Elon Musk, fundador da Tesla, em foto de setembro de 2020: magnata é o novo dono do Twitter.| Foto: Alexander Becher/EFE/EPA
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“Combray é um universo protegido. Lá, a criança vive à sombra dos pais e dos ídolos familiares na mesma bem-aventurada intimidade que a aldeia medieval à sombra de seu campanário (...) Combray é uma cultura fechada, no sentido etnológico do termo, um Welt, diriam os alemães, ‘um pequeno mundo protegido’, nos diz o romancista (...) Combray se afasta das verdades perigosas, como o organismo sadio que recusa a assimilar o que pode ser prejudicial à sua saúde. Combray é um olho que rejeita as poeiras irritantes. Logo, cada qual, em Combray, é seu próprio censor. Mas essa autocensura, longe de ser penosa, se confunde com a paz de Combray.” (René Girard, Mentira romântica e verdade romanesca)

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A compra do Twitter por Elon Musk representa, sem dúvida, um ponto de virada na guerra contemporânea pelo controle do fluxo de informações. Com o negócio fechado, o bilionário reafirmou o seu compromisso com a liberdade de expressão, item cada vez mais escasso numa internet majoritariamente controlada por extremistas de esquerda, os quais, embora exibindo certa variedade em tons de “progressismo”, mostram-se unidos e coesos quando o assunto é a censura de vozes não alinhadas politicamente. “A liberdade de expressão é a base de uma democracia em funcionamento” – declarou Musk. “E o Twitter é a praça da cidade digital onde são debatidos assuntos vitais para o futuro da humanidade.”

Como não poderia deixar de ser, a postura do bilionário libertário provocou choro e ranger de dentes entre os referidos extremistas de esquerda, que se haviam acostumado tão gostosamente à censura, fartando-se no banquete de cabeças ceifadas e vozes emudecidas. Por uns bons anos, esses agentes do “império do bem” (para lembrarmos o título da obra pioneira de Philippe Muray) puderam experimentar o mesmo aconchego ideológico – uma Combray do espírito – dos tempos pré-internet, quando, desfrutando de uma hegemonia cultural plena, e monopolizando os meios de comunicação, o mercado editorial e a indústria da propaganda, podiam falar sozinhos, sempre entre pares, sem o risco de serem confrontados por estranhos. Ilustrativo do estado de espírito francamente reacionário da patota é, por exemplo, esta manchete do portal Metrópoles: “Elon Musk e Twitter: liberdade de expressão preocupa especialistas”. Bons tempos aqueles em que só ditadores – não jornalistas e seus “especialistas” prêt-à-porter – temiam a liberdade de expressão...

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A postura do bilionário libertário provocou choro e ranger de dentes entre os extremistas de esquerda, que se haviam acostumado tão gostosamente à censura, fartando-se no banquete de cabeças ceifadas e vozes emudecidas

Mas não há de compreender o real significado do gesto de Musk, e em que ponto da trama histórica se insere, quem não atentar para os acontecimentos decisivos do ano de 2016, uma espécie de ano-charneira, que marca um momento de radicalização do processo político-cultural que o historiador Christopher Lasch chamou de “a rebelião das elites e a traição da democracia”. Em livro cada vez mais inescapável, Lasch analisou o surgimento no Ocidente de um abismo histórica e culturalmente inédito entre uma elite dirigente ultraprogressista (ou mesmo revolucionária) e um povo conservador desprezado pela primeira. Nas palavras do autor:

“Não é só o fato de que as massas tenham perdido o interesse pela revolução; seus instintos políticos são declaradamente mais conservadores do que os de seus autodesignados porta-vozes e pseudolibertadores. São a classe trabalhadora e a classe média baixa, afinal de contas, que apoiam as restrições ao aborto, apegam-se ao modelo familiar de pai e mãe como fonte de estabilidade em um mundo turbulento, resistem às experiências com ‘estilos de vida alternativos’ e guardam profundas reservas sobre ações afirmativas e outras aventuras da engenharia social em larga escala.”

Durante muito tempo, desde pelo menos o início da assim chamada Nova Ordem Mundial pós-Guerra Fria, os valores tradicionais, os gostos e a sensibilidade daquelas “classes” trabalhadora e média baixa não dispunham de representação mínima nas instâncias formadores da opinião pública. Bem ao contrário, silenciados e estigmatizados por uma elite cultural, econômica e política prafrentex, entusiasta da revolução politicamente correta (hoje encampada pelo movimento woke), os integrantes dessas camadas médias e populares, alheios às radicais utopias progressistas, passaram a testemunhar, entre atônitos e bestializados, a demonização de alguns de seus hábitos e práticas mais corriqueiros e – supunha-se – até então inocentes.

De um dia para o outro, por exemplo, misteriosos “especialistas” punham-se a condenar o tradicional churrasco de domingo como “vilão do aquecimento global”; as princesas da Disney tornavam-se prejudiciais à autoestima das crianças; o simples gesto de presentear meninas com bonecas e meninos com carrinhos transformava-se em temerário reforço da “desigualdade de gênero”; atitudes cavalheirescas, como abrir a porta do carro ou segurar a bolsa para uma mulher, eram agora desprezíveis demonstrações de machismo; rezar coletivamente um Pai Nosso depois de uma conquista esportiva virava um ato de “intolerância” e “afronta à laicidade”; e nem mesmo o uso de cuecas restava imune à vigilância da nova polícia de costumes, porque a tendência agora, para os homens que não quisessem ser vistos como trogloditas ultrapassados e “transfóbicos” (surgia um novo estigma a cada dia), eram as lingeries masculinas.

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Como escrevi em artigo analisando o processo de formação da opinião pública: “Em nossos dias, com toda a tecnologia disponível de imposição de falsos consensos (a monocultura político-ideológica da academia e da grande imprensa, a censura das Big Techs e suas ‘agências de checagem’, as iniciativas legislativas e judiciárias – hoje quase indistinguíveis – de homogeneização do discurso sob o pretexto do combate às ‘fake news’ e ao ‘discurso de ódio’ etc.), os barões da opinião pública integram uma espécie de panóptico narrativo, ocupando uma posição central de onde falam a todos, sem jamais ouvir. Daí que, conquanto minoritárias e não raro delirantes, suas opiniões privadas apareçam como padrão, como reflexo de uma opinião pública média e centrada, equidistante de pretensos extremos simétricos e inversos. Sua voz faz-se passar pela voz do povo”.

Aquela hegemonia cultural transbordou para a vida política sob a forma de um consenso tácito entre as elites dirigentes ocidentais, fundado num mix de economia capitalista e progressismo social. Em todo o mundo, esse consenso traduzia-se frequentemente em disputas eleitorais mancas ou de fachada, opondo como alternativas reais, entre as quais o eleitorado era forçado a escolher, versões soft e hard de uma mesma cultura política elitista e fundamentalmente antidemocrática. No Brasil, essa democracia postiça foi implementada via aquilo que o professor Olavo de Carvalho batizou de “estratégia das tesouras”, a fraudulenta oposição eleitoral entre socialistas e social-democratas, petistas e tucanos (que, hoje, decidiram tirar a máscara e assumir sua união estável, celebrada no abraço entre o ex-presidiário Lula e Geraldo Alckmin, em chapa eleitoral que já vem sendo apelidada jocosamente de “Caipirinha de Chuchu”).

Silenciados e estigmatizados por uma elite cultural, econômica e política prafrentex, os integrantes das camadas médias e populares passaram a testemunhar a demonização de alguns de seus hábitos e práticas mais corriqueiros e – supunha-se – até então inocentes

A internet possibilitou que a hegemonia esquerdista sobre a opinião pública – “o conjunto de opiniões que podemos manifestar em público sem medo do isolamento social”, como a definiu Elisabeth Noelle-Neumann – fosse rompida, abrindo ao cidadão comum, majoritariamente conservador e avesso à agenda cultural revolucionária das elites, uma via de acesso imediato a informações antes bloqueadas pelo gatekeeping midiático, bem como a opiniões similares às suas próprias, que agora tinham um canal por onde fluir.

O efeito político desse processo de descentralização da informação e democratização do debate público – que, com a entrada de novos atores antes proscritos, se tornou culturalmente mais diverso e complexo – não demorou a aparecer. Como dissemos, isso ficou evidente em 2016, quando, ignorando a agressiva campanha orquestrada pelas elites e seus órgãos de propaganda (a maioria dos veículos da chamada grande imprensa), os cidadãos britânicos decidiram pelo Brexit, assim como, apenas meses depois, os cidadãos americanos decidiriam por Donald Trump, duas decisões soberanas inesperadas, que contrariavam todas as previsões e escandalizavam os barões da opinião pública, até então acostumados a impor suas vontades políticas sem muita dificuldade. O mesmo ocorreria no Brasil dois anos depois, com a eleição de Jair Bolsonaro.

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Diante de tão inaceitáveis resultados, a reação das elites derrotadas e perplexas foi imediata. Primeiro, ressentiram-se da democracia, um modelo decisório demasiado inconstante e imprevisível. Depois, maldisseram a internet livre, o próprio meio que permitira essa democratização da opinião pública, abrindo os portais da civilização digital para uma horda de bárbaros oriundos de “guetos pré-iluministas”, uma gente que, com seus hábitos arcaicos e seu espírito indomável, não demonstrou qualquer cerimônia em adentrar o ambiente e perturbar a paz perpétua em Iluminópolis, a cidade dos iluminados, ora tomada pelos visigodos virtuais. Teve início, então, a busca por pretextos pseudo-humanitários (combate às “fake news”, à “desinformação”, ao “discurso de ódio” etc.) que pudessem conferir uma aparência de dignidade e interesse público àquilo que não passava de uma defesa mesquinha e reacionária do status quo.

Mas se, a essa altura, algum leitor continua achando que a reação antidemocrática das elites ocidentais à descentralização da informação não passa de uma teoria deste escriba, remeto-lhe dois escritos de intelectuais orgânicos do globalismo, publicados justamente naquele fatídico ano de 2016, e já em reação a eventos disruptivos como o Brexit e a vitória de Donald Trump. O primeiro é o livro Contra a Democracia, do filósofo americano Jason Brennan. O segundo, um artigo intitulado “Chegou a hora de as elites se erguerem contra as massas ignorantes”, do jornalista James Traub, membro do Council of Foreign Relations (CFR), o mais importante think thank globalista do mundo. Embora os títulos das publicações falem por si, vale a pena resumir o argumento dos autores.

Segundo Brennan, fenômenos como o Brexit e a eleição de Trump sinalizavam uma “crise da democracia global e dos sistemas de representação política”. Para solucionar a crise, o filósofo propunha que a democracia moribunda fosse substituída pela epistocracia, o governo “dos que sabem”. Em suas palavras:

“Quando alguns cidadãos são moralmente irracionais, ignorantes ou incompetentes em relação à política, isso justifica que não se lhes permita exercer autoridade política sobre os outros. E que tenham seu acesso ao poder vetado ou, ao menos, reduzido, para que pessoas inocentes não sofram os efeitos de sua incapacidade”.

Para aristocratas da opinião e imperialistas do bem, mal-acostumados por décadas de hegemonia narrativa, uma internet livre há de causar fortes reações alérgicas, produzindo o mesmo efeito dilacerante que a luz do sol aos vampiros

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Para Brennan, o epistocrata americano, era tudo muito simples: assim como motoristas inaptos não podem ter o direito de dirigir, eleitores politicamente incapazes não deveriam ter direito a voto. Contra a Democracia é um documento histórico de grande relevância, sobretudo por dizer às claras aquilo que o establishment globalista sempre pensou, mas não tinha coragem tornar público.

Já James Traub, o epistocrata britânico, considerava que o Brexit desnudara “o maior abismo politico do nosso tempo”, uma divisão não entre esquerdistas e direitistas, mas entre “sãos” e “raivosos descerebrados”. Escrevendo em junho de 2016, o jornalista do CFR nutria ainda a esperança de que Trump viesse a ser derrotado por Hillary Clinton nos EUA. De todo modo, a simples presença do homem alaranjado na corrida eleitoral americana já lhe parecia uma derrota:

“O Partido Republicano (nos EUA), já tomado por negacionistas da ciência e negacionistas da realidade econômica, atirou-se nos braços de um sujeito que fabrica realidades em que pessoas ignorantes gostam de viver. Eu disse ‘ignorantes’? Sim. É preciso dizer que as pessoas estão enganadas e que a missão das lideranças é esclarecê-las. Isso é ‘elitista’? Talvez. Tornamo-nos tão inclinados a celebrar a autenticidade de toda convicção pessoal que hoje soa elitista acreditar na ‘razão’, no ‘conhecimento’ e nas ‘lições da história’. Se é assim, o partido dos que aceitam a realidade deve se preparar para derrotar o partido dos que a negam (...) Se essa é a reorientação futura, devemos apoiá-la”.

Diante do que dizem abertamente esses intelectuais representativos da cosmovisão das elites dirigentes do mundo contemporâneo – portadoras daquilo que o grande Thomas Sowell chamou de “a visão dos ungidos” –, compreende-se a razão de tanto desespero ante um eventual renouveau da liberdade de expressão nas redes, e por que todo o ódio devotado a Elon Musk, tido por “traidor” das elites politicamente corretas. Com efeito, para aristocratas da opinião e imperialistas do bem, mal-acostumados por décadas de hegemonia narrativa, uma internet livre há de causar fortes reações alérgicas, produzindo o mesmo efeito dilacerante que a luz do sol aos vampiros. Já para o restante de nós, não vampiros, que bendizemos a luz e o calor, é sempre bom ver o sol voltar a brilhar, mesmo que através de uma fresta estreita e fugidia.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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