Em 1806, fiel ao julgamento hipocrático, o médico alemão Christoph Wilhelm Hufeland fez um alerta aos colegas: “Não cabe ao médico decidir se uma vida é feliz ou infeliz, digna ou indigna. E, caso incorporasse esse tipo de consideração em seu ofício, o médico poderia vir a se tornar a pessoa mais perigosa da sociedade” (citado por Michael Burleigh em Death and Deliverance: Euthanasia in Germany, 1900–1945).
Cem anos depois, em sua terra natal, a negligência quanto ao alerta profético faria dos médicos alemães pessoas muito perigosas. Porque, no momento em que começaram a discriminá-los entre mais ou menos dignos, mais ou menos humanos, esses profissionais adquiriram um poder temerário sobre o destino dos pacientes, que passaram também a ser as suas vítimas. Foi precisamente o que aconteceu na Alemanha a partir dos anos de 1910, quando, influenciados pelas teses eugênicas vindas da Inglaterra e dos EUA, bem como pelo darwinismo social, muitos médicos passaram a conceber suas habilidades técnicas como estando aptas tanto para curar o indivíduo quanto para matá-lo em prol do bem da espécie e do Estado.
Em 1920, com a publicação de Permissão para destruir a vida indigna de ser vivida, de Binding e Hoche, essa nova concepção médica recebeu o seu selo acadêmico definitivo. Como vimos anteriormente, esse clima de opinião abriu caminho para a empreitada nazista e o seu programa de extermínio “científico” dos elementos nocivos à saúde do Reich. Logo, interessa notar que, apesar de terem sido as maiores, os judeus não foram as primeiras vítimas do nazismo, o qual, antes de haver se tornado um movimento de ódio específico aos judeus, surgiu como movimento de ódio aos mais fracos, tanto que suas primeiras vítimas foram as crianças (alemãs ou não) com algum tipo de deficiência física ou mental, síndrome ou má formação congênita. E, nesse sentido, o nazismo não foi um raio em céu azul, mas a manifestação extrema de uma ideologia médico-cientificista generalizada por toda a Europa e a América cultas.
Se os médicos não devem entrar em considerações sobre o valor da vida dessa ou daquela pessoa, tampouco deveriam fazê-lo os magistrados. Mas é precisamente nesse tipo de consideração que tem entrado Luís Roberto Barroso em suas reflexões sobre o aborto
Mas se, como tentou alertar Hufeland, os médicos não devem entrar em considerações sobre o valor da vida dessa ou daquela pessoa, tampouco deveriam fazê-lo os magistrados, cujo poder sobre o destino de quem julgam não é menos temerário que o dos primeiros em relação aos pacientes. E, todavia, como começamos a ver no artigo da semana passada, é precisamente nesse tipo de consideração que tem entrado Luís Roberto Barroso em suas reflexões sobre o aborto, ao criar uma matemática moral que lhe permite discriminar entre o valor respectivo das vidas da mãe abortista e do feto em vias de ser abortado.
No artigo “Aqui, lá, e todo lugar: a dignidade humana no direito contemporâneo e no discurso transnacional”, sobre o qual falamos antes, o magistrado brasileiro se propõe a elaborar um conceito transnacional de dignidade humana. Para isso, concebe uma noção de dignidade humana que, em suas palavras, deve ser “aberta, plástica e plural”. Sopesando os argumentos contrários e favoráveis ao aborto, escreve Barroso:
“Para aqueles que acreditam que o feto deve ser tratado como uma vida humana que se inicia com a fecundação – premissa admitida apenas para fins de argumentação – o aborto claramente configura uma violação do direito à vida do feto. Esse é o principal argumento subjacente ao movimento pró-vida, servindo de fundamento para a conclusão de que o aborto é moralmente errado. Por outro lado, a gravidez e o direito de interrompê-la possuem implicações sobre a integridade física e psíquica da mulher, sobre o poder de controlar o seu próprio corpo. Além disso, o aborto também deve ser considerado como uma questão de igualdade, pois como apenas as mulheres carregam o ônus integral da gravidez, o direito de interrompê-la coloca-as em uma posição equivalente ao dos homens. Portanto, no que se refere à dignidade humana entendida como valor intrínseco, há apenas um direito fundamental favorecendo a posição antiaborto – o direito à vida – contraposto por dois direitos fundamentais favorecendo o direito de escolha da mulher – a integridade física e psíquica e a igualdade.”
Note-se que, para Barroso, o fato da existência da vida desde a concepção é uma premissa, enquanto que a premissa (ou slogan) de que o bebê é parte do “próprio corpo” da mulher – que, portanto, deve poder decidir sozinha o que fazer com ele – é um fato. Com base nessa inversão entre fato e premissa, ele é capaz de atribuir ao direito subjetivo da mulher à “integridade física e psíquica” e à “igualdade” um valor superior do que ao direito à vida, direito objetivo e elementar de que goza o feto. Donde sua inacreditável continha de “dois contra um”.
Em contraposição aos que apelam à anterioridade lógica, cronológica e moral do direito à vida – e que, portanto, não podem aceitar a eliminação da pessoa em situação intrauterina em prol da imposição de direitos menos fundamentais, cuja eventual frustração não causa danos irremediáveis –, o atual presidente do STF argumenta que, embora presumida a título de raciocínio, nem mesmo a premissa do valor intrínseco da dignidade humana do feto pode ser plenamente assegurada, haja vista carecer ele de autonomia e autoconsciência:
“A primeira objeção é que, embora o valor intrínseco do feto tenha sido presumido no parágrafo anterior, pode ser mais difícil reconhecer sua autonomia, devido ao fato de ele não possuir nenhum grau de autoconsciência. Mas mesmo que esse argumento pudesse ser suplantado, ainda haveria outro. Como o feto depende da mãe, mas não o contrário, se a ‘vontade de nascer’ do feto prevalecesse, a mãe seria totalmente instrumentalizada por esse projeto. Em outras palavras, se a mulher fosse forçada a manter o feto, ela se transformaria em um meio para a satisfação de outra vontade e não seria tratada como um fim em si mesma.”
Para Barroso, o fato da existência da vida desde a concepção é uma premissa, enquanto que a premissa (ou slogan) de que o bebê é parte do “próprio corpo” da mulher – que, portanto, deve poder decidir sozinha o que fazer com ele – é um fato
A ética utilitarista subjacente ao raciocínio de Barroso faz com que ele considere um ultraje a ideia de um ser humano abdicar de sua vontade em favor da vontade do próximo, mesmo que esse próximo seja alguém mais frágil e dependente. Adotando uma concepção de tipo carl-schmittiana, o magistrado vê a relação entre o feto e a sua mãe abortista como uma relação política, a qual, essa sim, poderíamos definir como um confronto entre vontades que buscam se impor umas às outras. Nesse sentido, deve prevalecer a decisão do mais forte – no caso, da mãe.
Segundo Barroso, “o fato de importantes e respeitáveis grupos religiosos serem contrários ao aborto, com base nos seus dogmas e na sua fé, não supera a objeção de que esses são argumentos que não encontram espaço nos domínios da razão pública”. Mas ele nada diz – porque provavelmente nem sequer suspeita – sobre o fato de derivar as suas conclusões dos dogmas de uma outra religião, no caso, a religião política surgida na França iluminista, uma religião de tipo neopagão, que, pretendendo substituir o Deus judaico-cristão, passou a sacralizar a natureza, a sociedade e o Estado. Como escreve Rousseau em Do Contrato Social acerca da religião civil por ele idealizada: “Conquanto não se possa obrigar ninguém a crer, pode-se banir do Estado quem neles não acreditar; bani-lo não como ímpio, mas como insociável, incapaz de amar sinceramente as leis e a justiça... E se alguém, depois de haver reconhecido publicamente esses dogmas, comporta-se como se não os aceitasse, que seja punido de morte, pois cometeu o maior dos crimes: ter mentido perante as leis”.
Já que, para Barroso, o feto não possui autonomia, e seu valor comunitário é menor que o da mãe, cabe ao Estado e à comunidade lhe impor restrições quanto a direitos individuais. Tudo “em nome de certa concepção de vida boa” (sic). Eis aí o suprassumo da “ética da qualidade de vida”, por mim comentada anteriormente. É com base nesse raciocínio utilitarista que Barroso também defende o direito à eutanásia de pacientes em sofrimento por conta de doenças terminais e, eventualmente, de parentes de pacientes em estado de inconsciência. Trata-se de um tipo de argumentação derivada diretamente do campo da bioética contemporânea.
Nos anos 1970, Joseph Fletcher, o patriarca da bioética, defendeu o assassinato “piedoso” de crianças inválidas, um ato que ele já havia batizado eufemisticamente de “aborto pós-nascimento” (ver, a propósito, esse meu artigo). Para ele, os impedimentos éticos e morais contra o infanticídio não passavam de “tabu”, e o direito de matar bebês defeituosos poderia ser estabelecido mediante uma simples equação utilitária: se a morte de um bebê aumentasse a felicidade em geral ou reduzisse o sofrimento humano em geral, então ela estaria autorizada. Em suas palavras: “Essa nossa visão atribui um valor à vida humana superior à mera sobrevida, e afirma que é melhor estar morto do que sofrer em demasia em enfrentar muitas deficiências no funcionamento humano regular”.
Na época, as opiniões de Fletcher causaram polêmica e algum escândalo. Hoje não mais. Na academia, a defesa do infanticídio e da eutanásia voltou a ser mainstream. O famoso bioeticista Peter Singer, herdeiro intelectual de Fletcher e defensor dos direitos dos animais, prega abertamente o direito ao infanticídio, com base no argumento de que recém-nascidos ainda não são pessoas. De acordo com Singer, ser ou não humano é irrelevante para o estatuto moral de uma criatura; o que conta é a sua condição de pessoa. O pertencimento à espécie humana não serviria de critério para definir a pessoa, mas sim a sua capacidade de “racionalidade” e “autoconsciência”. Com efeito, ele diz claramente que alguns animais (baleias, golfinhos, macacos, cachorros, focas etc.) são pessoas, enquanto alguns seres humanos (bebês recém-nascidos e pacientes em estado vegetativo, por exemplo) não o são. “Dado que nem um bebê recém-nascido nem um peixe podem ser considerados pessoas, não é errado matar essas criaturas tanto quanto matar uma pessoa” – diz Singer, acrescentando ainda que bebês humanos são tão substituíveis quanto animais irracionais como peixes e pássaros.
De maneira algo similar à forma como Barroso reduz a dignidade humana do feto com base em sua falta de autoconsciência, John Harris, professor de bioética da Universidade de Manchester, define uma pessoa como “uma criatura capaz de valorizar a própria existência”, critério que incluiria alguns animais, mas excluiria alguns humanos, em especial os bebês recém-nascidos. E, segundo Harris, apenas as vidas de pessoas assim definidas são moralmente importantes.
Nos anos 70, as opiniões de Joseph Fletcher em favor do assassinato de crianças inválidas causaram polêmica e algum escândalo. Hoje não mais. Na academia, a defesa do infanticídio e da eutanásia voltou a ser mainstream
Assim também Tom L. Beauchamp, coautor de The Principles of Bioemedical Ethics – obra que, em sua defesa da eutanásia, Barroso toma como referência padrão para o campo da bioética –, afirma que a personitude ou a não personitude poderão nos informar quanto à permissão do nosso uso de seres humanos como objetos de exploração médica, de modo análogo ao que fazemos com certos animais:
“Pelo fato de que muitos humanos não têm a propriedade de personitude, ou são pessoas incompletas, eles têm um estatuto moral igual ou inferior ao de alguns não humanos. Se essa conclusão é defensável, precisaremos repensar nossa visão tradicional de que esses humanos desafortunados não podem ser tratados do modo similar ao que tratamos não humanos equivalentes. Por exemplo, eles podem vir a ser usados como objetos de pesquisa e fontes de doação de órgãos.”
Como se vê, esse tipo de hierarquização moral pode chegar até ao extremo de negar a dignidade humana a seres humanos não autônomos e não autoconscientes. Christoph Wilhelm Hufeland volta a se revirar no túmulo. Voltaremos ao tema.
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