Ricky Gervais em cena da série “After Life”, da Netflix.| Foto: Divulgação/Netflix

Pelas minhas contas, era para estarmos na 23.ª Guerra Mundial, procede? Eu sei, se contar o Twitter é uma guerra mundial permanente e infinita, mas até histeria tem de ter limite; então, vamos contabilizar apenas a que vazou desse Chernobyl virtual para o noticiário em geral. Acho que 23 é um chute tímido, até. Mas provavelmente mais próximo da realidade do que pesquisa do Datafolha.

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Seja lá quanto for, acho que já estamos naquela fase da fábula O Pastor e o Lobo, de Esopo, em que depois de tanto o pastor inventar que estava tendo ataque de lobos, quando teve mesmo, ninguém mais acreditou. A próxima fase, deduzo, será pensar como um personagem da série Homeland, o Peter Quinn, que numa reunião na CIA se encheu das maquinações supérfluas e lascou uma solução definitiva para o Oriente Médio: “lancem logo uma bomba atômica lá e façamos um estacionamento”.

Não sei você, leitor igualmente de saco cheio, mas se e quando vier a bomba atômica provavelmente estarei rindo de algum meme sobre o fim do mundo. Não tenho vocação para sobrevivencialista. Conhece algum? São mais encontráveis nos EUA, no Brasil ainda são espécime rara, e começaram a se tornar comuns no século 20, em virtude das grandes guerras mundiais e, mais ainda, com a Guerra Fria e o temor da bomba atômica.

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Não quero sobreviver à hecatombe politicamente correta, prefiro sucumbir incorretamente aos olhos dessa gente pouco bronzeada que se acha cheia de valor

Em resumo, os sobrevivencialistas tentam ficar preparados para conseguirem sobreviver a catástrofes, seja de ordem ambiental, econômica, militar etc. Constróem bunkers, estocam comidas, medicamentos, armas, utensílios diversos. A  Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, os populares mórmons, por exemplo, orienta seus fiéis a estocarem comida, água e outros itens de necessidade básica suficiente para três meses. Antigamente era para um ano. Eram mais sobrevivencialistas antes.

Sendo sincero, tenho um sentimento confuso de admiração e zombaria pelos sobrevivencialistas. Sei que são como a formiga de outra fábula de Esopo, A Cigarra e a Formiga, que enquanto se preparam têm de aguentar a cigarra cantando, ou, como no meu caso, zoando, mas meu ser católico só consegue olhar para um bunker de abrigo contra a bomba atômica e se perguntar: “mas, se vai ser o fim do mundo, por que vocês querem ficar?”

Mas talvez eu seja mais sobrevivencialista que todos os sobrevivencialistas; afinal, a essência da sobrevivência é a capacidade de se adaptar e eu considero que é exatamente isso que estou fazendo nessa desgraça de mundo em que vivemos, somente suportável para mim pela zoeira indiscriminada, o que me inclui. A zoeira é meu bunker antiatômico, meu estoque para um ano de miojo, Heineken, penicilina e cartuchos de espingarda calibre 12 Winchester Defender 1300.

Nesta semana acrescentei mais um item precioso ao estoque: o discurso de abertura feito pelo comediante Ricky Gervais na recente premiação do Globo de Ouro. Se ainda não assistiu, assista. Vale muito a pena. Gervais despiu a hipocrisia politicamente correta, mostrando-a pelo que é: ridícula. Jones Rossi e Flavio Gordon escreveram tudo que precisava ser escrito sobre o discurso e a reação suscitada nos progressistas em geral, mas me interessa aqui outro ponto e quem melhor o resumiu foi o próprio Gervais em um tweet: “Não ‘fritei’ Hollywood por ser um bando de liberais. Eu mesmo sou um liberal. Nada de errado com isso. Eu os ‘fritei’ por usarem do liberalismo como se isso fosse uma medalha”.

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Lembrando que nos EUA os chamados “liberals” são o equivalente da nossa “esquerda”. Ou seja, Gervais comunga de quase todos os ideais que Hollywood propagandeia, mas tem senso do ridículo que é se crer superior por vestir essa ou aquela ideologia. Politicamente, desprezo quase todas as bandeiras que Gervais defende, mas sou seu irmão de armas para sobreviver a essa escumalha que acha que por ser de esquerda, direita, de cima, de baixo, torna o sujeito uma pessoa boa, merecedora de medalha.

A traulitada de Gervais deixou a baixeza dessa gente exposta e vários correram se esfregar na lama, como minutos depois a atriz Michelle Williams, vencedora de sei lá o quê, ao ter discursado achando lindo ter matado um bebê, com a agravante de ter sido seu filho(a), abortado no passado, considerando que só assim teve sucesso na carreira. Como Mefistófeles é sacana, não duvido a atriz seja chamada para interpretar o primeiro Fausto mulher nos cinemas, para tornar mais representativo o gênero feminino na longa e fecunda tradição de vender a alma ao demônio.

Sim, comentarista que nunca entende o que lê, apenas o que gostaria que fosse escrito, eu sei que Gervais é defensor do aborto e seu discurso foi somente em relação a usar isso como bandeira durante a premiação. Agora, adivinha? Tal como Gervais, I don’t care! Não quero sobreviver à hecatombe politicamente correta, prefiro sucumbir incorretamente aos olhos dessa gente pouco bronzeada que se acha cheia de valor.

Talvez eu seja mais sobrevivencialista que todos os sobrevivencialistas; afinal, a essência da sobrevivência é a capacidade de se adaptar

E prefiro fazer isso tomando um chope ao lado de um Ricky Gervais do que com muito pró-vida histérico por aí, como esses que acham que o Estado tem de censurar o Porta dos Fundos. E tenho certeza de que ele também preferiria isso a participar das festas depois dessas premiações. Porque, como ele mesmo escreveu em um texto sobre seu ateísmo, “essa é outra coisa que aprendi naquele dia, que a verdade, por mais chocante e desconfortável, no final nos liberta e dignifica”.

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Falando em verdade, a morte é uma delas, das que nos libertam das politicagens da vida e nos unem novamente, inclusive ao bebê abortado da Michelle Williams. E Gervais é o criador e protagonista de um dos seriados mais despretensiosos dos últimos anos, After Life, da Netflix, que fala justamente sobre isso, retratando o luto de um viúvo que não aceita de modo algum a morte da esposa. Ele sobrevive, mas recusando ser um sobrevivencialista. Na série você encontra pérolas como esta, da personagem Anne, que igualmente perdeu o esposo: “Tive a mais maravilhosa vida com Stan. E tenho todas essas memórias. E Stan teve uma vida maravilhosa também… E ele não está sentindo dor. Nem sabe que acabou. Eu sei. Mas prefiro viver sentindo sua falta do que ele vivendo sentindo a minha. Eis quanto eu o amo”.

Onde eu estava mesmo? Ah, sim, procurando um antídoto a toda essa histeria mundial. Encontramos, não? Mas se você acha que não, leitor incomodado, então resta me despedir com outra passagem desse seriado, quando a enfermeira que cuida do pai de Tony, personagem de Ricky, que está internado num asilo, veio avisar que ele deixou muita gente triste no dia, tendo dito a uma velhinha que gostaria de transar com ela por trás. Tony perguntou, sorrindo: “por que por trás?”, ao que a enfermeira respondeu: “Acho que não é exatamente essa a questão aqui”. Riu? Ao menos sorriu? Pois devia. Porque, como disse Gervais: “Qual a razão para termos humor? O humor é para suportarmos coisas horríveis”. Como um aborto. Como a morte. Como uma guerra mundial. Como a nossa histeria infernal.