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O filósofo Ronald Dworkin, em foto de 2008.
O filósofo Ronald Dworkin, em foto de 2008.| Foto: David Shankbone/Wikimedia Commons/Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0 Unported license

“Ao líder do Reich [Philipp] Bouhler e ao Dr. [Karl] Brandt foi dada a responsabilidade de expandir a autoridade dos médicos, a fim de que os pacientes considerados incuráveis possam desfrutar de uma morte misericordiosa [Gnadentod].” (Adolf Hitler, Decreto do Führer de outubro de 1939, conforme citado em The Nazi Doctors: Medical Killing and the Psychology of Genocide, de Robert Jay Lifton)

“And Caiaphas was in his own mind / A benefactor to mankind.” (William Blake, The Everlasting Gospel)

Nos artigos anteriores, vimos que, em seu arrazoado pela legalização do aborto, Luís Roberto Barroso pretende falar em nome da dignidade humana da mãe abortista, notadamente de sua autonomia. É o que, representando o papel da mãe num diálogo alegórico com um feto em vias de ser abortado, o magistrado expressara nos seguintes termos: “Se a sua vida depende do sacrifício da minha liberdade individual, e eu não quero sacrificar a minha liberdade individual, você perde”. Temos aí uma versão do “perdeu, mané” para crianças abaixo de um dia de idade.

É também em nome da dignidade humana – dessa vez a dos doentes crônicos ou em estado terminal – que Barroso mostra-se favorável à legalização da eutanásia, direito que ele acredita ter respaldo na nossa Constituição. Perguntado certa vez sobre os aspectos filosóficos por trás da questão, Barroso aludiu implicitamente à chamada “ética da qualidade de vida”, por nós discutida anteriormente “Há um debate que vai marcar a nossa e as próximas gerações, que é acerca da bioética e do biodireito, os limites da intervenção humana e médica, da engenharia genética nos processos patológicos e na criação humana” – disse o magistrado. “Na ortotanásia [limitação de tratamento e cuidado paliativo] e na eutanásia, o debate filosófico é sobre a dignidade da pessoa humana e a sacralidade da vida. Quando a filosofia e o direito protegem a vida, é preciso saber: protegem qualquer vida, qualquer qualidade de vida e a qualquer preço? Acho que não”.

Um dos gurus intelectuais de Barroso é Ronald Dworkin, filósofo progressista que, conquanto não seja um bioeticista stricto sensu, é figurinha carimbada no ambiente fronteiriço entre o direito e a bioética, sendo recorrentemente mencionado em julgamentos referentes a aborto, eutanásia e suicídio assistido. Autor de obras como Life’s Dominion: An Argument about Abortion, Euthanasia, and Individual Freedom, Dworkin é uma voz influente entre os que questionam ou relativizam o princípio da “sacralidade da vida humana”. Mas, ao contrário dos que negam abertamente o princípio, o filósofo é mais insidioso, porque o seu argumento consiste, na verdade, numa defesa da sacralidade da vida humana, apenas que formulada em novos termos. Sua tese é basicamente esta: uma adesão verdadeira ao princípio da ética da sacralidade de vida humana requer que todos possam “decidir por si mesmos” acerca do aborto e da eutanásia, decisões que devem ser socialmente aceitas e toleradas por quem discorda, sob pena de a sociedade se tornar “totalitária”.

Para Ronald Dworkin, todas as vidas humanas são igualmente dignas, mas umas são mais igualmente dignas do que as outras. É também esse, basicamente, o argumento de Luís Roberto Barroso

Em Life’s Dominion, Dworkin argumenta que matar os mais fracos, doentes e desenganados pode ser, de fato, um jeito de afirmar o valor inerente da vida humana. Segundo ele, o debate entre os que apoiam e os que rejeitam a legalização do aborto e da eutanásia não diz respeito à aceitação do princípio da sacralidade da vida humana, uma vez que essa aceitação é consensual. “Discordamos tão profundamente justo por levarmos a sério um valor que nos une enquanto seres humanos – a sacralidade ou inviolabilidade de cada etapa de toda vida humana. Nossas relevantes divisões assinalam a complexidade do valor e as diferenças gritantes nos modos como vários grupos, culturas e pessoas, igualmente comprometidos com o princípio, interpretam o seu significado.”

Tudo muito bonito. E, todavia, pelas mãos de Dworkin, o significado de “sacralidade da vida humana” passa a ser aberto, de modo que cada um o possa definir individualmente. Segundo o badalado pensador da Nova Esquerda, defender o aborto não significa negar a sacralidade da vida do feto, mas afirmar a sacralidade da vida da mulher que não quer ter um bebê. Escreve ele: “Pode ser mais frustrante para o milagre da vida quando as ambições, os talentos, o preparo e as expectativas de um adulto são desperdiçadas graças a uma gravidez indesejada do que quando um feto morre antes que qualquer investimento significativo desse tipo tenha sido feito”. Em suma: todas as vidas humanas são igualmente dignas, mas umas são mais igualmente dignas do que as outras. É também esse, basicamente, o argumento de Barroso.

Quanto à eutanásia, Dworkin torna a afirmar que a defesa de sua legalização não é uma rejeição, mas uma afirmação do princípio da sacralidade da vida humana: “As pessoas que desejam uma morte precoce e serena para si próprias não estão negando ou degradando a sacralidade da vida. Ao contrário, elas acreditam que uma morte antecipada significa mais respeito pela vida do que uma morte adiada”. Só mesmo um intelectual progressista seria capaz de dissociar dessa forma signo e significado a ponto de, sem sinal de ironia aparente, representar como defesa da sacralidade da vida humana a eliminação piedosa de “vidas indignas de serem vividas”.

Para Dworkin, Barroso e outros apóstolos da ética utilitarista da qualidade de vida, a “sacralidade da vida” não é realmente um princípio, mas uma circunstância, que varia conforme o momento biográfico da pessoa. Resta que uma noção de dignidade humana tão porosa – ou “aberta, plástica e plural”, para falar como o magistrado brasileiro – é incapaz de proteger os mais fracos e vulneráveis da discriminação ou eliminação por razões médico-científicas. E isso independe de serem boas ou más as intenções dos seus proponentes. Os adeptos dessa forma de pensar tendem a confundir os próprios sentimentos com a moralidade, e a equiparar o bem ao agradável, o justo ao conveniente. Daí que, por exemplo, Dworkin também se entregue àquele tipo de matemática moral utilitarista e arbitrária presente nos argumentos de Barroso: “A morte de uma adolescente é pior que a de uma menina porque a primeira morte frustra os investimentos que ela própria e os outros dedicaram à sua vida”.

Nunca é demasiado lembrar que, para muitos alemães atraídos pelo nazismo, a aceitação da eliminação médica de vidas indignas de serem vividas também teve, na origem, uma razão piedosa. Os nazistas souberam muito bem explorar o clima de opinião que se havia criado no país desde o início do século, e Joseph Goebbles, em particular, mobilizou a sua indústria cinematográfica a fim de propagandear o programa de eutanásia, tornando-o socialmente ainda mais palatável.

Um grande sucesso lançado pela propaganda nazista foi Eu acuso (Ich klage an), de 1941, filme concebido por sugestão de Karl Brandt, médico pessoal de Hitler, comissário do Reich para Saúde e Saneamento e diretor do programa T-4. Embora o título soasse morbidamente irônico, sobretudo a um judeu – pois parodiava o célebre J’Accuse, de Émile Zola, escrito justamente em favor de um judeu perseguido –, tratava-se de um dramalhão levado a sério. Dirigido por Wolfgang Liebeneiner e baseado no romance Missão e Consciência, do médico e escritor Helmut Unger, Eu acuso conta a história do dr. Thomas Heit, um médico que, atendendo aos clamores desesperados de Hanna Heit, a esposa com doença degenerativa, lhe aplica uma dose letal de veneno a fim de poupá-la de um excruciante e desnecessário sofrimento.

Para muitos alemães atraídos pelo nazismo, a aceitação da eliminação médica de vidas indignas de serem vividas também teve, na origem, uma razão piedosa

O filme não poupa em sentimentalismo. A trama central diz respeito a uma pianista – esposa do médico protagonista – afligida por uma invalidez progressiva causada por esclerose múltipla. Incapaz de tocar o seu adorado instrumento, e desgostosa por tornar-se um fardo para o marido, ela suplica por eutanásia. Assim como a propaganda contemporânea da eutanásia, portanto, Eu acuso descreve o procedimento como uma morte benéfica, compassiva e condizente com uma tomada de decisão autônoma.

Subjacente à trama central, desenvolve-se uma outra história, cuja moral é francamente utilitarista e desdenhosa em relação ao valor moral de pacientes inválidos. Ela mostra o dr. Bernhard Lang, um professor universitário de medicina – o terceiro personagem principal do filme – ensinando teoria darwinista a seus alunos, e mostrando-lhes como, na natureza, apenas os mais aptos sobrevivem. Para ilustrar o argumento, o professor, que é amigo pessoal da família Heit, recorre ao arquivo cinematográfico nazista e exibe cenas documentais filmadas em sanatórios, que mostram os pacientes como criaturas grotescas e animalizadas. Nesse contexto, os pais de um bebê inválido por conta de meningite imploram ao professor que mate o seu filho e alivie o sofrimento da família, como num gesto de misericórdia. Ao contrário do que se passa com a mulher do protagonista – e à semelhança da despersonalização promovida pela retórica abortista contemporânea –, o bebê nunca é mostrado no filme.

Nesse ínterim, enquanto pesquisa uma cura para a esclerose múltipla da amiga, o dr. Lang aleija um rato durante uma experiência e, impiedosamente, abandona-o em sofrimento. Apiedando-se do animal, uma assistente do laboratório aplica-lhe uma injeção letal, acompanhada dessas palavras: “Pobre animal. Eu não o esqueci. Pronto! Em breve, você não sentirá mais dor”. Numa transição em fade, a próxima cena mostra Hanna suplicando ao amigo dr. Lang que a deixe tomar um de seus venenos. A mensagem é clara: os não adaptados devem morrer, tanto por uma questão de piedade quanto para manter a sociedade saudável.

Os pais do bebê inválido continuam clamando pela eutanásia do filho, e finalmente são atendidos. O bebê é morto fora das câmeras, e o ato é descrito como difícil, mas, na medida em que zela pela saúde do Volk, eugenicamente correto. Com a ajuda do marido, Hanna comete suicídio, numa cena cujo melodrama é reforçado pelo som lúgubre de um piano. Thomas Heit é preso por homicídio e levado a julgamento. O filme se encerra com o réu acusando (daí o título) o tribunal e as leis alemãs por sua cruel recusa em legalizar a eutanásia: “Agora, sou eu quem acusa. Eu acuso a lei que impede doutores e magistrados de cumprir sua missão de ajudar as pessoas. Eu confesso. Livrei minha esposa do sofrimento, de acordo com o seu desejo. A minha vida e as vidas de tantas pessoas que sofrerão o mesmo destino de minha esposa dependem do seu veredito. Deem, pois, o seu veredito”.

Obviamente, o filme era uma falsificação do programa nazista real, pois o T-4 consistia na morte médica de pacientes inválidos contra a sua vontade. Assim, embora o mote fosse o caráter voluntário e piedoso da morte, o filme não deixava de inserir a sua mensagem real de modo subliminar. Durante o julgamento de Thomas Heit, um membro do júri simpático ao réu ressalta que “a precondição sempre mais importante é a de que o paciente queira”. Mas, no decorrer do debate, faz-se referência a uma possível exceção ao princípio da voluntariedade em relação aos doentes mentais, caso em que “o Estado deve assumir a responsabilidade”. Nota-se o quão fácil é fazer a transição entre uma e outra situação, quase como num fade cinematográfico. E como duvidar de que logo o Brasil, onde magistrados se creem aptos a “empurrar a história” e agir como “editores de um país inteiro”, não possa um dia assistir a uma tal transição, da defesa da morte misericordiosa à apologia da saúde do Estado?

Bem produzido e realizado, Ich klage an é bastante representativo da sensibilidade da época, tendo sido assistido por mais de 15 milhões de pessoas (ver, sobre isso, Nazi Cinema, de Erwin Leiser). Tratando-se de um apelo à legalização da eutanásia voluntária e de uma apologia à morte de bebês inválidos – tal como, hoje, defendem Peter Singer, John Harris, Tom Beauchamp, Jacob Appel, Julian Savulescu, Steven Pinker e tantos outros bioeticistas contemporâneos –, o filme foi bem sucedido em consagrar o assassinato como uma resposta legítima a problemas médicos. E o fez por meio da estratégia de personalizar intensamente o tema do sofrimento causado por doenças graves e, ao mesmo tempo, despersonalizar a morte de bebês inválidos, de modo que a sua eliminação fosse mais fácil de aceitar. Com isso, abriu caminho para a expansão do programa de assassinato médico, incluindo mais e mais categorias de pessoas no rol das vidas indignas de serem vividas.

Para abortistas como Dworkin e Barroso, a posição antiaborto traduz uma insensibilidade social para com o sofrimento da mulher que não quer ser mãe, uma perversão moral fundada numa noção rígida, arcaica e – eca! – religiosa de “sacralidade da vida humana”

Observa-se uma expansão similar nos atuais programas de morte misericordiosa ali nos países que o adotam como política pública, como é o caso do Canadá. Assim, um debate que começa envolvendo pacientes à beira da morte logo se amplia para incluir os doentes terminais, em seguida os portadores de doenças incuráveis, os doentes crônicos, os inválidos e, finalmente, os doentes mentais e os deprimidos. De início, o consentimento é exigido. Depois, passa a ser presumido. E, num piscar de olhos, torna-se desnecessário. A campanha de vacinação contra a Covid-19 está aí para mostrar o quão evanescente pode ser o princípio da voluntariedade como requisito para a realização de experiências médicas.

No caso do aborto, cuja legalização é propagandeada de modo tão ou mais sentimentalista do que a eutanásia no filme alemão da década de 1940 – com a agravante de que o estilo sentimental não aparece aí numa obra de ficção, mas em editoriais de jornal, artigos acadêmicos e sentenças judiciais –, vemos frequentemente o mesmo tipo de tom acusatório usado pelo personagem Thomas Heit contra um sistema perverso que o impedia de matar por amor. Com efeito, para abortistas como Dworkin e Barroso, a posição antiaborto traduz uma insensibilidade social para com o profundo sofrimento da mulher que não quer ser mãe, uma perversão moral fundada numa noção rígida, arcaica e – eca! – religiosa de “sacralidade da vida humana”. Daí que esses ideólogos prefiram um conceito mais maleável e circunstancial de dignidade da pessoa humana.

O problema, no entanto, permanece. Uma vez adotada essa perspectiva relativista sobre o valor da vida humana e essa moralidade utilitarista dada a discriminações entre vidas mais ou menos dignas (bem como entre mortes mais ou menos trágicas), torna-se tênue a linha que separa as 12 semanas de gestação estabelecidas na ADPF 442 e, por exemplo, os 28 dias pós-nascimento inicialmente propostos por Peter Singer como marco temporal para a permissão do chamado “aborto pós-nascimento”. Posteriormente, o próprio Singer julgou arbitrário o limite de 28 dias para o infanticídio legalizado, sugerindo que o prazo fosse reduzido ou ampliado conforme as exigências de cada caso em particular. Seu raciocínio é lógico e coerente, tão previsível quanto um vaticínio dostoievskiano. Uma vez que a sacralidade da vida humana já não existe como valor absoluto, a partir daí tudo passa a ser permitido...

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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