O ex-governador Sérgio Cabral Filho (MDB-RJ)| Foto: Rodrigo Félix/Arquivo Gazeta do Povo
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O ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral é mais um, mas é simbólico por ser o último de mais de 300 presos da Lava Jato a ser solto e por quanto dinheiro ele embolsou. Enquanto o sistema livra corruptos com anulações e solturas, persegue juízes e procuradores que combatem a corrupção.

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Hoje mesmo se noticiou a instauração de uma investigação sobre Bretas. Numa irônica coincidência, está sendo julgado nesta segunda-feira (19) um procedimento disciplinar que pode demitir onze procuradores da Lava Jato do Rio de Janeiro, que foram as principais autoridades responsáveis por investigar e condenar a corrupção de Cabral.

O caso contra os procuradores está sendo usado para persegui-los com base em uma filigrana. Eles divulgaram uma acusação que foi protocolada, por equívoco com sigilo, por um assessor. Em seguida, o juiz levantou o sigilo, mas a divulgação foi feita enquanto o caso estava formalmente confidencial.

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Voltando a Cabral, ele vai para o apartamento da família em Copacabana, com vista para o mar. Não parecia que seria seu destino quando foi preso preventivamente na 37ª fase da operação Lava Jato, a operação Calicute, em 17/11/2016. Nos anos seguintes, foi condenado em 24 processos a 426 anos de prisão, fora as 10 ações penais ainda pendentes de julgamento.

A corrupção era disseminada no seu governo. O ex-governador do Rio foi acusado de mais de 500 atos de corrupção e lavagem de dinheiro. Ao confessar seus crimes, Cabral afirmou que desenvolveu um “apego a poder e dinheiro”, que “é um vício”.

As acusações e condenações apontam subornos e desvios vindos de toda parte: das obras de urbanização em Manguinhos, na Rocinha e na Favela do Alemão; da construção do Arco Metropolitano; da reforma e da concessão do Maracanã; da construção do COMPERJ e do Porto do Açu; do Instituto Nacional de Traumato-Ortopedia; da Secretaria da Saúde; da construção da Linha 4 do metrô; do contrato de merenda escolar e alimentação de presos; do serviço de transporte de ônibus; da Fundação de Estradas de Rodagem do Rio; do Rio Poupa Tempo e mais.

O ex-governador do Rio foi acusado de mais de 500 atos de corrupção e lavagem de dinheiro. Ao confessar seus crimes, Cabral afirmou que desenvolveu um “apego a poder e dinheiro”, que “é um vício”

Dezenas e dezenas de empresas pagaram mais de um bilhão em propinas. Só na operação Calicute, que foi o primeiro caso que embasou sua prisão, foi acusado de desviar R$ 224 milhões, correspondentes a 5% do valor dos contratos. No caso do PAC das favelas, o Ministério Público apontou sobrepreço de R$ 700 milhões. Mais R$ 300 milhões teriam sido desviados do Instituto Nacional de Traumato-Ortopedia e outros R$ 144 milhões teriam vindo de empresas de ônibus.

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Os rios de subornos fluíram para políticos, funcionários públicos e campanhas eleitorais. Sergio Cabral chegou a ter sozinho 120 milhões de dólares em contas no exterior controladas pelos irmãos Chebar, sem falar nas barras de ouro, diamantes e joias. Apenas as 96 joias compradas em dinheiro na Antonio Bernardo e H. Stern somaram R$ 11 milhões.

Nenhum outro político embolsou tanto dinheiro nos esquemas revelados pela Lava Jato. Cabral esbanjava. Quando recebeu uma condecoração do governo francês em 2012, deu uma festa em Paris para 150 pessoas num restaurante requintado, banhado a mais de 300 garrafas de vinho e champanhe caríssimos, gastando cerca de um milhão e meio de reais. Esbaldaram-se e dançaram com guardanapos na cabeça, rendendo ao episódio o apelido de “farra dos guardanapos”.

Embora a farra dos políticos com o dinheiro público cause maior repulsa pela quebra da confiança promovida pelo agente público, o buraco da corrupção é mais embaixo. A maior fatia do prejuízo não é a das propinas que recebem, mas a dos lucros bilionários proporcionados indevidamente às empresas que pagavam os subornos.

Propinas e lucros indevidos são, por sua vez, uma face da moeda. A outra são as consequências dos desvios para a população. Na secretaria de saúde, os subornos eram de 5% dos contratos e Cabral reconheceu que os desvios deixavam pessoas sem assistência.

De fato, o Hospital Pedro Ernesto, especializado no tratamento do câncer no Rio, em crise, chegou a fechar alas e alas inteiras por falta de recursos. E para pacientes com câncer, a perda da janela de oportunidade para o tratamento pode significar a diferença entre a vida e uma morte lenta e com muito sofrimento.

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Foram desviados mais de R$ 4 bilhões da secretaria responsável por evitar deslizamentos na região serrana no Rio. Ironicamente, a propina era chamada de “taxa de oxigênio”. Esse oxigênio foi o que faltou para as 241 pessoas que morreram em Petrópolis em 2022, soterradas pela corrupção.

A soltura de Cabral foi decidida pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, por três votos a dois, na última sexta-feira. Votaram pela soltura os ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e André Mendonça. Votaram contra os ministros Edson Fachin e Nunes Marques.

Nenhum outro político embolsou tanto dinheiro nos esquemas revelados pela Lava Jato. Cabral esbanjava

A razão da soltura foi dupla: não há condenação definitiva e, para a maioria, não há mais razões que justifiquem a prisão preventiva.

De fato, não há condenação definitiva. A prisão de Cabral é preventiva, um tipo de prisão excepcional que acontece durante o processo quando a liberdade do acusado representa um risco para a sociedade. Não é a prisão decorrente da condenação porque nenhum de seus processos acabou, embora várias de suas condenações já tenham sido confirmadas em segunda instância.

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Desde a proibição da prisão após a condenação em segunda instância pelo STF em 2019, a prisão decorrente da condenação só pode acontecer depois de encerrado o processo, o que acontece após esgotados todos os recursos nas nossas quatro instâncias do Judiciário. Isso pode demorar muitos anos para acontecer.

Como disse o jornalista Felipe Moura, “temos um Judiciário que solta corrupto porque não tem ‘tempo’ de julgar o corrupto, só a soltura”. Temos um sistema de justiça injusto, ineficiente, moroso e promotor de impunidade. No nosso Judiciário, a injustiça está institucionalizada.

Fico imaginando como se sentiram os familiares dos mortos na região serrana, nos hospitais e em assaltos ao verem o STF decidir soltar Cabral. A decisão de soltura deve ser executada nesta segunda-feira e ele passará a cumprir prisão domiciliar. O tempo que ficará em seu apartamento será computado como tempo efetivo de cumprimento de pena, caso algum de seus processos venha a se encerrar sem que sejam anulados e sem que os crimes prescrevam.

E por que a prisão preventiva foi revogada? A maioria dos ministros entendeu que não há fatos contemporâneos, atuais, que justifiquem a prisão preventiva, e que o ex-governador não teria mais influência para seguir praticando crimes. Mas será que isso se sustenta?

Primeiro, os fatos estavam em curso quando Cabral foi preso. Naquele mesmo instante, ele lavava milhões de dólares no exterior. Como algo pode ser mais atual do que isso? Além disso, é preciso reconhecer que a prisão tem um efeito incapacitante, ela dificulta ou impede a prática de novos crimes. Caso se exijam crimes atuais para manter traficantes, estupradores e pedófilos presos preventivamente, todos deverão ser soltos após dois anos presos, durante os quais foram impedidos de praticar crimes justamente pela prisão.

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E como imaginar que a influência de Cabral acabou? Ela foi demonstrada pelas regalias que teve na prisão ao longo dos anos. Em 2017, o ex-governador circulava livremente em Bangu 8. No mesmo ano, na prisão de Benfica, foi montada uma sala de cinema para ele com home theater. Uma vistoria encontrou na sua ala camarão, queijo francês, presunto parma, castanha, bolinhos de bacalhau e iogurte. As visitas que recebia não seguiam o trâmite regular.

Fico imaginando como se sentiram os familiares dos mortos na região serrana, nos hospitais e em assaltos ao verem o STF decidir soltar Cabral

Neste mesmo ano da soltura, foi flagrado mais uma vez com luxos irregulares como biscoitos finos, café importado e comida de delivery incluindo saladas e carnes nobres. Numa anotação constava um gasto de mil e duzentos reais com restaurante num único fim de semana. Próximos à ala da sua cela, foram encontrados R$ 4 mil em dinheiro vivo. Cabral não usava uniforme e na sua sala, compartilhada com sete oficiais militares, havia maconha, celulares e injeções de testosterona.

Entre argumentos a favor e contrários à manutenção da prisão, havia uma margem de liberdade para decidir. A soltura do último preso da Lava Jato, dentro dessa margem de liberdade, passa uma mensagem potente: acabou a era do combate à corrupção. A Justiça não responde mais com a espada aos maiores ladrões do Brasil, aqueles que nos governam. Ela responde com a venda.

Ao mesmo tempo, quem é perseguido são os procuradores do Rio e o juiz Bretas, numa sequência da perseguição aos procuradores e juiz de Curitiba. É uma total inversão de valores. Um mundo está de pernas para o ar: nosso sistema protege bandidos e persegue os agentes da lei.

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