O presidente da Rússia, Vladimir Putin| Foto: EFE/EPA/ALEXANDER KAZAKOV/SPUTNIK/KREMLIN
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Mais um ataque foi realizado contra a ponte que liga a Crimeia ao continente europeu no estreito de Kerch. Por volta das três da manhã do último dia dezessete, no horário local, duas explosões foram registradas na ponte, destruindo um veículo e danificando um trecho da ponte rodoviária construída e operada pela Rússia. O ataque foi classificado como um ato terrorista pelo governo russo, que decidiu retaliar em um dos mais delicados e globais âmbitos dessa guerra, a segurança alimentar.

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É a segunda vez no atual conflito que a ponte é alvo de um ataque ucraniano, com a primeira delas sendo em outubro de 2022. Para os ucranianos, a ponte é um alvo legítimo, por dois motivos. Primeiro, por ser uma obra ilegal, construída por uma potência ocupante em território internacionalmente ucraniano, a Crimeia. A ponte foi inaugurada pelo próprio presidente russo Vladimir Putin em maio de 2018, após quase dois anos de construção, sendo a ponte mais longa da Europa, ligando a Crimeia à Rússia.

Segundo, a ponte é essencial para o esforço de guerra russo, transportando tropas, material bélico e combustível para a Crimeia. A península contém algumas das principais bases militares russas na região e foi dali que partiu a ofensiva em direção ao sul da Ucrânia, especialmente contra o oblast de Kherson. Enquanto o primeiro ataque contra a ponte utilizou um caminhão bomba, agora os ucranianos novamente utilizaram drones navais, um tipo de armamento que teve seu batismo de fogo no atual conflito.

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Alvo embaraçoso 

O veículo destruído era um carro civil, matando um casal russo e deixando a filha deles ferida. Provavelmente um dos pilares da ponte foi danificado, deixando um vão na ponte rodoviária, embora o segmento ferroviário tenha ficado intacto. Embora a ponte necessite de reparos, ela foi reaberta ao tráfego reduzido pouco depois. O fato dos danos não terem sido tão extensos e o timing do ataque despertou até suspeitas de que poderia ser uma operação de bandeira falsa russa, uma farsa provocativa.

Diversos veículos de comunicação, entretanto, citaram fontes da inteligência ucraniana de que o ataque foi realizado mesmo pelo país. Finalmente, um ministro ucraniano, Mykhailo Fedorov confirmou a autoria do ataque e o uso de drones navais, algo também comentado por um porta-voz da inteligência, Artem Dekhtyarenko, citado na imprensa internacional. Excluída a possibilidade de uma operação de bandeira-falsa, é importante frisar que o episódio é embaraçoso para a Rússia.

Um símbolo da presença russa “definitiva” na Crimeia, a ponte do estreito de Kerch foi um grande e custoso projeto de infraestrutura, além do já mencionado papel no esforço de guerra russo. E é atingida duas vezes em menos de um ano, com certa facilidade. Não se trata de diminuir os eventuais méritos ucranianos, mas de imaginar que um local tão importante seria melhor guarnecido. Se os ucranianos estão testando as águas para um ataque mais decisivo contra a ponte, sentem-se encorajados.

Represálias 

A represália russa ao ataque veio de duas formas. Primeiro, com ataques com mísseis e drones contra o porto de Odessa, no oeste ucraniano. A histórica cidade é, hoje, o principal porto sob controle ucraniano. Segundo o governo ucraniano, a infraestrutura do porto foi afetada. Odessa é, hoje, o principal escoadouro das exportações de cereais pela Ucrânia. Um assessor presidencial de Zelensky, Andriy Yermak, afirmou que o ataque mostra que a Rússia “quer colocar em risco a vida de 400 milhões de pessoas em vários países que dependem das exportações de alimentos ucranianos".

O número citado pelo governo ucraniano é fruto de um relatório da ONU, inclusive, não fruto de uma arbitrariedade. Esse é o segundo aspecto da retaliação russa, com o anúncio de que o país se retira do acordo sobre as exportações de grãos pelo mar Negro, estabelecido em julho de 2022, mediado pela ONU e pela Turquia. O acordo precisava ser renovado periodicamente e o governo russo anunciou que sairá em definitivo e que as conversas serão encerradas, ao menos até que a segurança da ponte da Crimeia seja “garantida”.

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Antes da guerra, transitavam pelo Mar Negro mais de setenta milhões de toneladas de trigo, mais de 10% de toda a produção mundial do cereal, sem mencionar outros cereais e produtos. Tanto Ucrânia quanto a Rússia são enormes produtores agrícolas, com a Ucrânia sendo historicamente chamada de “celeiro da Europa”. O acordo facilitava a exportação de cerca de cinco milhões de toneladas de cereais por mês, atendendo parte da demanda mundial mesmo em meio ao conflito.

Problemas mundiais 

A justificativa russa da retirada do acordo não foi oficialmente o ataque à ponte, claro, isso seria assumir uma fraqueza. De fato, o governo russo veementemente negou a conexão entre o ataque e a decisão. Segundo o anúncio do Kremlin, a retirada foi devido à suposta continuidade de dificuldades para exportações russas de produtos agrícolas e de fertilizantes. A decisão, por qualquer motivo que seja, trará novamente o fantasma da inflação galopante e da escassez alimentar para algumas regiões do globo.

As regiões mais afetadas no primeiro momento são o Oriente Médio e a África Oriental, regiões grandes importadoras de trigo e que tinham na Ucrânia e na Rússia seus principais fornecedores. Até antes da guerra, por exemplo, o Egito importava cerca de 90% de seu trigo dos dois países, via o Mar Negro. A suspensão do acordo significará maior risco para as operações, consequentemente maiores custos e menores quantidades, aumentando substancialmente os preços.

Mesmo a possibilidade de exportação terrestre, via a Europa, é problemática. A infraestrutura ucraniana é voltada para o porto de Odessa. Além disso, agricultores e produtores europeus já protestaram nos últimos meses contra a entrada de produtos ucranianos. Por não seguirem os padrões da União Europeia, chegam muito mais baratos e afetam a competitividade dos produtores locais, cuja solidariedade aos ucranianos pode ir longe, mas não tão longe assim.

A Ucrânia vai trabalhar a imagem de que a saída russa do acordo significa que o país não se preocupa com o restante do mundo, ao contrário dos ucranianos. Podem tentar viabilizar um corredor de exportação próprio. Mesmo que consigam, o curto prazo será de incerteza e de instabilidade. Como sempre na História, quem pagará por essa instabilidade serão os mais pobres e já afetados pelo conflito, mesmo que de forma indireta.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]