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Há várias histórias que colhi ao longo da minha carreira que eu poderia contar aqui, mas vou destacar as duas últimas:

O pai chega na escola e orienta a professora do fundamental 1: “Professora, minha filha não gosta de falar em público e nós, em casa, respeitamos isso. Por isso desenvolvemos com ela um sistema de sinais que consiste no seguinte: quando ela pegar na orelha direita é porque ela quer falar, daí você pode perguntar algo para ela. Quando ela pegar na orelha esquerda é porque ela não sabe responder, então você não deve perguntar nada para era. E quando ela pegar no nariz, é porque ela quer sair mas tem vergonha de pedir, então você deve deixa-la sair. É só isso. Basta ficar bem atenta nela e tudo funciona bem. Ela é uma menina tímida mas muito inteligente. O sonho dela é ser juíza. Fazemos tudo por ela.”

A professora, regente da turma de 28 alunos, olha perplexa para o pai, aquele senhor de terno azul marinho e gravata combinando, com sorriso largo e cabelos bem cortados. Olha estupefata para aquela segurança e leveza de um homem que está fazendo aquilo com a filha, acreditando que é um bom pai, um ótimo pai, um pai atencioso e prestativo, um pai extremado, enfim. Ela olha e não acredita. Está perto da hora do início da aula e então ela diz somente: “Pode deixar, pai. Faremos como você está pedindo.”

A menina, seus já 19 anos, procura-me, desconsolada: Professor, há um jeito de o senhor ligar para o meu pai e dizer para ele que na semana de férias nós podemos descansar?

Ora, respondo. Mas então por que se chamaria de semana de férias? E ela: Porque ele acha que é vagabundagem minha, que eu invento isso para fugir dos estudos. Ele diz que eu não vou passar mesmo porque não me esforço o suficiente.

A menina era uma de nossas melhores alunas. Vinda do interior, morava em um apartamento perto do curso, sozinha. A unhas, já roídas várias vezes,o cabelo quebradiço da falta de trato, os olhos fundos das noites mal dormidas e dos dias longos e cansativos. E o medo de ir para casa misturado ao desejo do aconchego da mãe, do olhar orgulhoso do pai. Mas o medo prevalecia.

Não, não posso ligar para ele, respondi. Peça para a direção da escola. Ou diga você mesma, você sabe o que está fazendo e o quanto vem se dedicando. Não é possível que seu pai não veja seu esforço, além do seu talento.

Ela me olhou desconsolada: Há três anos tento entrar em medicina e sempre fico por quase nada. Acho que se eu relaxasse um pouco mais eu conseguiria.

Diga isso a ele, eu insisti.

Outro olhar de cortar o coração e então: Meu pai diz que isso é só desculpa para encobrir minha vagabundagem. Professor, será que eu posso mesmo descansar essa semana de férias ou devo ficar revisando a matéria?

 

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