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A primeira-dama Michelle Bolsonaro comemora a aprovação de André Mendonça para o STF, em vídeo divulgado na internet| Foto: Reprodução/Redes Sociais

Durante a campanha presidencial de 1960, da qual saiu vitorioso, o democrata John Kennedy enfrentou certa desconfiança por ser um católico em um país de maioria protestante. Em discurso para uma plateia de líderes evangélicos, ele procurou desanuviar a questão com uma fala que reforçava o compromisso com o secularismo, o princípio da separação entre igreja e Estado: "Eu não sou o candidato católico para a presidência. Eu sou o candidato do Partido Democrata para a presidência que por acaso também é católico. Eu não falo pela minha Igreja em assunto públicos — e a Igreja não fala por mim."

Guardadas as devidas proporções, a recente aprovação de André Mendonça, ex-advogado-Geral da União e ex-ministro da Justiça, para a vaga no Supremo Tribunal Federal (STF) também ensejou desconfiança por causa de sua religião. Mendonça é pastor presbiteriano e torna-se, assim, um raro exemplo de evangélico na história da corte. Antes, houve pelo menos um, Antônio Martins Villas Boas, nomeado em 1957.

O preconceito tornou-se mais explícito, principalmente nas redes sociais, depois da divulgação de um vídeo em que Michelle Bolsonaro aparece comemorando a aprovação de Mendonça pelo plenário do Senado. Nas imagens, a primeira-dama pula, chora emocionada e grita em agradecimentos a Deus: "Obrigada por ouvir nossa oração, Senhor!"

Durante sua sabatina, Mendonça recorreu a argumentos semelhantes aos de Kennedy décadas atrás para firmar o compromisso com o estado laico, que ele definiu como "neutralidade, a não perseguição e não concessão de privilégios por parte do Estado em relação a um credo específico ou a um grupo determinado de pessoas em função de sua condição religiosa".

"Na vida a bíblia. No Supremo, a Constituição", disse Mendonça, apontando também em outros momentos que saberia colocar de lado suas convicções religiosas pessoais na interpretação da carta magna brasileira.

Diferentemente de Kennedy, no entanto, o candidato democrata que por acaso também era católico, Mendonça foi, desde o princípio, apresentado pelo presidente Jair Bolsonaro como o candidato evangélico que por acaso também tinha notório saber jurídico. É o que ele explicitava toda vez que falava em ter um ministro "terrivelmente evangélico" no STF.

No contexto brasileiro, muitos entendem como inadequado escolher um magistrado por causa da sua religião ou para ser, como o próprio Mendonça expressou após a sua aprovação, um representante dos evangélicos na corte mais alta do país. Por aqui, é tabu andar ou falar fora do tablado do secularismo.

Nos Estados Unidos, não. A filiação religiosa dos juízes da Suprema Corte é assunto de intenso debate público desde, pelo menos, a década de 80, quando uma aliança entre conservadores evangélicos, católicos, mórmons e judeus ortodoxos fez surgir o que se convencionou chamar de "direita religiosa", que se empenhou, entre outras coisas, a fazer campanha para alterar o que concebiam como um caráter majoritariamente progressista do tribunal.

Vale ressaltar que nos quase dois séculos anteriores a essa aliança, conforme escreveu em 2020 a jurista americana Nomi Stolzenberg, especialista na intersecção entre religião e leis, a esmagadora maioria dos juízes da Suprema Corte era de protestantes declarados. Apenas seis eram católicos e cinco, judeus. Não faltaram críticas com viés religioso contra os primeiros indicados desses grupos. E, interessantemente, nunca houve um juiz declaradamente ateu na Suprema Corte.

Nas últimas décadas, a aliança conservadora foi bem sucedida em gradualmente alterar o equilíbrio da corte, com a nomeação de juízes afinados com seus valores. Atualmente, apenas três (um católico e dois judeus) são considerados liberais. Os outros seis são cristãos conservadores. Destes, apenas um é protestante. Os outros são católicos que chegaram à corte com apoio de lideranças evangélicas. Entre eles está Amy Coney Barrett, que obteve a última nomeação feita pelo ex-presidente Donald Trump.

A indicação de Barrett suscitou muitas críticas e reavivou o debate sobre secularismo na corte por seu ativismo religioso. A questão não era tanto o fato de Barrett ser uma católica conservadora assumida, mas os indícios de que não possuía o necessário apego ao secularismo, à separação entre igreja e Estado.

Em 2006, por exemplo, ela havia dito que as carreiras da área do Direito eram "um caminho para a construção do Reino de Deus". Além disso, participava ativamente de grupos dedicados a promover uma visão cristã no sistema judiciário e no estudo das leis.

Sua atuação como juíza, no entanto, não fere o secularismo e não difere tanto da de outros conservadores que compõem a corte.

Um dos esportes favoritos na imprensa americana é contabilizar como os juízes votam em temas polêmicos, que refletem o embate ideológico entre conservadores e liberais — o que, nos Estados Unidos, vai além da seara dos costumes e inclui também questões socioeconômicas.

Barrett, por exemplo, votou junto com juízes liberais para manter o Obamacare, a lei de atendimento à saúde originada no governo do democrata Barack Obama. Nesse caso, ela foi contra o que defendia o presidente que a nomeou e boa parte dos integrantes do Partido Republicano.

Em outra decisão recente, os seis juízes conservadores e os três liberais votaram de maneira unânime pelo direito de organizações católicas se recusarem a certificar casais gays para serem pais adotivos temporários. Todos os integrantes da corte entenderam que o Estado não poderia excluir dos programas de adoção as ONGs que fizessem essa discriminação por que isso feria sua liberdade religiosa.

Em outro caso julgado pela corte, oito dos nove juízes decidiram que uma estudante não poderia ser punida por sua escola por postar gestos vulgares e profanos em uma rede social. Aqui, até mesmo a maioria dos magistrados conservadores colocou o direito à liberdade de expressão acima dos valores morais.

Nenhum dos três julgamentos recentes em que o resultado refletiu com perfeição a divisão entre conservadores e liberais na Suprema Corte (6 a 3) diz respeito a questões religiosas ou de costumes. Um deles trata de leis eleitorais, o outro de direito de propriedade e o terceiro de transparência em doações a organizações sem fins lucrativos.

Como se vê, nos Estados Unidos tanto juízes conservadores quanto os liberais muitas vezes tomam decisões que aparentemente contradizem suas convicções políticas e religiosas pessoais, por ater-se com bom senso à interpretação da lei.

Isso não quer dizer que os valores religiosos ou as convicções políticas não têm influência em suas decisões, apenas que não são uma camisa de força a imobilizar sua interpretação da constituição.

No Brasil, um debate mais maduro sobre religião e Justiça poderia fazer mais bem do que mal. Isso não significa abrir mão do secularismo do Poder Judiciário ou a transformação do país em uma teocracia, como fazem crer alguns.

O que importa é saber se André Mendonça, ao vestir a toga e entender que seu mandato será muito mais longevo do que o de Bolsonaro (ele poderá ocupar a vaga no STF até 2057), vai atuar com independência ou se vai julgar sempre de acordo com os interesses daquele que o nomeou.

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