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Detalhe de gravura de 1785 mostrando cena do Ato V da peça “As bodas de Fígaro”.
Detalhe de gravura de 1785 mostrando cena do Ato V da peça “As bodas de Fígaro”.| Foto: Reprodução/Domínio público

Encerramos a coluna da semana passada sugerindo que a Revolução Francesa – e, com ela, todo fenômeno revolucionário – pode ser mais bem compreendida à luz do conceito girardiano de “desejo mimético” que do conceito marxista de “luta de classes”. Antes que fruto de uma revolta popular avinda da distância social entre as “classes” (ou estados) da França do século 18, a revolução teria sido produto de uma maior proximidade sociocultural entre elas, que passaram a partilhar uma imaginação e uma sensibilidade comuns. Dedicarei a coluna de hoje a aprofundar o tema, relembrando a teoria de René Girard.

Foi em seu primeiro livro, Mentira Romântica, Verdade Romanesca, publicado em 1961, que o pensador francês formulou a teoria do desejo mimético, sua grande assinatura teórica. Analisando alguns clássicos da literatura universal – notadamente de Cervantes, Flaubert, Stendhal, Dostoiévski e Proust –, ele identificou uma estrutura comum subjacente a todos eles. O homem não deseja algo ou alguém de forma autônoma, numa relação imediata e diádica entre um sujeito desejante e um objeto de desejo, diz-nos Girard. Em vez disso, o desejo possui uma estrutura triangular: se desejamos um determinado objeto é porque ele é desejado ou possuído por outrem, que se torna, assim, o modelo para o nosso desejo.

Desejando e rejeitando, o modelo nos indica o que é desejável e rejeitável. O modelo, ou mediador, pode ser de tipo externo – quando não está situado no mesmo plano do sujeito e, portanto, não pode rivalizar com ele em torno do objeto desejado (por exemplo, Amadis de Gaula em relação a Dom Quixote, na obra-prima de Cervantes) – ou interno, quando está próximo o suficiente do sujeito, tornando-se um rival. E é justamente no campo da mediação interna que surgem os gatilhos para a motivação revolucionária.

As modas revolucionárias eram especialmente apreciadas pela alta nobreza, pelo clero e pela própria família real. A corte e a alta nobreza eram, de fato, os maiores consumidores das obras literárias que mais faziam para minar a sua autoridade

Foi no terreno da cultura, da literatura e do teatro que a proximidade social entre os estados na França mais se fez sentir, criando o caldo cultural para a mediação interna. O público consumidor das novas modas filosóficas compunha-se de membros de todas as ditas “classes” sociais ou “ordens” do Antigo Regime. Havia uma certa comunhão espiritual em torno das novas ideias. As modas revolucionárias eram especialmente apreciadas pela alta nobreza, pelo clero e pela própria família real. A corte e a alta nobreza eram, de fato, os maiores consumidores das obras literárias que mais faziam para minar a sua autoridade.

O fascínio da família real por iluministas como Voltaire e Rousseau era conhecido. A rainha Maria Antonieta chegou a fazer uma peregrinação ao túmulo de Rousseau em Ermenonville, permanecendo, segundo relatos, mais de uma hora no local. Os principais filósofos iluministas, membros das academias, eram protegidos e paparicados pela Coroa. Muitos costumavam solicitar e receber pensões do governo, a tal ponto que um dos ministros reais chegou a ironizar a situação, dizendo que “há um certo risco de que, nas atuais circunstâncias, o título de acadêmico se torne sinônimo de pensionista do Rei”.

É claro que as ideias dos iluministas mais destacados não chegavam diretamente ao povão. Afinal, obras como A Enciclopédia e congêneres eram caras. Mas, como mostra o historiador Robert Darnton numa obra interessantíssima, havia todo um submundo literário clandestino, que ele chama de “baixo Iluminismo”, e cujas obras eram um misto de pornografia e radicalismo político. Produzidas por um sem-número de “Rousseaus de sarjeta”, eram muito mais lidas que os livros canônicos do Iluminismo, e ajudaram a inocular na sociedade o veneno do escárnio e do deboche, minando os valores religiosos tradicionais e o respeito por qualquer autoridade. Obviamente, uma das personagens preferidas desse tipo de literatura era a rainha Maria Antonieta, que começou a ser reconhecida popularmente como “a prostituta austríaca” (putaine austrichienne). Havia também muito material blasfemo contra a Igreja Católica, versando sobre as pretensas aventuras sexuais de padres e freiras.

Por incrível que pareça, também essa literatura clandestina e de gosto duvidoso circulava amplamente entre a nobreza e os membros da corte. Darnton conta que, bem na rampa de acesso ao pátio do palácio de Versalhes, havia uma pequena venda de livros de propriedade de um tal Monsieur Lefebvre, onde, pela quantia certa, podia-se encontrar essa literatura incendiária. Havia uma grande cumplicidade por parte das autoridades, que faziam vista grossa a todo esse tráfico. Os membros da nobreza faziam uso desse material para atacar adversários. Raciocinando em termos de vantagens táticas de curto prazo, não percebiam os riscos de longo prazo que corriam ao fomentar uma crise geral de autoridade. Assim, agiam como alguém que estivesse em cima de uma árvore e, pretendendo derrubar o adversário no outro galho, resolvesse cerrar o caule inteiro.

Mas, mais do que a literatura, o teatro e os espetáculos eram o grande símbolo da simbiose sociocultural na França pré-revolucionária. Em seu livro Cidadãos, o historiador Simon Schama fala de uma certa democratização cultural da França do Antigo Regime, que, a despeito da hierarquia social, acaba reunindo nobres e plebeus, a família real e o mais humilde dos trabalhadores braçais, em torno de certa sensibilidade estética e artística comum. O autor cita o exemplo do balão de Jacques-Étienne Montgolfier, o primeiro balão tripulado do mundo. O espetáculo foi apresentado em Versailles, no dia 19 de setembro de 1783, e os tripulantes eram um carneiro, um pato e um galo. Naquele dia, uma multidão acorreu ao pátio do palácio, onde fora montada uma grande plataforma octangular. Algumas estimativas calculam o número total de presente em mais de 100 mil pessoas. Schama descreve:

“Por volta de dez da manhã todas as avenidas e estradas para Versalhes ficaram engarrafadas com o tráfego de carruagens. Bandos de pedestres e liteiras lutavam para chegar a pé ao local. Como peregrinos levados por boatos sobre um milagre, estavam determinados a não perder nada daquele que todos diziam um evento de marcar época. ‘Podemos dizer com Ovídio’, diz um relato, invocando o profeta da Era Dourada, ‘que muitas coisas até aqui consideradas impossíveis passarão a ser realidade a partir de agora’. E um outro entusiasta disse: ‘descobrimos o segredo por tantos séculos almejado: o homem agora irá voar, e apropriar-se de todo o poder do reino animal; será o mestre da terra, das águas e do céu’.”

As últimas décadas do Antigo Regime foram notáveis pelo número de eventos culturais nos quais o gosto popular e o gosto da elite convergiam

Schama mostra como o balão de Montgolfier foi um bom exemplo do reordenamento da natureza do espetáculo público na França, formando uma audiência que subvertia as habituais regras de etiqueta do Antigo Regime. De certa forma, o evento foi uma antecipação da invasão de Versalhes ocorrida em outubro de 1789. O evento foi montado não na parte de trás do palácio, no parque, onde poderia ser mais controlado pela guarda, mas no espaço não confinado do pátio dos ministros. Havia cordões de guardas para proteger o balão e o próprio Montgolfier, mas não foi feita nenhuma tentativa séria de restringir o número de pessoas ou ordená-las de acordo com o tradicional protocolo da corte. Nem foi possível, com exceção dos membros diretos da família real, preservar as hierarquias do resto da corte, cada qual tendo de lutar por si mesmo pelos melhores lugares. Em vez de ser um objeto de visão privilegiada, o balão era propriedade visual de todos na multidão. Enquanto estava no chão, ainda podia se dizer tratar-se de um espetáculo aristocrático. Uma vez no ar, tornou-se democrático.

Mas o voo de balão não era o único espetáculo na França que vinha atraindo um público que, por seu número e espontaneidade, desafiava a velha disciplina das demonstrações públicas até então, extremamente reguladas. As últimas décadas do Antigo Regime foram notáveis pelo número de eventos culturais nos quais o gosto popular e o gosto da elite convergiam. Em particular, o público dos teatros e dos salões ficava cada vez mais heterogêneo, o que atestam as fontes da época. Elogiando o ambiente do Palais-Royal, por exemplo, o escritor Louis-Sébastien Mercier exaltou a “mistura de todas as ordens da nação, de todas as classes sociais, idades e sexos”. No que foi acompanhado pelo diretor teatral Mayeur de Saint-Paul, feliz ao constatar que “todas as ordens de cidadãos estão reunidas, da dama da alta nobreza até a mulher de vida fácil, do alto oficial até o mais humilde dos soldados”.

Tradicionalmente, o teatro francês dividia-se em duas categorias. Grandes dramas e comédias elegantes como as de Molière eram exibidos nas companhias licenciadas, a exemplo da Comédie Française e da Opéra. Já as comédias burlescas e os shows de curiosidades ocorriam nos teatros dos bulevares. Ocorre que, ao fim do Antigo Regime, o teatro oficial perdia sua vitalidade, e o teatro popular tornava-se a principal atração. Mais ainda: os dois universos começavam a se fundir. Um público único, faminto por entretenimento, estava em processo de formação.

Da corte até os artesãos, comerciantes, mercadores e soldados rasos, todos se apinhavam para ver as peças na Comédie, engalfinhando-se em frente ao palco. Depois, saíam dali e iam ao bulevar do Temple para ver uma comédia escrachada. Como se podia esperar, o Palais-Royal foi um dos principais pontos de concentração dessa cultura popular rabelaisiana, que tocou o coração da Paris real e aristocrática. A família real estava tão engajada nessa cultura dos palcos como qualquer outro cidadão francês. Um exemplo particular dessa cultura, difundida por toda a sociedade parisiense, foi o sucesso da peça As Bodas de Fígaro, de Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais.

A peça conta a história de Fígaro e de sua noiva Susanna, ambos serviçais do Conde de Almaviva. Os dois fazem planos para o casamento, mas o Conde vive assediando Susanna, querendo fazer valer o seu “direito de pernada” ou “direito do senhor” – uma pretensa prática feudal pela qual o senhor teria direito de desvirginar a serviçal em sua noite de núpcias. (segundo a historiadora Régine Pernoud, a lenda surgiu de um mal-entendido. Em muitos feudos, os senhores autorizavam o casamento dos servos com um gesto simbólico, colocando a mão ou a perna na cama dos noivos – a tal “pernada”. Citações a essa tradição foram mal interpretadas por historiadores, que acharam ter encontrado provas da exploração sexual das camponesas. “É um exemplo impressionante de certas interpretações baseadas apenas em jogos de palavras”, escreveu Pernoud).

No ato 5 da peça, Fígaro faz um famoso discurso contra a ordem estabelecida e os direitos senhoriais: “Porque você é um grande senhor, você se acha um grande gênio… nobreza, riqueza, insígnias, cargos. Tudo isso faz você se sentir grande e poderoso. Mas o que fez para conquistá-lo? Você mal teve o trabalho de nascer, e isso é tudo. De resto, você é uma pessoa comum, enquanto eu, diabos!, perdido na multidão anônima, tive de usar toda a minha ciência e habilidade tão somente para sobreviver”. E precisamente esse trecho provocava aplausos e gargalhadas histéricas dos nobres e dos membros da corte, incluindo a própria rainha Maria Antonieta, que, de tanto apreciar a peça, chegou a solicitar exibições privadas para ela e suas criadas.

A revolução não foi, portanto, um fenômeno de povo nas ruas, mas de intelectuais nos salões, clubes, lojas maçônicas, academias e sociedades secretas, tudo aquilo que Cochin caracterizou como “sociedades de pensamento”

Uma testemunha perspicaz da época, a Baronesa d’Oberkirch, fez anotações sobre esse curioso comportamento dos integrantes da plateia aristocrática que “batiam nos próprios rostos, riam do próprio ridículo e, pior ainda, faziam os outros rir… Que estranha cegueira!” Havia, portanto, um espírito revolucionário generalizado. Do rei para baixo, a elite era menos obcecada com tradição que com novidade. Isso explica que a febre revolucionária tenha partido, sobretudo, das elites, e apenas mais tarde do povo. Assim é que, na expressão de Charles Maurras, “a Revolução não foi fenômeno de revolta, operando de baixo para o alto, mas um fenômeno de demissão e de abdicação, partindo de cima para baixo”.

Em 1958, num artigo intitulado As Minorias Revolucionárias, o filósofo paulista José Pedro Galvão de Sousa citava historiadores como Augustin Cochin, Bernard Fay e George Uscatescu para resumir as descobertas mais pertinentes da moderna historiografia:  “Não se pode mais hoje afirmar, como fazia Michelet em relação à Revolução Francesa, que o povo é o principal agente da revolução. A verdade é bem outra. As revoluções têm sido obras de minorias ilustradas. Vêm de cima para baixo, são preparadas por pequenos grupos organizados. Antes de ser uma explosão popular, a revolução é uma conjuração palaciana, uma fermentação de ideias em salões e academias, ou um plano urdido no recôndito das sociedades secretas”.

À luz das novas fontes e de suas consequentes reinterpretações, concluiu-se que a revolução não foi, portanto, um fenômeno de povo nas ruas, mas de intelectuais nos salões, clubes, lojas maçônicas, academias e sociedades secretas, tudo aquilo que Cochin caracterizou como “sociedades de pensamento”. E essa nova percepção, que esse e outros historiadores demonstraram em relação à França setecentista, o britânico Crane Brinton generalizou para o fenômeno revolucionário como um todo:

“As massas não fazem revoluções. Elas podem ser recrutadas para mobilizações ostentatórias uma vez que a minoria ativa já tenha vencido a revolução. As revoluções do século 20, de direita como de esquerda, conseguiram aparentes milagres de participação da massa. Mas as impressionantes demonstrações registradas na Alemanha, Itália, Rússia e China não devem iludir o pesquisador cuidadoso da política. As vitórias comunista, nazista e fascista sobre os moderados não foram obtidas com a participação da maioria; todas foram obtidas por facções pequenas, disciplinadas, dogmáticas e fanáticas.”

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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