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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

Tudo pela democracia

O viés de positividade de Alexandre de Moraes

Alexandre de Moraes voto bolsonaro
Imagem ilustrativa. (Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney)

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A luz da manhã entrava furtiva e enfraquecida pelas enormes vidraças fumê do prédio principal do Supremo Tribunal Federal. Não alcançava o plenário, onde os julgamentos se davam, nem o Salão Branco, onde são realizados os eventos, tampouco o gabinete do presidente, muito menos o museu que reúne documentos históricos, como a Constituição Federal de 1988, hoje em desuso.

Era domingo e os prédios anexos do tribunal estavam igualmente vazios, salvo um dos gabinetes, de onde vinha o sussurro do ar condicionado, como um mantra mecânico a embalar o telequeteque no teclado de um computador. A luminosidade do lado de fora se tornava opaca dentro do gabinete onde o ministro Alexandre de Moraes trabalhava muito concentrado, indiferente a toda e qualquer coisa, como a vista que possuía para o Senado Federal.

Imprimiu o seu voto, passando a revisá-lo: “A gravidade dos fatos ocorridos em 8 de janeiro é inquestionável. É essencial recordar que não se tratou de um simples ato de manifestação, mas sim de uma tentativa violenta de ruptura democrática. Não houve um ‘domingo no parque’, como destaquei em minhas primeiras condenações. Não foi um passeio pacífico. Nenhuma das pessoas presentes estava ali por acaso”.

A luminosidade do lado de fora se tornava opaca dentro do gabinete onde o ministro Alexandre de Moraes trabalhava muito concentrado, indiferente a toda e qualquer coisa

Parou, riscou a palavra “violenta” e escreveu acima dela: “violentíssima”. Continuou: “A memória coletiva, infelizmente, pode ser afetada pela ‘síndrome de Poliana’, fazendo com que alguns tentem minimizar ou relativizar a gravidade dos acontecimentos. No entanto, os fatos estão registrados. As imagens que serão apresentadas demonstram, de forma irrefutável, a violência cometida, a destruição do patrimônio público e os ataques às instituições democráticas”. 

Riscou mais uma vez, agora “síndrome de Poliana”, escrevendo acima “viés de positividade”, pensando que assim evitaria que achassem que ele estaria menosprezando aqueles que insistem em não reconhecer que houve tentativa de golpe. Um furor lhe tomou a face, com a mão deslizando a caneta como uma espada desembainhada, ajustando vírgulas e pontuações: cada ponto de exclamação era um golpe contra o “negacionismo golpista”. A ironia permaneceu suspensa no ar frio da sala como um fantasma sem interlocutor, enquanto as horas passavam.

O sol escaldante do meio-dia batia nas janelas e projetava sombras enviesadas sobre sua escrivaninha. “Não há middle ground”, murmurou ao rever o vídeo editado por seus assessores que pretendia mostrar no julgamento, com olhos úmidos de convicção e cafeína (sétima xícara). Considerava o vídeo o touché fatal contra todas as fake news de que vinha sendo acusado. Acreditava piamente ter conseguido desnublar “a realidade em sua crueza histórica”. Continuar negando depois disso só poderia ser algo patológico. A lógica circular refletia-se nas janelas blindadas como um eco desconectado de sua origem.

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Passou a tarde arrumando outros trechos. Quando o sol se inclinou para o horizonte, tingindo os móveis de uma melancolia alaranjada, o ministro terminou a última revisão, considerando desnecessária mais alguma correção ou acréscimo. Levantou o olhar e mirou a Praça dos Três Poderes com devoção sacerdotal, imaginando, por brincadeira, que perigava erguerem no futuro uma estátua sua por salvar a democracia (nem que seja contra sua vontade). Um herói não precisa de aplausos imediatos, disse para si: “heroísmo é solidão”.

Os raios crepusculares alongaram até apagar-se definitivamente. Luzes artificiais acendiam-se pela Esplanada. Seus dedos tamborilaram levemente na mesa ante a visão mental daqueles que o chamavam de “ditador”. Conteve-se, assumindo uma expressão de realeza ferida mantendo a dignidade. De repente, uma única risada breve e desconhecida ecoou. Da cabeleireira? Do Clezão? Ou da própria História? Tolice, era o cansaço, pensou, passando o olhar pela última vez no voto. Fez bem, havia escapado um “violenta”, prontamente corrigida para “violentíssima”. Mais uma missão cumprida.

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