestra”?

Isso leva ao segundo problema. Há um desnudar de um conflito sistêmico entre os poderes. À medida que o diálogo se aquece por conta da situação extraordinária pela qual passamos, vemos que os mecanismos de freios e contrapesos para que o poder – que, no dizer de Lord Acton, “tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente” – seja devidamente repartido e a sanha autoritária, contida. Esta situação é perigosa por aqui, justamente porque o Brasil tem um histórico desapego às instituições democráticas que fortalecem uma ordem constitucional. Desde o golpe republicano que derrubou o império em 1889, a cada ciclo de 30 a 40 anos temos uma ruptura institucional que culmina em uma nova ordem constitucional. Quando se começam os assentamentos das bases lógicas da ordem anterior, nova revolução, regime de exceção, para depois uma nova constituinte. É um círculo vicioso sem horizonte de fim.

Isto demonstra quão frágil é entre nós a própria cultura democrática. Somos amantes da nossa liberdade e temos um espírito totalitário em relação à do outro. Justamente por reconhecermos esta natureza débil e inconstante é que temos de amarrar os valores caros à sociedade em um sistema constitucional forte e protegido por instituições – não apenas pessoas – que sejam guardiãs do grande volume de axiomas recebidos como herança das gerações anteriores nesta Terra de Santa Cruz.

Neste passo é que repisamos o quanto a liberdade religiosa, prima inter pares do sistema de liberdades constitucionais, deve ser respeitada – e deve ser tida como um verdadeiro termômetro dos ânimos das autoridades em guardar a ordem constitucional como um todo. Sim, porque a liberdade de crença tem a sua relação primeva ligada à consciência humana – ao todo de valores que a pessoa humana tem como sabendo de si e daquilo que a torna uma pessoa plena. E, normalmente, isto passa pela crença. Quando o Estado consegue atingir elementos tão profundos como “aquilo que me é mais sagrado”, temos aí não apenas um conflito aparente de normas positivas, mas um conflito com uma metanorma, uma norma originária: se o Estado pode interferir aí, pode interferir em tudo.

O espírito da Constituição busca dar uma vida digna, permitindo a cada cidadão que signifique esta dignidade com o permeio da fé e da consciência. Restrições são possíveis; proibição pura e simples, jamais

É neste passo que se tem buscado observar a proteção do sistema de liberdades em meio à pandemia. A liberação da “cogestão” entre entes federativos, esvaziando a liderança na organização nacional do combate à pandemia, feita pelo Supremo Tribunal Federal – que levanta questionamentos profundos sobre a sua legitimidade democrática ao fazê-lo, no exercício do controle de constitucionalidade sob uma ótica de neoconstitucionalismo, onde o ativismo toma lugar da tradicional autocontenção – transformou todo aquele batalhão em cogestores. E aí a confusão reina.

Assim proliferam decretos estaduais e municipais que vão desde restrições (corretas) de atividades até os famigerados lockdowns com toque de recolher e restrição absoluta de atividades como os cultos religiosos (a exemplo do que o estado de São Paulo fez, a despeito da Lei Estadual 17.346/2021, de iniciativa da deputada Damaris Moura Kuo). Estes ensaios de autoritarismo criam conflitos dos mais variados, na dialética errônea de “liberdade religiosa x direito à vida”. O espírito da Constituição busca dar uma vida digna, permitindo a cada cidadão que signifique esta dignidade com o permeio da fé e da consciência. E a igreja, o templo, o culto, é o locus final e definitivo desta significação. Assim sendo, restrições são possíveis; proibição pura e simples, jamais.

Parece que o procurador-geral da República, Augusto Aras, finalmente entendeu isso ao entrar na batalha pelo sistema de liberdades de crença, e o novo (de novo) advogado-geral da União, André Mendonça, fez dessa bandeira um de seus primeiros atos de volta à pasta. Saudações a ambos pela defesa de nossas liberdades. É necessário maturidade, antes e sobretudo, pelo fortalecimento da democracia. E não haverá democracia sem diálogo racional da sociedade, feito pelas instituições e reverberado pelos poderes.

Seja esta Páscoa um tempo de pausa e escuta pela harmonia e pelo fim da gritaria unilateral que tanto mal faz ao combate deste verdadeiro e único inimigo comum, a Covid. Feliz Páscoa!

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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