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Progressismo, Positivismo e Marxismo: um começo de tréplica a Bruna Frascolla
| Foto: EFE/Antonio Lacerda

Conforme prometido, inicio agora a minha tréplica a Bruna Frascolla, que dedicou um dos seus últimos artigos a criticar a minha interpretação do positivismo nas forças armadas brasileiras. Como a crítica tenha demonstrado algum grau de escândalo com a minha aproximação entre positivismo e marxismo, correntes intelectuais que caracterizei como espécies do gênero progressismo, começarei este texto precisando o sentido técnico que dou a este último termo. Antes, todavia, é preciso recordar e esclarecer o que afirmei e, sobretudo, o que não afirmei nos dois artigos da série dedicada ao tema. A fim de evitar novas precipitações, já adianto que também este artigo terá uma continuação na próxima semana.

Afirmei, por exemplo, que a mentalidade positivista dos comandantes à época do regime militar favoreceu a hegemonia da esquerda (não armada) no domínio da cultura. Mas quem quer que, ao contrário de Frascolla, tenha lido meus dois artigos em sequência (e não foi à toa que, ao final do primeiro, fiz questão de anunciar a sua continuação), há de notar que não afirmei a existência de um plano ou conluio entre os militares positivistas e seus “colegas de progressismo, os comunistas” (sic). Apesar de haver citado a circunstância da negociação política que acabou concedendo aos militantes da Ação Popular Marxista-Leninista a diretoria dos conselhos da Capes e do CNPq – informação factual de Ricardo Vélez Rodrigues, estudioso da vida universitária no período –, não fiz dela o modelo de alguma trama ambiciosa e maquiavélica contra os conservadores. No segundo artigo da série, não lido pela crítica, digo claramente que a hegemonia de esquerda foi um efeito largamente fortuito do encontro entre duas cosmovisões que se complementavam, e mais especificamente da cegueira militar-positivista quanto à circunstância histórica da ascensão da cultura ao principal campo de batalha dos conflitos políticos mundiais do período. Escrevi ali:

“O positivismo golberista foi uma espécie de negativo do gramscismo: o primeiro desprezando a cultura, as artes e a formação do imaginário como esferas puramente ornamentais, secundárias em face da técnica e da ciência; o segundo, ao contrário, vendo nelas o campo de batalha privilegiado da guerra política. Suas respectivas fórmulas, simétricas e inversas, encaixaram-se como chave e fechadura, tendo como resultado a conquista esquerdista do poder cultural, um poder que, apesar de seu menor impacto pontual, gera efeitos profundos e mais duradouros. Com efeito, os militares subestimaram a esquerda festiva justo quando, não só no Brasil como no mundo todo, a ‘festa’ – o experimentalismo, as drogas, a revolução nos costumes, a crítica às tradições, a dissolução da família etc. – convertia-se em arma de guerra”.

Frascolla afirma que, recorrendo a um conceito rígido de direita, excluo os militares desse campo porque eles “se diziam revolucionários”. E também que, de maneira arbitrária, qualifico os positivistas de progressistas apenas por acreditarem no progresso. Ocorre que, muito mais relevante do que a auto-identificação dos militares da época (até porque o conceito de “revolucionário” é equívoco), é o fato de que a sua interpretação positivista da história era efetivamente revolucionária, assim como a de várias outras correntes intelectuais surgidas na virada do século 18 para o 19. Ademais, os positivistas não eram progressistas por acreditar no progresso de maneira genérica e vaga, mas por acreditar numa concepção determinada de progresso, encarado como fenômeno “tão natural quanto necessário”, para usar a célebre caracterização de Lewis Henry Morgan, antropólogo evolucionista da era vitoriana. Convém aprofundar esses dois pontos, sendo necessário já entrar num detalhamento da minha definição de progressismo.

No artigo “A direita brasileira e as Forças Armadas”, objeto da crítica de Frascolla, eu já havia caracterizado o progressismo como “uma concepção teleológica e unilinear da história, que seria dotada de um fim predeterminado para o qual toda a humanidade, independentemente dos respectivos estágios evolutivos dos variados grupos humanos, caminharia necessariamente”. Só por essa definição, já deveria ter ficado claro que conceituo progressismo de modo simultaneamente mais amplo e mais preciso que os esquerdistas contemporâneos, que tomam o termo à guisa de autodefinição político-ideológica. Mais amplo porque, justamente, não se reduz a uma classificação político-ideológica, e não se confunde em absoluto com esquerdismo (confusão que parece permear o argumento de Frascolla). Mais preciso porque seu sentido é uno e inequívoco: o progressista é alguém que, por analogia ao que se passa nas ciências naturais, acredita estar em posição de apreender a totalidade e as “leis gerais” da história. E, como se sabe, essa tentativa de emular nas humanidades o método das ciências naturais tem no positivismo o seu exemplo paradigmático.

Ademais, os positivistas não eram progressistas por acreditar no progresso de maneira genérica e vaga, mas por acreditar numa concepção determinada de progresso

Como esboço inicial de definição, temos que progressismo não equivale a uma simples crença no progresso, consistindo, em vez disso, numa ideologia que encara a história humana de uma perspectiva análoga a dos cientistas naturais em face de seus objetos, imaginando, como aqueles, poder contemplá-la desde fora, tal qual um ente fechado e acabado. Daí eu o haver caracterizado como uma filosofia da história teleológica e unilinear. Teleológica porque seus adeptos tendem invariavelmente a projetar um fim da história, no duplo significado de um término – uma era de plenitude onde nada de mais significativo acontece – e da realização de uma meta (télos, em grego). Unilinear porque acreditam que a humanidade inteira atravessa um mesmo percurso em direção ao télos, diferindo apenas quanto a graus de evolução. Para Augusto Comte, por exemplo, o fim da história era o estágio positivo. Para Marx, a sociedade sem classes, e assim por diante. Naturalmente, assim como só se pode classificar o posicionamento respectivo dos corredores numa pista em vista da linha de chegada, também só se pode avaliar o “progresso” ou “atraso” de um ente histórico em vistas do fim ao qual se destina. Daí que a crença num fim predeterminado da história seja inerente ao conceito de progressismo.

Com efeito, no contexto das ciências sociais do século 19, as diferenças observadas, num eixo espacial e geográfico, entre as muitas culturas humanas foram transpostas para uma escala temporal, na qual os homens eram classificados de acordo com a sua etapa de evolução. Como adiantei no primeiro artigo da série, era comum na época a adoção de uma divisão tripartite da história cultural da humanidade, separada em “fases” evolutivas. Presente já na antropologia filosófica iluminista em autores como Turgot e Condorcet – embora autores como Karl Löwith (ver O Sentido na História) e Eric Voegelin (ver A Nova Ciência da Política) façam recuar essa forma mentis até o século 12, com a separação proposta pelo monge calabrês Joaquim de Fiore (1131-1202) entre as “três Idades da História”, correspondentes às três pessoas da Santíssima Trindade –, essa divisão foi consagrada pela “lei dos três estados” de Comte, que, por sua vez, influenciou tipologias como as de Morgan (“selvagens”, “bárbaros” “civilizados”), James G. Frazer (“magia”, “religião” e “ciência”), entre outros.

Importa notar que, em todas as correntes assim classificadas como progressistas, observa-se o fenômeno ao qual, em A Nova Ciência da Política, Eric Voegelin deu o nome de “imanentização do escathon”. O conceito pode parecer complexo, mas não é. No vocabulário teológico e filosófico, o termo grego escathon (donde a palavra escatologia) tem o sentido de definitivo ou absoluto, referindo-se particularmente ao destino último do homem após o Apocalipse. Tradicionalmente, portanto, a noção de escatologia aponta para um sentido transcendente da história humana, transcendente porque só será plenamente revelado no além-morte, no Juízo Final, e, portanto, numa posição existencial extra-histórica.

Quando digo “tradicionalmente”, refiro-me ao cânon católico que, consagrado por Santo Agostinho em A Cidade de Deus, permaneceu dominante ao longo de séculos, e assim continua para a maioria daqueles que, no sentido particular de se oporem a uma visão progressista e revolucionária da história, se auto-identificam como conservadores. Ao tempo de Agostinho, um dos grandes dilemas existenciais do Cristianismo era o de conciliar as já emergentes expectativas quiliastas e milenaristas com a idéia de uma existência permanente da Igreja. Afinal, se o Cristianismo fosse assentado sobre o desejo de libertação desse mundo, se os cristãos vivessem na expectativa constante do fim da história e da instauração iminente do Reino de Deus sobre a terra, a Igreja estaria reduzida a uma comunidade efêmera de homens à espera, aguardando ansiosos que o grande evento pudesse ocorrer durante o curso de suas vidas.

A solução teórica proposta por Agostinho representa um verdadeiro tour de force na história da exegese cristã. No capítulo 7 do Livro XX de A Cidade de Deus, Agostinho tece comentários sobre as “duas ressurreições” referidas na Bíblia: a da alma, que tem lugar no tempo histórico, e a do corpo, que ocorrerá no Fim dos Tempos, com o Juízo Final. Diz Agostinho: “No livro do Apocalipse, o evangelista João também fala das duas ressurreições, mas fala de um modo tal que a primeira delas foi mal interpretada por alguns dos nossos, chegando a suscitar ridículas fábulas (...) Em vista dessa passagem, alguns presumiram que a primeira ressurreição seria a ressurreição corporal. E puseram-se particularmente excitados, dentre outras razões, pela menção aos mil anos…”

Agostinho refere-se à passagem do livro do Apocalipse (20: 1-6) na qual, em referência especial aos mártires, o apóstolo João menciona aqueles cujas almas reinariam com Jesus “durante mil anos”. E propõe uma interpretação perspicaz para o sentido da expressão “mil anos”, tal como usada por João. O bispo de Hipona sugere que, no referido contexto, “mil anos” significa a totalidade do tempo histórico, totalidade simbolizada, como é usual nas Sagradas Escrituras, por um número inteiro. Portanto, ao falar em “mil anos”, João estaria se referindo ao reino de Cristo em sua Igreja no presente saeculum, cuja duração iria até o Juízo Final e o advento da Eternidade.

Em 431 d. C., no Concílio de Éfeso, a interpretação agostiniana foi consagrada em ortodoxia, relegando as idéias milenaristas e quiliastas (do grego khilias, “mil”) à condição definitiva de “fábulas ridículas”. E, de fato, Agostinho parece ter captado e expressado o sentido especificamente cristão da relação entre o tempo e a Eternidade, sentido até hoje cultivado por conservadores (leia-se, antirrevolucionários) das mais variadas vertentes. Ao contrário do que têm postulado os diversos movimentos milenaristas (incluindo aí os seus avatares secularizados), o Juízo Final cristão não é concebido como um evento do tempo histórico. Como se depreende da démarche agostiniana, o Juízo Final representa a contemplação da temporalidade inteira (“os mil anos” de que fala o livro do Apocalipse) pela Eternidade.

No século VI, o filósofo latino Boécio (480 d.C. – 523 d.C.) aprofundou a perspectiva de Agostinho. Em A Consolação da Filosofia – obra escrita pelo mártir cristão na cadeia, à espera da sentença de morte –
ele define Eternidade como “a posse plena e simultânea de todos os momentos do tempo” (Quod igitu interminabilis uitae plenitudinem totam pariter comprehendit ac possidet). Obviamente, o vocabulário usado por Agostinho e Boécio talvez soe anacrônico aos ouvidos modernos. Mais importante do que o vocabulário, no entanto, é o referente. Se, por exemplo, desejássemos empregar palavras mais afins à terminologia contemporânea das ciências humanas, poderíamos, por analogia, traduzir o conceito boeciano de Eternidade nos termos da noção claude lévi-straussiana de “estrutura”. Assim, a Eternidade estaria para o tempo assim como a estrutura para a série no estruturalismo de Lévi-Strauss.

Na concepção cristã, com efeito, a Eternidade funciona como uma estrutura que engloba todos os instantes temporais possíveis e imagináveis, passados, presentes e futuros. Se, de um ponto de vista interno à série, a temporalidade é indefinida – e, quiçá, infinita (à moda de Zenão de Eleia) –, do ponto de vista estrutural e supra-serial, a série como um todo é perfeitamente definida, limitada ou “contida” pela Eternidade. Logo, a Eternidade é um dos nomes da transcendência, que contém a imanência assim como a Eternidade contém o tempo. Pode-se dizer que a Eternidade é a estrutura da possibilidade universal do tempo.

Com isso, nota-se perfeitamente o quão distante a escatologia cristã canônica está dos milenarismos, cujas manifestações intelectuais modernas e seculares são exemplificadas pelas mais variadas filosofias da história, as quais – de Turgot a Hegel, de Condorcet a Comte, de Marx a Fukuyama – buscam apreender um sentido da história imanente a essa mesma história, algo que, ao menos desde Edmund Burke, qualquer conservador contemporâneo diria ser um delírio de onipotência. Afinal, como pode uma criatura ela própria histórica – para a qual, portanto, a temporalidade permanece necessariamente aberta e indefinida – pretender captar, de dentro dela, o sentido último da história, uma fantasia tão absurda quanto a do personagem do romance que, imaginando-se na posição do autor, acreditasse poder advinhar o final e o sentido último do livro? A única resposta possível é: projetando uma utopia e julgando-a mais real do que a realidade atual. Eis aí, como sugere Voegelin, o suprassumo da mentalidade gnóstica subjacente tanto aos milenarismos medievais quanto aos milenarismos seculares e progressistas: incerteza e angústia em relação ao estado presente de coisas, convicção e júbilo em relação ao outro mundo, seja este metafísico e permanente, como nos dualismos gnósticos clássicos de tipo maniqueísta, ou localizado num futuro histórico iminente, como nas utopias milenaristas.

Se, portanto, o Juízo Final bíblico sinaliza a passagem do tempo à Eternidade, o apocalipse milenarista significa um momento do tempo histórico – momento singular, sem dúvida, pois que considerado como o ponto culminante de toda a história passada. E se, na escatologia cristã tradicional, os homens são iguais neste mundo e serão separados apenas na Eternidade, na escatologia imanentizada dos milenaristas e progressistas, os homens são separados aqui e agora, já que os “eleitos” agem já como juízes da história consumada, em razão de terem vislumbrado, por sobre os ombros do restante da humanidade, a luz que vem do futuro. As implicações políticas desumanizadoras dessa concepção são evidentes.

Aliás, foi essa constatação que, por exemplo, motivou o filósofo espanhol Reyes Mate a, inspirando-se em Walter Benjamin (Voilá, um esquerdista não-progressista!), propor um inventário de todas as vítimas históricas da ideologia do progresso. Ao contrário do que diz Frascolla, portanto, ao apontar a homogeneização das consciências pressuposta na utopia do fim da história, não acuso os progressistas de “racistas”, ao menos não necessariamente. Porque o racismo é apenas uma das formas possíveis de desumanização do outro. Uma forma ao mesmo anterior e englobante, típica da ideologia progressista, é o cronocentrismo, que consiste na negação peremptória da máxima de Leopold von Ranke: “todas as épocas são iguais perante Deus”. Ao pressupor habitarem uma época privilegiada, a partir da qual contemplam “cientificamente” o sentido último da história, os progressistas – essa “pequena e arrogante oligarquia dos que apenas calham de estar andando por aí”, como diria G. K. Chesterton – imaginam-se na posição de apartar, julgar e condenar os “reacionários” de todas as épocas pretéritas e de todos os quadrantes da Terra, encarados como fósseis evolutivos, fatalmente destinados, por bem ou por mal, ao opróbrio histórico. Como bem apontou Olavo de Carvalho na conferência que proferiu na UNESCO em 1997 com o título Os mais excluídos dos excluídos, o cronocentrismo fornece “o modelo mesmo, o arquétipo de todas as formas modernas de exclusão e de discriminação”.

Esclarecido o meu uso circunscrito da noção de progressismo, seguiremos daí no próximo artigo, no qual, finalmente, entrarei com tudo nas afinidades e continuidades concretas entre positivismo e marxismo, além de lidar mais pontualmente com as alegações da minha colega de Gazeta. Talvez para a surpresa de Frascolla, o Brasil é justamente o país em que, mais do que qualquer outro lugar do planeta, essas afinidades e continuidades sempre foram particularmente evidentes, reconhecidas por alguns dos principais expoentes de ambas as correntes.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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