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Morador de Nova York com máscara e galões de água passa pela estátua do “Touro em Investida”, de Wall Street. Mais de 92,000 pessoas foram diagnosticadas com coronavírus na cidade
Morador de Nova York com máscara e galões de água passa pela estátua do “Touro em Investida”, de Wall Street. Mais de 92,000 pessoas foram diagnosticadas com coronavírus na cidade| Foto: BRUCE BENNETT/2020 Getty Images

Há poucas dúvidas sobre o fato de que a dupla crise causada pelo novo coronavírus, na saúde pública e na economia, tem potencial para mudar o mundo. O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), o português António Guterres, disse que vivemos o maior desafio global desde a II Guerra Mundial. A chanceler alemã Angela Merkel fez o mesmo alerta à sua população. Entre os economistas, a discussão é se o impacto econômico vai equiparar ou superar os efeitos da Grande Depressão dos anos 30 do século passado. Já os epidemiologistas avaliam se a tragédia humana será comparável à que o mundo enfrentou no auge da gripe espanhola, em 1918 e 1919. E na política, o que acontecerá? A pandemia pode encerrar o ciclo nacionalista no mundo ou vai acelerá-lo? As democracias serão fortalecidas ou enfraquecidas? Como ficará a relação de forças entre as principais potências do mundo?

Há duas formas de fazer previsões sobre como será o mundo depois que a pandemia tiver se encerrado. Uma delas é analisar o que está acontecendo hoje e projetar o mesmo cenário para daqui a um ou dois anos. A outra é identificar as mudanças que podem ser desencadeadas por diferentes efeitos da pandemia. A primeira forma de análise leva invariavelmente a cenários pessimistas. A segunda resulta em uma perspectiva mais heterogênea, com resultados positivos e negativos ocorrendo simultaneamente.

Eis um exemplo concreto da primeira forma de análise. Na tentativa de proteger suas populações, muitos países abandonaram princípios de solidariedade, de cooperação mútua e de livre mercado e estão adotando a ética do "cada um por si". Uma prova disso é a decisão do governo americano de redirecionar para si mesmo um carregamento com 200.000 máscaras para proteção contra o coronavírus que haviam sido compradas pela polícia da Alemanha. Os equipamentos, produzidos nos Estados Unidos, estavam na Tailândia.

O presidente americano Donald Trump não escondeu sua motivação: "Precisamos das máscaras. Não queremos outros conseguindo máscaras. É por isso que estamos acionando a Lei de Defesa de Produção. Você pode até chamar de retaliação porque é isso mesmo. É uma retaliação. Se as empresas não derem o que precisamos para o nosso povo, nós seremos muito duros."

Atitudes como essa apontam para um mundo em que as nações voltam-se para dentro de si mesmas. Fronteiras são fechadas, a imigração e o fluxo livre de pessoas são desencorajados, políticas industriais são reformuladas para garantir a autossuficiência, o comércio de produtos passa a obedecer a lógica do interesse nacional (não mais da lei da oferta e da procura) e lucros de empresas são reduzidos em prol de mais segurança e previsibilidade na cadeia de suprimentos.

Em resumo, a ideia de globalização como um fenômeno de benefício mútuo para as nações cai em desgraça e a integração entre mercados, meios de produção e povos reduz drasticamente. Governos passam a ter como preocupação central a proteção de empregos dentro de casa. A cooperação entre países é relegada para segundo ou terceiro plano, exatamente como queriam e já vinham defendendo líderes populistas e nacionalistas capitaneados por Trump e por seus similares ou imitadores na Europa e no Brasil.

Nesse cenário, a onda nacionalista — que começou com a vitória do Brexit (o divórcio do Reino Unido da União Europeia, no referendo de 2016), legitimou-se com a eleição de Trump e alcançou o Brasil com a chegada do bolsonarismo ao poder — ganha impulso e se alastra pelos próximos anos em todo o mundo.

A segunda forma de prever o que acontecerá no mundo no médio ou longo prazo com base na análise dos acontecimentos atuais permite vislumbrar cenários menos homogêneos e mais complexos.

Em seu livro Politics in Hard Times — Comparative Responses to International Economic Crisis (em tradução livre, "Políticas em Tempos Difíceis — Respostas Comparativas a Crises Econômicas Internacionais"), publicado em 1986, Peter Gourevitch mostra como as grandes crises econômicas derrubam consensos sobre as melhores políticas para criar prosperidade e provocam um rearranjo do debate sobre os modelos a serem adotados. Mais importante ainda para o meu argumento neste artigo é a constatação feita por Gourevitch de que as respostas aos efeitos das crises não são iguais em todos os países.

Essas respostas variam, segundo Gourevitch, de acordo com os mecanismos de representação (partidos políticos e grupos de interesse), com as regras de funcionamento do Estado e com as ideologias predominantes em cada país. As crises tornam a política mais fluida e, com isso, surgem novos arranjos e coalizões.

No caso da crise dos anos 30, a mais citada nas comparações com o momento atual, Gourevitch mostra que seus efeitos disruptivos levaram a dois padrões de resposta: o padrão social-democrata e o padrão fascista. Assim, enquanto em alguns países a resposta à crise levou à confluência de diferentes interesses da sociedade para a adoção de políticas de bem-estar e de estabilização (como ocorreu nos Estados Unidos do presidente Franklin Roosevelt), em outros a combinação de apelo às massas e aliança dos setores produtivos agrícola e industrial deu sustentação a regimes repressivos e expansionistas (como ocorreu na Alemanha do ditador Adolf Hitler).

Da mesma forma, a atual crise — que ainda mal começou e cujo fim do poço ainda não conhecemos — pode gerar respostas políticas divergentes em regiões distintas do globo. Tudo vai depender da eficiência da resposta imediata dos governos de cada país em defender a vida e a renda de seus cidadãos.

Da mesma forma como, em alguns países, o combate à epidemia está servindo de desculpa para a construção de regimes autoritários, como ocorre na Hungria do premiê Viktor Orbán, em outros o que se vê é a eficácia de medidas de contenção da epidemia adotadas dentro de sistemas democráticos, como na Alemanha e na Coreia do Sul.

No Brasil, observa-se, no estágio atual do enfrentamento da pandemia, coalizões entre grupos políticos antes antagônicos, unidos em torno de alguns consensos básicos sobre o que precisa ser feito para proteger a vida dos cidadãos. Essa coalizões têm levado ao isolamento político do presidente Jair Bolsonaro, que vai no caminho oposto dessas medidas. Tudo isso ainda pode mudar, mas o cenário até agora é o de fortalecimento da democracia, não o contrário.

Minha conclusão é de que as previsões de que o mundo pós-pandemia vai ser dominado pelo nacionalismo e pelo autoritarismo são demasiadamente pessimistas e ancoradas em uma visão de curto prazo. Um rearranjo político vai ser inevitável, mas o mais provável é que ele leve a múltiplos caminhos.

Ainda é cedo para declarar o fim da globalização e a expansão do ciclo nacionalista no mundo. A globalização pode ganhar novos contornos, tornando-se cada vez mais centrada na Ásia, por exemplo, e levando a uma reorganização das cadeias de suprimento, mas vai continuar sua marcha de integração entre mercados e povos. As novas tecnologias vão contribuir para isso. Já o nacionalismo de verve autoritária pode ganhar força em alguns lugares — mas enfrentará resistência redobrada em muitos outros.

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