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Lojas fechadas em Curitiba.
Lojas fechadas em Curitiba.| Foto: Lineu Filho/Tribuna do Paraná

Os contratos administrativos brasileiros passam por crise nunca dantes enfrentada. Os mecanismos tradicionais de contenção de prejuízos, que possibilitavam a sobrevivência dos contratos e respectiva prestação dos serviços, estão submetidos a desafios inéditos. Tanto os serviços públicos (contratos administrativos para prestação de serviços à população) como as empreitadas de obras ou de serviços.

Neste cenário em que a economia e a saúde pública são postas diante de crise de proporções inéditas e, por enquanto, incalculáveis, os instrumentos gestados no século passado mostram-se pouco (ou nada) eficazes. As ideias tradicionais de teoria da imprevisão e força maior têm experimentado o teste da realidade e nem sempre resolvem situações nas quais ambas as partes – contratante e contratado – experimentam o impacto da crise econômico-financeira.

Isto é, a economia pandêmica em que vivemos faz com que ambos os polos da relação contratual vejam-se em situações de extrema fragilidade (nenhum tem liquidez nem perspectiva de receita imediata, por exemplo), a inibir soluções tradicionais. Tanto contratante quanto contratado foram vulnerabilizados por fatos estranhos à sua esfera jurídico-econômica. Melhor: quem está no olho do furacão tem enormes dificuldades em visualizar soluções que ultrapassem a tormenta em que vivemos.

A economia pandêmica em que vivemos faz com que ambos os polos da relação contratual vejam-se em situações de extrema fragilidade

O detalhe mais sensível está no fato de que estamos a tratar de obras e serviços necessários, se não essenciais, à transposição da crise e à recuperação socioeconômica. Pensemos em alimentos fornecidos a escolas e hospitais públicos; em infraestrutura de transporte; em transporte coletivo de passageiros; em portos e aeroportos. Todos esses bens e serviços precisam ser preservados ao máximo, por meio de ações proativas que provejam soluções inovadoras que nos ajudem a vencer a crise.

O que nos leva de volta aos instrumentos tradicionais de solução de impasses em contratos administrativos: processos administrativos e ações judiciais. A respeito desta ordem de alternativas, uma coisa é certa: não são eficazes para resolver os problemas que se avizinham. Quando muito, serão eficientes para criar outros problemas, muito mais sérios.

A hora é a de implementar soluções acolhidas pelo direito brasileiro (Código de Processo Civil; Lei de Licitações; Lei de Concessões; Lei de PPPs; Lei de Mediação, Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro etc.), que, ao prever a possibilidade de o gestor público negociar, concretizou uma faculdade a mais no respectivo feixe de competências administrativas. O princípio da legalidade prestigia a competência discricionária negocial, privativa da autoridade que celebrou o contrato. Essa constatação permite que se fale de negociações administrativas dinâmicas e, se estas não tiverem êxito, daquilo que chamarei de crisis dispute boards.

As negociações administrativas são desenvolvidas diretamente entre as partes no contrato e podem levar a soluções definitivas ou provisórias (enquanto durar a crise). Desde que transparentes e republicanas, disponibilizadas por meio de meios eletrônicos, podem implementar soluções inovadoras que preservem o contrato administrativo. As partes não negociarão posições (“certo x errado”; “credor x devedor” etc.), mas interesses (“como preservar o contrato?”; “como executar da forma hoje autorizada pela economia real?” etc.).

Mas atenção: mais do que nunca, as negociações administrativas precisam levar em conta a empatia. As partes não devem mirar apenas os próprios interesses (legítimos, porém egoístas), mas sim o interesse de quem está do outro lado da mesa – e daqueles que são a razão de existir dos contratos (os cidadãos). O contratado privado precisa do pagamento hoje – mas para quê? Se for para distribuir lucros, talvez possa esperar. Todavia, se for para comprar insumos a fim de prestar o serviço à população carente, a perspectiva é outra. O mesmo se diga quanto ao cronograma de obras em face de diminuição radical de arrecadação – e da contenção de empenhos orçamentários devido à necessidade da compra de máscaras e respiradores. Saber quais são os interesses do outro negociador é fundamental para poder negociar. Empatia é fundamental.

A outra modalidade de solução é aquilo que aqui denomino de crisis dispute boards. Os dispute boards – ou comitês de solução de disputas – são técnicas não adversariais criadas para permitir a execução de obras de alta complexidade.

Momentos históricos inéditos, como a crise que ora vivemos, instalam desafios de igual envergadura e demandam soluções criativas

Em vez de as partes litigarem cada vez que surgir um impasse na execução, constituem um painel formado por terceiros imparciais (de usual três, um dos quais advogado), que analisam dinamicamente os desafios e fornecem soluções – as quais, a depender da definição contratual prévia, podem ser vinculantes ou não vinculantes. Como Flávio Amaral Garcia leciona, “a confiança é o cimento do dispute board, porquanto são as próprias partes que indicam os profissionais e experts responsáveis pelo monitoramento e acompanhamento da execução contratual”.

Solução criada e testada em contratos de construção de obras complexas (e estendidos para concessões e parcerias público-privadas), podemos aplicar a sua lógica para situações de crise. O que proponho é a criação de comitês de solução de controvérsias específicos para a atual situação de crise: os crisis dispute boards.

Por meio dessa modalidade de solução de conflitos, as partes constituem um comitê de solução de conflitos da crise, formado por terceiros imparciais com a qualificação técnica necessária, a fim de conhecer dos problemas e fornecer soluções imediatas. Tal comitê teria duração predeterminada – por exemplo, seis meses, prorrogáveis por mais seis – e suas decisões seriam vinculantes (sem qualquer possibilidade de responsabilização de seus membros, a não ser em casos de erro brutalmente grosseiro, dolo ou prática de atos criminosos).

O comitê poderia ser formado com lastro em termo aditivo ao contrato administrativo – mas nenhum mal faria que ato administrativo regulamentar (decreto ou portaria, a depender da autoridade) autorizasse a sua instituição. Sua formalização prévia deve ser pública e levada a conhecimento dos órgãos de controle, que podem acompanhar (sem voz nem voto) os trabalhos técnicos do comitê.

Logo, em vez de limitarmos a racionalidade exitosa do dispute board à execução de obras complexas, que tal aproveitarmos o modelo para criar soluções dinâmicas a desafios socioeconômicos complexos quando da execução de todos os contratos administrativos? Momentos históricos inéditos, como a crise que ora vivemos, instalam desafios de igual envergadura e demandam soluções criativas. Arregacemos as mangas da inovação para gerar soluções para as contratações administrativas.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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