Os Dois Minutos de Ódio em cena do filme “1984”, baseado no livro de George Orwell.| Foto: Divulgação
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Levante a mão quem ainda não disse “estamos vivendo uma realidade distópica”. Aí citamos 1984 ou Admirável Mundo Novo, obras tão conhecidas que nem sequer precisamos lê-las para fazer parecer que sabemos do que estamos falando. Como, de fato, o que vai nessas obras retrata muito da realidade, não há quem discorde e, assim, posamos (para nós mesmos, principalmente) como se fôssemos os heróis que, por terem consciência disso, escaparam ou, ao menos, não contribuem para a distopia. Mas será?

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Na verdade, quando falamos que vivemos sob uma distopia, estamos muito mais falando do medo de isso acontecer que da realidade de uma, ainda que em parte a situação atual possa ter características disso. O que, porém, não percebemos é que o medo é justamente um dos requisitos essenciais para que uma distopia se torne realidade. Porque jamais um totalitarismo é instaurado pelo que é, sempre começa pleno de boas intenções em razão de medos perfeitamente justificados.

Na pandemia, podemos achar coisa muito certa e justa o Estado saber se estamos ou não “ficando em casa” pelo monitoramento de smartphones. Mas não há como negar que também significa alguns longos passos dados na direção de um poder de controle inimaginável sobre as pessoas

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Por exemplo, em 2013 houve as revelações de Snowden sobre o monitoramento que o governo americano, sob o comando de Obama, fazia de seus cidadãos. Assustador, sem dúvida, mas quando pensamos nos atentados terroristas do 11 de setembro de 2001, isso não parece aceitável? Agora mesmo, na pandemia, podemos achar coisa muito certa e justa o Estado saber se estamos ou não “ficando em casa” pelo monitoramento de smartphones. Mas não há como negar que também significa alguns longos passos dados na direção de um poder de controle inimaginável sobre as pessoas. Isso não dá medo?

É justamente o medo que fez as vendas de 1984 explodirem em mais de 7.000% em 2013, quando das revelações de Snowden. E no Brasil, desde o ano passado, as vendas do mesmo livro já subiram mais de 600%. Também é o medo que explica por que, em 2017, com a posse de Donald Trump, o livro voltou à moda. Aliás, quando falamos em Trump, ou mesmo Bolsonaro, podemos entender também outro ingrediente básico para a formação das distopias totalitárias e até mais necessário: o ódio.

Quem realmente leu 1984 sabe o que são os Dois Minutos de Ódio. Todos os dias há um momento, um intervalo do trabalho, em que o rosto do inimigo maior do Estado, chamado Emmanuel Goldstein, aparece numa tela, fazendo um discurso. É o momento para sentir ódio de Goldstein. Como esse ódio é sempre alimentado desta forma, não era preciso nem dois minutos para fazê-lo brotar: “Não fazia nem meio minuto que o Ódio havia começado e metade das pessoas presentes no salão já começara a emitir exclamações incontroláveis de fúria. Impossível tolerar a visão do rosto ovino repleto de empáfia na tela”.

Se você prestar atenção à dinâmica de uma rede social como o Twitter ou de muitos grupos de WhatsApp ou Telegram, facilmente perceberá como ela é muito parecida com a dos Dois Minutos de Ódio. Estamos o tempo todo sendo bombardeados por algo que desperta nossa ira e, de tão habituados com isso, rapidamente nos deixamos levar pela raiva cristalizada, independentemente de qualquer outra coisa.

Tomar consciência de que estamos dentro de uma distopia não faz com que escapemos dela ou deixemos de ser parte do problema

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Estou a reler 1984 com grupos de leitura em que faço a mediação. Sempre que trabalho com o livro, faço um experimento que costuma funcionar para demonstrar esse ódio dentro de nós. Por escrito, não sei se dará certo, mas com imagens sempre deu. Desta vez, mostrei uma imagem contendo Lula de um lado e Bolsonaro do outro. Ato contínuo, perguntei: “Alguém aí não sentiu ódio?” Não importa qual deles seja o seu “Goldstein” odioso de estimação ou mesmo ambos, o que interessa aqui é se dar conta do ódio enraizado que você sente e do quanto você pode ser facilmente manipulado por meio dele, tanto quanto os personagens do livro. Aliás, isso explica muito mais do que se imagina da busca, já desesperada, por uma possível “terceira via” entre Lula e Bolsonaro. Se será melhor, é o de menos, o que importa é que “eles não”. Não está sendo assim?

Quer outro teste? Está achando que estou fazendo defesa de Lula e/ou Bolsonaro? Se sim, você segue nos seus Dois Minutos de Ódio. Eu simplesmente não disse nada a favor ou contra nenhum dos dois, apenas os usei como exemplo para diagnosticar o nosso ódio, que pode ser tamanho a ponto de nos deixar cegos e surdos para qualquer outra coisa, criando nossa “distopia particular”.

Agora, retorne à pergunta inicial que fiz no primeiro parágrafo. Está vendo como tomar consciência de que estamos dentro de uma distopia não faz com que escapemos dela ou deixemos de ser parte do problema? Para tanto, é preciso reconhecê-la também dentro de você, no medo e ódio que faz com que se torne refém dessa dinâmica que pavimenta o caminho para o surgimento de uma distopia que não nasce assim, mas parecendo algo bom que supostamente lhe protegeria do que teme e aniquilaria o que odeia.

Por isso, em 1984, Goldstein e até o Grande Irmão são o que menos interessa, mas muito mais os próprios personagens que vão despertando dentro da sua própria “bolha distópica” para, só então, poder pensar em como sair daquela outra, “do lado de fora”. E, se não fizermos isso também, 1984 continuará sendo profético e refletindo nossa realidade por muito tempo. Qual o próximo capítulo? Meu palpite é este: “Alguma vez lhe ocorreu, Winston, que lá por 2050, no máximo, nem um único ser humano vivo será capaz de entender uma conversa como a que estamos tendo agora?”

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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