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Detalhe de “O Sermão da Montanha”, de Carl Bloch.
Detalhe de “O Sermão da Montanha”, de Carl Bloch.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

Meses atrás um sujeito me qualificou como sendo um “intelectual bolsonarista”. Respondi à época que só um “intelectual dilmista” chegaria a essa conclusão. Como o etiquetador não me respondeu mais, ficou por isso mesmo. Mas essa parvoíce me lembrou de um texto que escrevi anos atrás, sobre como nos definimos e como os outros nos definem. Revisitei-o, atualizando várias coisas, mas não no essencial, que segue sendo ainda mais valioso para mim hoje do que à época.

Se sempre tive dificuldade de aceitar uma definição profissional como sendo suficiente como identidade, como, por exemplo, “fulano é médico”, quanto mais por rótulos como o de ser conservador ou progressista, de direita ou de esquerda. Para mim, isso sempre valeu menos do que me identificar como torcedor do Athletico, por exemplo, o que de fato sou e sempre serei mais do que qualquer dessas outras coisas que me parecem relativas demais para darem identidade a quem quer que seja.

Já fui de esquerda, por exemplo. Só depois dos vinte e poucos anos é que me dei conta de que estava sendo sem saber direito como nem por quê. No que comecei a pensar nisso, não precisei de muito para abandonar o esquerdismo. Mas deixar de ser de esquerda torna alguém de direita? Não sei mesmo. O que sei é que na mesma época decidi deixar isso em suspenso até estudar melhor e, se fosse para ser de direita, que viesse a ser com conhecimento de causa. Mas quanto mais estudava, menos isso me interessava. De verdade.

Se sou conservador, o sou ao estilo brasileiro, mais por um certo instinto preguiçoso que por uma escolha consciente

Quando li a famosa resposta dada por Nelson Rodrigues à pergunta feita por Clarice Lispector (“Nelson, você é da esquerda ou da direita?”), identifiquei-me tanto que faria mais sentido eu me considerar como rodrigueano do que de direita: “Eu me recuso absolutamente a ser de esquerda ou de direita. Eu sou um sujeito que defende ferozmente a sua solidão. Cheguei a essa atitude diante de duas coisas, lendo dois volumes sobre a guerra civil na história. Verifiquei, então, o óbvio ululante: de parte a parte todos eram canalhas. Rigorosamente todos. Eu não quero ser nem canalha da esquerda nem canalha da direita”.

Também não quero. Restava-me entender que solidão é essa que valeria tanto a pena assim defender. Acho que hoje a entendo melhor, mas voltarei a isso no fim deste artigo.

Quanto a conservadorismo e progressismo, não foi diferente, embora sejam definições mais significativas que esquerda e direita. Fui descobrir que, ao ter suspendido essas decisões até entender melhor do que se tratavam as opções em jogo, eu estava sendo prudente. Como a Prudência, dizem, está na essência do conservadorismo, parecia que tinha encontrado minha turma.

Mas, se sou conservador, o sou ao estilo brasileiro, mais por um certo instinto preguiçoso que por uma escolha consciente. Também porque pouco me interessei pela bibliografia conservadora desde o início de meus estudos solitários, preferindo muito mais conhecer melhor o que, no fim das contas, deveríamos conservar. Por isso, se for fazer as contas, acho que do conservadorismo tenho só o amor à prudência e o interesse mortal pelo guarda-roupa que me levou a algo muito maior e melhor do que “ser conservador”.

Se você não entendeu de imediato a referência ao guarda-roupa, pare de fazer pose de conservador e vá ler as Reflexões sobre a Revolução em França, do pai fundador do conservadorismo, Edmund Burke, que ao perceber a desgraceira que viria em razão daquilo profetizou: “Toda a roupagem decente da vida deverá ser rudemente rasgada. Todas as ideias decorrentes disso, guarnecidas pelo guarda-roupa da imaginação moral, que vêm do coração e que o entendimento ratifica como necessárias para dissimular os defeitos de nossa natureza nua e elevá-la à dignidade de nossa estima, deverão ser encostadas como moda ridícula, absurda e antiquada”.

O Cristianismo é o guarda-roupa da imaginação moral. Um cristão não tem de ser um conservador, no sentido ideológico do termo, mas um conservador ocidental que não seja cristão nem conservador é

Quando li isso fiquei com o guarda-roupa na cabeça. Do que ele está falando exatamente? Ao procurar saber mais, notei que a maioria imensa dos conservadores se interessou e fala muito sobre imaginação moral, mas quase nada dizem sobre a analogia usada que me parece dizer muito mais e melhor do que essa expressão: “imaginação moral”. Quem melhor falou sobre o fez usando ainda mais fortemente a analogia, até abusando da alegoria. Faça o teste: leia tudo que já escreveram sobre imaginação moral e depois leia O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, de C. S. Lewis, e perceba como a ficção de Lewis faz você entender isso muito melhor.

No fim das contas, todos esses termos e expressões como “roupagem decente da vida”, “guarda-roupa da imaginação moral” ou mesmo “civilização ocidental”, “tradição”, “alta cultura”, “valores permanentes” e outros assim só ganham sentido e significado quando partem do e remetem ao coração da própria realidade da vida que nos conserva: Jesus Cristo, alegorizado como o leão Aslam nas Crônicas de Nárnia criada por Lewis.

Só me interessa conservar aquilo que é Jesus Cristo em mim. Assim como também me interessa tudo o que me faz progredir ainda mais para Ele

Ou seja, o Cristianismo é o guarda-roupa da imaginação moral. Não se trata apenas de algo “importante” a ser conservado, algo que “faz parte” do conservadorismo, mas do próprio fundamento de toda e qualquer coisa que valha a pena ser conservada. Por isso, um cristão não tem de ser um conservador, no sentido ideológico do termo, mas um conservador ocidental que não seja cristão nem conservador é.

Incomodado, leitor conservador? Bem-vindo à sua solidão. Aquela que faz com que nada possa definir quem você é. Ser advogado, médico, engenheiro, ou qualquer outro ofício, assim como ser conservador, progressista, de direita, esquerda, pode representar alguém em alguma medida, mas não em tudo e no todo. Para tanto, só Jesus Cristo, ainda que seja um imenso bom combate permitir que Ele nos defina.

Por isso, só me interessa conservar aquilo que é Jesus Cristo em mim. Assim como também me interessa tudo o que me faz progredir ainda mais para Ele. Talvez ainda não seja um sujeito que defende ferozmente a sua solidão, mas ao menos sei que essa solidão só vale a pena ser defendida se for a ocasião para encontrá-Lo. Fora Dele somos todos canalhas.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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