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O técnico da Suíça, Murat Yakin, fala durante uma coletiva de imprensa no Qatar National Convention Center (QNCC) em Doha, Catar, em 23 de novembro de 2022.
O técnico da Suíça, Murat Yakin, fala durante uma coletiva de imprensa no Qatar National Convention Center (QNCC) em Doha, Catar, em 23 de novembro de 2022.| Foto: EFE

Hoje, dia dois de dezembro, as seleções masculinas de futebol da Sérvia e da Suíça disputam uma vaga na próxima fase da Copa do Mundo. O embate é marcado por um forte componente político, derivado da presença de muitos descendentes de albaneses e de kosovares no time suíço. Essa rivalidade possui diversas razões e origens, algumas bastante recentes, e que por vezes não são suficientemente explicadas. Do que se trata a chamada questão do Kosovo e como ela se faz presente na Copa do Mundo?

Muitos leitores devem se lembrar da imagem do jogador suíço de origem albanesa-kosovar Xherdan Shaqiri fazendo um sinal com as mãos, representando a águia de duas cabeças albanesa, ao marcar um gol pela Suíça contra a Sérvia na Copa do Mundo de 2018, na Rússia. Aquela foi uma das imagens mais marcantes do torneio e acirrou ainda mais uma rivalidade que, ao primeiro olhar, não faria muito sentido. Suíça e Sérvia não são países vizinhos e não disputam títulos uma contra a outra. Não é como Brasil e Argentina.

Embora os atletas tenham dito publicamente que trata-se apenas de mais um jogo, eles o fazem apenas por orientações de suas federações, temendo represálias esportivas ou financeiras. Após o jogo contra o Brasil, o primeiro da Sérvia no atual torneio, foi colocada no vestiário sérvio uma faixa com o mapa da região de Kosovo, com a bandeira da Sérvia pintada por cima e um letreiro que, traduzido, dizia “sem rendição”. O recado está claro e o jogo certamente será intenso. 

Perspectivas múltiplas

Lembrando que, em resumo, para a Sérvia, Kosovo é um território sérvio que tornou-se independente de maneira ilegal, por ter uma expressiva população de origem albanesa que pretende unir o território ao Estado da Albânia, em um “roubo” de território por outras vias. Mais que território sérvio, Kosovo é o berço da nacionalidade sérvia, o lugar onde, em 1389, os príncipes sérvios se uniram pela primeira vez para lutar contra um inimigo comum, o império otomano.

Os albaneses seriam, inclusive, não apenas associados aos otomanos nesse imaginário nacional sérvio, mas também “fruto” do domínio otomano nos Bálcãs. Dezenas de grãos-vizires otomanos eram de origem albanesa, uma população que aderiu em massa ao Islã, incluindo algumas das principais lideranças da História otomana. Ou seja, além da Sérvia classificar, juridicamente, a independência do Kosovo em 2008 como ilegal, a separação ainda afeta diretamente o cerne da nacionalidade sérvia.

Por outro lado, na perspectiva dos albaneses, eles são a legítima população nativa da região. Que sim, passou por transformações em um processo histórico de milhares de anos, mas, ainda assim, seriam os verdadeiros habitantes originários. Uma dessas transformações é, por exemplo, a adesão ao Islã, citada anteriormente e razão para antagonismos em determinados períodos da História. Talvez o melhor exemplo público desse sentimento nativista albanês tenha sido dado pela cantora Dua Lipa, em 2020.

A artista nasceu em Londres, de pais kosovares albaneses de Pristina, capital do Kosovo. Naquele ano, ela postou em suas redes sociais uma ilustração que incluía um mapa da Grande Albânia com a legenda “autóctone”, ou seja, naturais da região. O mapa representava como território albanês não apenas o atual Estado da Albânia, mas também o Kosovo e partes das atuais Sérvia, Grécia e Macedônia do Norte, países com minorias albanesas significativas, especialmente no caso norte-macedônico.

A cantora retirou o post de suas redes após receber críticas por ele expressar visões nacionalistas chauvinistas e expansionistas. Ela também divulgou um manifesto de kosovares intitulado “Por que Kosovo não é e nunca será Sérvia”, redigido em resposta ao lema nacionalista sérvio "Kosovo je Srbija", “Kosovo é Sérvia” em português. Em suma, para os albaneses, ou, ao menos, parte deles, a independência de Kosovo não se trata de “roubar” território dos sérvios, mas dos “verdadeiros ocupantes” recuperando autonomia. 

Direito e política internacional

Curiosamente, o discurso albanês, de certo modo, não contradiz todo o discurso sérvio. Uma das questões que a Sérvia argumenta é que não faria sentido um Kosovo independente pois, em um mundo de Estados-nacionais, não existe um “povo kosovar”, mas um povo albanês. E já existe o Estado-nacional albanês. O maior partido político do Kosovo, por exemplo, usa como sua bandeira a bandeira nacional albanesa, sem alteração. A bandeira do Kosovo é pouquíssimo vista em seu próprio território. 

A independência unilateral do Kosovo em 2008 também gera dois fenômenos na política internacional. Primeiro, ela não é tão unânime quanto pode parecer. Diversos países não reconhecem o Estado do Kosovo. O Brasil é um deles, pois o país, historicamente, rejeita o reconhecimento de movimentos separatistas, defendendo saídas pacíficas pela mediação e pelo Direito internacional, como a necessidade, antes do reconhecimento brasileiro, da concordância da Sérvia.

Outro motivo que faz o Brasil não reconhecer Kosovo é evitar criar precedentes internacionais em relação a eventuais separatismos no território brasileiro. Mesmo motivo que faz com que a Espanha não reconheça a independência kosovar, evitando gerar precedentes contra si mesma nos contextos, por exemplo, do País Basco e da Catalunha. E, claro, sem a anuência espanhola, os caminhos de Kosovo em relação à OTAN ou à União Europeia estão bloqueados.

No âmbito da ONU, a maior resistência é da Rússia, membro permanente do Conselho Segurança, que não reconhece Kosovo em respeito à aliança entre Sérvia e Rússia. O que leva ao segundo fenômeno. A Rússia alega que a independência do Kosovo abriu um precedente perigoso e que, pelo mesmo critério, os países que reconhecem o Kosovo como independente deveriam reconhecer, por exemplo, a Crimeia como russa. Quando do referendo da Crimeia, em 2014, o governo russo, explicitamente, citou o caso kosovar.

Claro que isso é um breve resumo de séculos de História nos Bálcãs, incluindo o cerne das identidades tanto de sérvios quanto de albaneses. A questão é que uma mesma região tem populações tanto sérvias quanto albanesas e, nos séculos, fez parte de diferentes entidades, desde reinos locais, até grandes impérios, como o Otomano, até Estados contemporâneos, como a Iugoslávia. Ambas as nacionalidades reivindicam esse território, em um cenário que se agravou após a década de 1990.

Se a declaração de independência do Kosovo é de 2008, o processo de independência da região começa em 1998, quando milícias albanesas kosovares iniciam a luta armada contra os sérvios, ainda organizados na antiga República Federal da Iugoslávia. Os albaneses kosovares recebem muito apoio internacional, incluindo bombardeios da OTAN contra Belgrado, então capital da Iugoslávia e hoje capital da Sérvia. A legalidade e a legitimidade desses bombardeios também foi, e é, questionada.  

Refugiados e a bola

O alegado motivo da intervenção ocidetal foi a proteção dos kosovares albaneses contra um possível genocídio a ser cometido pelos sérvios, suspeita consequência tanto da violência da guerra da Bósnia, com a tentativa de genocídio dos bosníacos, quanto do fato dos sérvios serem liderados pelo fascista Slobodan Milosevic. E é nas guerras da ex-Iugoslávia, cuja relação direta com o Kosovo começa em 1998, que está a origem do fato de muitos jogadores originários dos Bálcãs defenderem a Suíça.

Embora algumas famílias de origem iugoslava já vivessem na Suíça, o país recebeu muitos refugiados das guerras da ex-Iugoslávia. Hoje, cerca de 7% da população suíça é de origem da antiga Iugoslávia. Metade deles são albaneses, principalmente albaneses kosovares. Sérvios e bosníacos também vivem ali em números significativos, seguidos de croatas, eslovenos e, finalmente, macedônios. Boa parte dessas pessoas foram acolhidas em programas oficiais do Estado suíço, importante dizer.

Na Copa do Mundo de 2014, disputada no Brasil, o técnico da Suíça era Vladimir Petković, um bósnio-suíço nascido em Sarajevo e que reside no país alpino desde 1987. Naquela ocasião, um terço dos atletas da seleção suíça tinham origem balcânica. Não é difícil entender o motivo. Em uma multidão de meninos refugiados, de regiões em que o futebol é o esporte mais popular, muitos deles enxergarão o esporte como um sonho de ascensão social e material. No mínimo, um escapismo dos traumas da guerra.

Hoje, embora a proporção de jogadores da seleção suíça de origem da ex-Iugoslávia seja menor do que era em 2014, alguns dos principais jogadores da equipe são da região. Haris Seferovic, filho de bosníacos, Granit Xhaka, filho de albaneses kosovares, e Xherdan Shaqiri, nascido em Gjilan, no Kosovo, que chegou na Suíça com um ano de idade. E eles levam consigo sua identidade, sua herança familiar, o que inclui potenciais traumas, sejam individuais, sejam coletivos.

Para os sérvios, por outro lado, eles podem significar a população que quer roubar da Sérvia sua terra ancestral, onde a nacionalidade surgiu. Novamente, é uma questão que afeta o cerne de duas identidades nacionais, expressa dentro do campo de futebol e no maior torneio entre seleções nacionais do planeta. O resultado do jogo não é possível prever, tampouco se a partida vai transcorrer tranquilamente. É muita História em comum em jogo.

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