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Soldados britânicos marcham em direção a Port Stanley durante a Guerra das Malvinas.
Soldados britânicos marcham em direção a Port Stanley durante a Guerra das Malvinas.| Foto: Imperial War Museum

Era 12 de abril de 1986. O frio agradável do outono invadia a sala pelos amplos janelões, com as cortinas esvoaçando pela brisa do fim da tarde, quase noite. Na minha memória, meu pai fumava recostado na porta aberta para o jardim, despedindo-se dos últimos convidados. Esparramado no tapete da sala de visitas, eu conferia meus presentes. Nenhum brinquedo. Sinal de que a infância ia ficando para trás.

Entre os pacotes abertos, um disco. Era o vinil do Brothers In Arms, do Dire Straits. Coloquei na vitrola do 3 em 1 da Gradiente que meu pai instalara em nichos do armário do bar de casa. Não sei em qual música me dei conta do quanto estava gostando, só sei que quando percebi decidi escutar tudo de novo, mas desta vez prestando atenção, lendo as letras no encarte com o inglês mais do que iniciante dos meus 10 anos de idade.

Perdi as contas de quantas vezes escutei esse disco, mas desde que foi em CD, depois em MP3, depois no Spotify, a noção dos lados A e B se perdeu

Sozinho ali fiquei, com as janelas abertas, a sala toda iluminada como se ainda houvesse festa, com lustres e abajures acesos, vivendo o que se tornaria uma de minhas memórias afetivas mais queridas. A que pude revisitar com mais vida recentemente, por ter ganhado de presente o mesmo disco (valeu, Jefferson!). Voltar a escutar os lados A e B, dando atenção às músicas enquanto lia as letras no encarte simples de contraste horroroso entre um fundo de céu azul e letras rosas minúsculas, foi como dizer “olá” ao piá que um dia fui.

Perdi as contas de quantas vezes escutei esse disco, mas desde que foi em CD, depois em MP3, depois no Spotify, a noção dos lados A e B se perdeu. E não deveria, porque formam partes distintas na obra. O lado B é temático, com todas as quatro canções falando sobre guerra. Foram compostas quando da Guerra das Malvinas (ou Falklands, para os britânicos), todas com a mesma ideia que pode ser sintetizada nesses versos de Ride Across the River: “É a mesma velha história com um nome diferente / Morte ou glória, é o jogo da matança”.

Mas dessas apenas uma é digna de ser lembrada, a que empresta o título ao nome do disco: Brothers In Arms. Durante anos dormi escutando música, fosse rádio ou disco ou fita cassete ou depois CD. A que mais me recordo de adormecer escutando é esta bela balada cuja letra é sobre um soldado ferido em batalha à beira da morte passando sua vida a limpo e constatando que os “irmãos de armas” não eram apenas aqueles que lutavam ao seu lado, mas também os soldados inimigos, o que nos tornaria tolos por fazermos e lutarmos em guerras.

Aliás, em 2007, Mark Knopfler, o compositor e bandleader dos Dire Straits, regravou esta música com a finalidade de angariar fundos para ajudar soldados que lutaram naquela guerra a poderem voltar às Falklands como parte do tratamento de stress pós-traumático. Não sei se você sabia, leitor curioso, mas os britânicos tiveram mais soldados mortos por suicídio depois desta guerra do que em combate. Mais de 300 tiraram suas vidas, muito pelo que viveram na guerra.

É claro que no século 21, até aqui marcado pelo politicamente correto, Money For Nothing seria cancelada. Como foi, ao menos por um tempo, no Canadá

Gosto tanto desse disco que criei uma playlist só com suas músicas, mas em outra ordem, dando nova forma ao conjunto. Transformei o lado B em A e, depois de Brothers in Arms, coloquei Why Worry?, a última do lado A, porque “Tem de haver sol depois da chuva / Essas coisas sempre foram assim / Então, por que se preocupar agora?”. Ao que seguem as duas outras baladas do disco: Your Latest Trick e So Far Away. E danço com as lembranças de tantos bailinhos de adolescência, quando as escutava sem coragem de tirar aquela menina para dançá-las.

Só então vem a mais famosa canção do álbum: Money For Nothing, que só de ler o nome aposto bastou para você escutar mentalmente o riff da guitarra de Knopfler na introdução. Não sei se você já parou para prestar atenção à letra, mas ela tem por protagonista um empregado de loja de eletrodomésticos falando mal de músicos famosos que ganhavam “dinheiro por nada e minas de graça”. A fala do sujeito foi real, Knopfler estava na loja, escutou-o e começou a anotar. A genialidade foi em colocar outra voz, parecendo ser a da inveja revelada do sujeito, para cantar o verso mais famoso: “Eu quero minha MTV”. Quem canta este verso, aliás, é Sting.

Como na fala do protagonista ele xinga os músicos de “faggot”, é claro que no século 21, até aqui marcado pelo politicamente correto, Money For Nothing seria cancelada. Como foi, ao menos por um tempo, no Canadá, por ser supostamente homofóbica. A proibição das rádios tocarem a música durou mais de ano, de fevereiro de 2010 a agosto de 2011, com o órgão governamental enfim permitindo o óbvio: que as rádios decidissem se deveriam ou não tocar a música. Que saudades dos anos 1980, não?

Por fim e enfim, deixei por último a mais animada das músicas do disco: Walk Of Life. Que é sobre um músico de rua tocando canções muito conhecidas por todos, tentando ganhar uns trocados por isso e, com isso, fazer a sua “caminhada na vida”. Trata-se de uma homenagem aos músicos, que serve como resposta ao protagonista de Money For Nothing, mas também e principalmente é uma homenagem à música em si, que transcende momentos e épocas, devolvendo-nos ao que mais importa, àquilo que faz do mero sobreviver um viver: “E depois de toda violência e conversa fiada / Resta sempre uma música para todo problema e conflito”. And then you do the walk, you do the walk of life!

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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