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Bandeiras russa e americana, lado a lado, em Moscou. Foto: Mladen Antonov/AFP
Bandeiras russa e americana, lado a lado, em Moscou. Foto: Mladen Antonov/AFP| Foto:

Teremos uma nova corrida nuclear vindo aí? Este foi o pensamento que dominou parte da mídia, especialmente nos EUA, nos últimos dias, com o anúncio do governo Trump de que pretende sair do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário, conhecido pela sigla em inglês INF. Assinado em 1987, por Mikhail Gorbachev, líder da então União Soviética, e Ronald Reagan, então presidente dos EUA, o acordo foi recepcionado posteriormente pela Rússia, garantindo que esteja em vigor até hoje.

O acordo aboliu mísseis com alcances entre 500 e 5.500 quilômetros, assim como eventuais lançadores móveis. Nos seus primeiros anos, o tratado proporcionou a destruição de mais de dois mil mísseis que se encaixavam nesses critérios, de ambos os lados. Essa, semana, entretanto, 30 anos depois da entrada em vigor do acordo, o governo dos EUA anunciou que pretende se retirar do acordo, e o assessor John Bolton foi à Rússia para expor a posição de seu governo.

Cuba

O mês de Outubro de 1962, com a Crise dos Mísseis de Cuba, teve impactos retumbantes no século 20, muitas vezes pouco lembrados ou, no Brasil, colocados em um pacote sobre Cuba e a Guerra Fria. Por 13 dias, o mundo esteve perto de um conflito entre as duas superpotências e o governo dos EUA quase passou por uma inédita tomada de poder pelos militares.

Enquanto a União Soviética estava cercada de aliados dos EUA, o país americano estava cercado por dois oceanos e pelos parceiros do Canadá e do México. Isso quer dizer que os soviéticos precisavam de mísseis balísticos intercontinentais (ICBM), lançados de seu próprio território, para atingir os EUA, enquanto as forças ocidentais possuíam mísseis de alcance intermediário em bases próximas, como na Turquia.

Esse fato também significava que um míssil dos EUA, lançado da Turquia, atingiria as principais bases soviéticas na Crimeia em dois, três minutos, enquanto um ICBM soviético precisava de cinco ou seis vezes mais tempo para sobrevoar o Ártico e atingir o continente americano; a diferença de tempo dava vantagem em alerta e precauções.

Por isto que, quando Cuba e URSS se aproximam, após o fim das negociações entre cubanos e os EUA, os soviéticos adoraram a oportunidade para colocar mísseis que poderiam atingir Washington e Nova York também em questão de alguns minutos. Embora fossem movimentos calculados, não significa que aqueles 13 dias de crise seriam lembrados com saudade ou para serem revividos.

Ao contrário. A Crise dos Mísseis trouxe negociações importantes; a imediata foi justo a troca de retirada de mísseis. Os soviéticos retiraram seus mísseis de Cuba, enquanto os EUA tiraram seus mísseis da Turquia. Outra, mais perene, foi o estabelecimento da linha direta entre Moscou e Washington; todas as negociações, incluindo a retórica quente, durante a crise, ocorreram no âmbito da ONU.

A linha direta é popularmente chamada de telefone vermelho, embora não fosse nem um telefone, nem vermelha; era um aparelho de telegrama. Outra consequência foi a introdução da ideia de controle dos arsenais nucleares das potências. Oras, tanto os EUA quanto a União Soviética tinham capacidade de destruir a vida na Terra por centenas de vezes, seria necessário ter um poder tão redundante, que causasse crises como aquela?

Não se trata apenas de evitar a proliferação de armas nucleares, com novos atores nacionais adquirindo esse armamento, intenção do Tratado de Não-proliferação de 1968, o TNP, mas de diminuir os arsenais já existentes. O principal legado nesse sentido foram as conversas Strategic Arms Limitation Talks (Salt), entre 1971 e 1979, que produziram dois acordos, embora o segundo nunca tenha entrado em vigor.

No final dos anos 1980 e início dos anos 1990, o espírito de evitar uma catástrofe nuclear e diminuir as bravatas agressivas da Guerra Fria foi retomado e uma sequência de acordos para limitação de arsenais foram assinados: o INF, já citado, e os dois Tratados de Redução de Armas Estratégicas (Start), em 1991 e 1993; o segundo não entrou em vigor e foi substituído por outro acordo, assinado em 2002.

A lógica do INF, ao abolir mísseis intermediários, era a de abrir mão de crises como a de Cuba, dispensando o uso de mísseis que tivessem que ser colocados próximos ao inimigo. Os mísseis de curto alcance, em submarinos, e os ICBMs, em bases terrestres no próprio território, seriam mais do que suficientes, e não causavam o risco de mais uma crise por ninguém querer mísseis inimigos em sua vizinhança.

O rival não é a Rússia

Estes acordos limitam a quantidade de ogivas nucleares de cada potência, em uma margem de segurança extremamente além do razoável. Nenhum desses acordos limitava a existência de um vetor de entrega de tais ogivas como o INF, então, as potências ainda contavam com bombardeios aéreos, ICBMs, mísseis lançados de submarinos, uma vasta gama em seu arsenal. Isso só mudou com o New Start, de 2009.

O New Start já foi criticado por Trump, assim como basicamente qualquer outro acordo assinado na gestão Obama; o atual presidente dos EUA já sinalizou que não pretende renovar o texto, em 2021, se for reeleito. Além disso, Trump acusa a Rússia de não cumprir os acordos e violar os textos assinados.

No caso do INF, as violações russas seriam pelo desenvolvimento de mísseis de cruzeiro polivalentes, que cumprem uma função autorizada nos acordos e podem facilmente ser convertidos para o uso proibido, de médio alcance. Os russos, por sua vez, acusam os EUA do mesmo tipo de violação. Além disso, o espírito do INF já ruiu desde o início do novo século, com a expansão da OTAN rumo ao leste europeu e o estabelecimento de mísseis nucleares russos no enclave de Kaliningrado.  

A questão, entretanto, é outra. Mesmo obedecendo os acordos, Rússia e EUA possuem arsenais amplos e modernos. Ambos os países sabem, seus governantes e militares sabem, que um conflito entre os dois seria catastrófico. O que importa, para os EUA, hoje, é quem não está nesses acordos, a potência que é percebida como a rival em ascensão pela influência geopolítica mundial: a China.

A China possui muitos ICBMs, mas ainda em estágios precoces de desenvolvimento, nada como os novos mísseis russos. Além disso, mísseis desse tipo são caros para desenvolver, construir e armazenar; a Georgetown University chama os complexos de mísseis chineses de “Grande Muralha subterrânea”, uma grande rede de túneis e bases em montanhas. Por tais razões, de custo e de tecnologia, qual o principal foco do programa balístico chinês?

Mísseis de médio alcance, espalhados pelo país, apontados para os vizinhos, para Taiwan e para territórios dos EUA, como as ilhas Guam. Uma ameaça que os EUA não podem, pelo seu acordo com os russos, reciprocar. O Oceano Pacífico é, desde o século 19, o foco da política internacional dos EUA, entretanto, a capacidade nuclear do país na região é comprometida, fiando-se especialmente em submarinos e em meios aéreos.

Por isso que a presença de armamento nuclear dos EUA na península coreana, um resquício da Guerra Fria, ainda tem valor estratégico. Ou seja, sair do INF afeta as relações entre EUA e Rússia, porém, não tem ligação direta com tais relações, é um efeito colateral do atual estágio de rivalidade e disputas entre EUA e China.

Sair do INF permitiria aos EUA retomar o desenvolvimento de mísseis de médio alcance, colocá-los em seus territórios do Pacífico para dissuadir intenções chinesas e, ao mesmo tempo, eventualmente, retirar seus armamentos da Coreia do Sul, contribuindo com o processo de paz na região. É uma cartada tripla de Trump: distancia ele da Rússia nas vésperas das eleições legislativas, contribui com o diálogo coreano e aumenta as possibilidades contra os Chineses.  

Acordos mundiais e o Congresso

O eventual rompimento do INF também dá força aos intérpretes de que a comunidade internacional deve ser regida por regras coletivas. Afinal, outro caminho para a solução do problema seria a inserção da China nos termos no INF, algo improvável. Primeiro, pois dificilmente o governo chinês aceitaria inspeções multilaterais como os russos. Segundo, causaria danos iniciais gigantescos ao poderio nuclear chinês. Na Guerra Fria, como dito, EUA e URSS abriram mão de uma bala no revólver, mas ainda tinham outras.

O enigma a ser resolvido e que nem os juristas dos EUA sabem responder é: Trump tem poder suficiente em sua caneta para sair do INF sem o Congresso? A questão é que o acordo foi ratificado pelo Congresso dos EUA, então, algumas interpretações colocam que o poder de saída é do Legislativo, não do Executivo. Certamente a retórica de “nova corrida nuclear” terá impacto nas próximas eleições dos EUA, porém, como visto, essa corrida já estava acontecendo, apenas em termos diferentes.

 

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