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Manifestantes pró-vida diante da Suprema Corte em 24 de junho, comemorando a decisão do tribunal que derrubou Roe v. Wade, a decisão que restringia o poder de os estados norte-americanos proibirem o aborto.
Manifestantes pró-vida diante da Suprema Corte em 24 de junho, comemorando a decisão do tribunal que derrubou Roe v. Wade, a decisão que restringia o poder de os estados norte-americanos proibirem o aborto.| Foto: Shawn Thew/EFE/EPA

A ideia de entrevistar Carlos Xavier, bacharel em Direito pela UFRGS, mestre em Direito pela UFPR e bacharel em Teologia pela Fabapar, surgiu durante a preparação para o episódio 99 do podcast Onze Supremos, em que conversei com ele sobre a temática do aborto, ainda na repercussão da recente revogação do caso Roe v. Wade pela Suprema Corte dos Estados Unidos. As perguntas estão baseadas no roteiro inicialmente proposto pelo David Sobreira, o apresentador do podcast. O leitor pode acompanhar o episódio com nossa participação aqui.

Carlos, por que você entende que pode contribuir para a discussão acerca do aborto?

Penso que a contribuição que posso trazer à discussão do assunto está muito ligada aos meus estudos sobre a família na perspectiva da lei natural, que deram origem ao livro que eu publiquei no ano passado, Educação Domiciliar, um Direito Humano Negativo. A minha formação, que combina direito e teologia – objeto dos meus dois canais no YouTube, Direito Sem Juridiquês e Teodidatas –, me levou a desenvolver um interesse muito grande por filosofia como uma espécie de ponte entre as duas disciplinas e, na teologia em particular, pela apologética. E meu treinamento em apologética tem contribuído de uma forma bastante rica para minha perspectiva sobre o direito, especialmente sobre a filosofia do direito.

Cada vez mais tenho me preocupado não somente com a fundamentação filosófica dos argumentos (e antropologia filosófica é um interesse que temos em comum), mas também com o seu rigor lógico. Esse rigor tanto filosófico quanto lógico me ajudou bastante a tratar da questão do direito à educação domiciliar, e creio estarmos de acordo que esse mesmo tipo de rigor (filosófico e lógico) pode ser de grande proveito quando aplicado à consideração do tema do aborto.

Em discussões de temas sensíveis como o aborto, algumas pessoas tendem a dar muita importância para o lugar de fala. Como você, como homem, poderia contribuir para essa discussão?

Meditando previamente sobre o episódio que iríamos gravar juntos (e isto tem um pouco a ver com o tal “lugar de fala”, na medida em que ao menos aponta para a empatia), eu lembrei do enfrentamento que, na apologética, é feito sobre problema do mal, o problema do sofrimento (aquele antigo questionamento sobre as razões da existência do sofrimento num mundo criado por um Deus onipotente e bondoso). Não vou entrar na abordagem filosófica aqui, embora esteja bem estabelecido que, a partir do trabalho de Alvin Plantinga, o problema do mal não pode ser considerado um anulador racional à fé cristã. Mas isso na perspectiva lógica. Ou seja, o problema lógico do mal não é um anulador racional da fé cristã – e, como disse, não vou entrar nessa questão filosófica e teológica profunda aqui, a não ser apenas para dizer que há muito tempo uma das repostas cristãs ao problema do mal é o reconhecimento de que Deus pode extrair do sofrimento um bem maior.

Por que eu, como homem, poderia falar sobre aborto? Concluí, que posso falar sobre aborto não na simples condição de homem, mas na condição de pai.”

Carlos Xavier, mestre em Direito e teólogo

Mas isso é um possível enfrentamento ao problema lógico do mal. Eu lembrei do problema do mal e do sofrimento especialmente porque os teólogos costumam dizer – e eu penso que com razão – que é necessário separar o problema lógico do mal do problema pastoral do mal. A questão é racional? Se for, há bons argumentos racionais para enfrentar o problema do mal? Ou a questão é existencial, ou seja, diz respeito a uma revolta da pessoa com Deus por causa de uma situação de sofrimento? Porque se a questão for pastoral, a pessoa não precisa de argumentos racionais, mas de cuidado pastoral, de acolhimento, de aconselhamento – isso se ela estiver disposta a ser ajudada, claro.

Deu para perceber como a coisa funciona da mesma forma aqui? Quanto ao aborto, há uma questão existencial, que envolve sofrimento, um drama de vida muitas vezes conectado, na experiência da pessoa, a um verdadeiro dilema moral. Como cristão, quero dizer que não condeno as pessoas que passam por todo esse dilema existencial que envolve a consideração do aborto, especialmente aquelas que optaram pela escolha, e não pela vida, na solução desse dilema.

Isso porque, como cristão, creio que Jesus de Nazaré morreu e ressuscitou para oferecer perdão à humanidade, inclusive para as mães e pais que abortaram seus filhos (sim, é preciso incluir os pais nessa equação, como espero deixar claro logo a seguir...). Assim, creio que a posição da igreja quanto a essas pessoas seja a de acolhimento, a fim de que elas possam sentir o amor de Deus manifestado em Jesus Cristo e tenham o seu drama existencial aliviado – até mesmo porque, e isso é um dado consolidado, o aborto traz consigo várias consequências, tanto físicas quanto, especialmente, psíquicas, com as quais a mulher vai ter de lidar pelo resto de sua vida. Aliás, conheço inclusive iniciativas eclesiásticas e paraeclesiásticas de acolhimento de mulheres em situação de gravidez indesejada, e posso testemunhar que esse é um belíssimo trabalho. O evangelho vivido na prática.

Essa é, então, uma perspectiva pastoral. Isso tem a ver com o drama existencial da mulher e seu acolhimento na igreja. Mas, assim como o problema do mal e do sofrimento tem uma dimensão lógica, não somente pastoral, a questão do aborto também tem uma dimensão ética, social, política. E essa dimensão ética, social e política vai desembocar, necessariamente, no debate público.

No âmbito do debate público, é inevitável perguntar: que tipo de sociedade queremos ser? Qual a nossa perspectiva acerca da vida? Quero dizer, qual o valor de uma vida humana para nós? E qual a nossa perspectiva acerca dos deveres dos pais e das mães para com o novo ser humano por eles gerado?

Fiz essa conexão com a teologia com dois motivos bastante singelos: o primeiro foi demonstrar minha empatia em relação às mulheres que vivem o dilema existencial que circunda uma situação de aborto (concretizado ou não); o segundo, mostrar que é preciso separar esse aspecto existencial, que merece empatia, do aspecto filosófico, que requer a apresentação de razões. Mas é importante reforçar que esta breve menção a um tema teológico (cujo enfrentamento me atrai bastante), com o objetivo de estabelecer uma simples analogia, termina aqui. Apesar dessa conexão acidental com a teologia cristã neste início, minha resposta, a seguir, não será pautada em termos estritamente cristãos. Em outras palavras, não creio que estarei desenvolvendo uma perspectiva religiosa, embora eu também acredite que tenho todo o direito de fazer isso.

Tendo feito essa ressalva inicial, a verdade é que eu fiquei feliz quando nosso entrevistador apresentou a pergunta sobre o “lugar de fala”. Quando eu estava me preparando para aquela nossa conversa, pensei exatamente sobre isso. Por que eu, como homem, poderia falar sobre aborto? E, pensando sobre isso, concluí, que, na verdade, posso falar sobre aborto não na simples condição de homem, mas na condição de pai. E isso está diretamente ligado à forma como pretendo tratar a questão numa perspectiva filosófica, ainda que eu vá iniciar com a minha própria experiência.

Eu não falei da minha família antes, na minha apresentação, para falar sobre ela agora. Sou casado com a Janaina há quase 20 anos, e somos pais de dois adolescentes, um menino de 16 anos chamado Timóteo e uma menina de 13 anos, chamada Catarina. É certo que eu tenho muitas falhas, mas procuro ser o melhor pai que eu posso para os meus filhos. Se você lhes perguntasse, possivelmente esse seria também o depoimento deles, e não somente uma expressão sincera minha. É possível que meus filhos digam não que eu sou o melhor pai do mundo (porque isso seria um claro exagero), mas que eles sabem que eu busco ser o melhor pai que eu posso ser para eles.

E por que busco ser o melhor pai para os meus filhos? Porque, desde o momento em que eles foram concebidos, eu sabia que eles eram não somente uma parte biológica minha (afinal, 50% deles vem do meu material genético), mas eles eram também responsabilidade minha. Embora este meu relato, até aqui, seja existencial (pautado na minha própria experiência), na verdade ele está radicado em aspectos filosóficos muito mais profundos.

De todo modo, na minha própria experiência (perspectiva existencial), os meus filhos nunca foram vistos como uma extensão do corpo da minha esposa. E nunca foram vistos assim nem por ela, nem por mim. Eles sempre foram vistos por nós (e é claro que isso está radicado numa concepção filosófica mais profunda) como seres humanos individuais formados a partir da combinação do nosso material genético.

Então, nossos filhos foram vistos por nós, durante a gestação, não como uma simples extensão do corpo da Janaina, mas, se posso colocar assim para facilitar a comunicação, como uma extensão biológica de nós dois. E, na verdade, eles continuam sendo uma extensão biológica de nós dois – essa não era uma realidade apenas da gestação, enquanto eles precisavam de um sistema biológico especial de proteção e nutrição que funcionava (agora sim) como parte do corpo da Janaina. Aliás, a prova de que eles são uma extensão biológica nossa é que nossos filhos são tão parecidos conosco, tão parecidos conosco, a ponto de eu ter um amigo que brinca que a minha família é usada para calibrar testes de DNA. Sabe aquela história de que a certeza do teste de DNA é de 99,999...%?. Pois é. Isso até que o teste seja feito com a minha família. Se um laboratório nos usar para calibrar os seus exames, dizem por aí que o índice de certeza sobre para 100%.

“Os vínculos biológicos dos pais com seus filhos estão na base dos deveres morais que os pais têm para esses mesmos seus filhos.”

Carlos Xavier

Brincadeiras à parte, esta extensão biológica também se tornou uma extensão social. Meus filhos não são apenas biologicamente parte de minha esposa e parte minha. A partir do momento em que nosso filho mais velho, o Timóteo, foi concebido, eu e a Janaina deixamos de ser apenas um casal e nós três passamos a ser, de forma ainda mais significativa, uma família (pelo menos essa sempre foi a nossa perspectiva existencial, assim como esta também é a minha perspectiva filosófica). Nós não nos tornamos, nesse sentido mais estrito, uma família somente quando ele nasceu. Antes, sempre pensamos em nós realmente como uma família desde o momento em que soubemos da existência biológica dele. Aquela família que já existia desde a concepção do Timóteo, é claro, apenas cresceu no momento em que a Catarina foi concebida.

O fato de nos vermos como uma família nos coloca em uma nova perspectiva de vida. Eu preciso explicar isso um pouco melhor, e aqui aquela abordagem mais filosófica vai se tornando mesmo inevitável. Eu sempre compreendi o meu casamento como uma aliança entre a Janaina e mim. Não um simples contrato, mas uma aliança. De forma bem simples, a diferença entre um contrato e uma aliança é que, num contrato, o que existe são apenas direitos e deveres recíprocos. Já numa aliança, o que existe é uma identidade recíproca. Essa identidade recíproca é a base de direitos e deveres recíprocos. E é importante, aqui, que eu foque não nos direitos, como a sociedade contemporânea de base liberal está tão acostumada, mas nos deveres.

Então, meus filhos são, por assim dizer, extensões biológicas minhas. É claro que eles também são, nesse mesmo sentido, extensões biológicas da minha esposa. E é claro também que eles nunca foram simplesmente parte do meu corpo, assim como não foram simplesmente parte do corpo da minha esposa. Biologicamente, eles uma vez foram uma célula produzida pelo meu corpo e uma célula produzida pelo corpo da Janaina. Mas, uma vez que estas células se encontraram dentro do corpo dela, iniciou-se o processo de gestação de uma nova vida.

O que eu quis dizer até aqui é que, quando esse processo de gestação de uma nova vida começou, nós nos tornamos pai e mãe. Deixamos de ser apenas um casal para nos tornarmos, num sentido muito especial e profundo, uma família.

Como somos uma família, a minha aliança não é mais somente com minha esposa, mas também com os meus filhos. E, em razão da identidade comum que compartilho com eles (lembro que é isso que define uma aliança), tenho também deveres para com eles. Os deveres que eu tenho para com meus filhos são os de não somente cuidar de sua vida e de sua saúde, mas também de fazer tudo o que está a meu alcance para que eles floresçam integralmente como seres humanos. É assim que eu vejo na minha própria jornada de vida, na minha perspectiva existencial. Mas, interessantemente, é isso também o que os ditames de razoabilidade prática da lei natural ensinam.

Percebe que gerar um filho não é simplesmente gerar fisicamente, biologicamente, uma criança? Antes, a geração de um filho tem a ver com o florescimento integral de uma pessoa (e isso também irá nos remeter à perspectiva dos direitos humanos). De forma bem resumida, e usando a minha própria experiência para exemplificar o conceito, é isso o que a lei natural nos diz acerca da família, dos vínculos biológicos e morais que os pais têm com seus filhos: os vínculos biológicos dos pais com seus filhos estão na base dos deveres morais que os pais têm para esses mesmos seus filhos.

Numa perspectiva educacional, esses deveres morais dos pais estabelecem o caráter originário e pré-político da autoridade dos pais sobre os filhos. Esse caráter originário da autoridade dos pais tem importante reflexo nas questões educacionais, e é a base para eu afirmar, desenvolvendo argumentos encontrados no trabalho da professora Melissa Moschella, a educação domiciliar como um direito natural e humano negativo.

Mas o nosso foco aqui não é a perspectiva educacional. O que eu mesmo fui percebendo, com o passar do tempo, é que o mesmo raciocínio que fundamenta aquilo que eu chamo de primazia educacional dos pais (tanto na perspectiva da tradição da lei natural quanto na perspectiva do sistema internacional de proteção dos direitos humanos) tem aplicações profundas no campo da bioética. Não à toa esse também é um dos temas de atuação da própria professora Moschella. Sobre isso, recomendo inclusive uma recente palestra dela sobre mal-entendidos e desafios quanto à ética do aborto.

Dizer que o debate sobre o aborto é um debate sobre o que as mulheres fazem com seu corpo é um grande reducionismo. O corpo das mulheres está envolvido? É claro que, em certo sentido, está, porque a nova vida que está sendo gerada (e que, talvez não seja demais enfatizar, não é parte do corpo da mãe) depende do corpo da mãe para ser protegida e nutrida. Contudo, embora a proteção e a nutrição sejam fornecidas de forma biologicamente inexorável pela mãe, precisamos notar que o pai tem, igualmente, o dever de proteger e nutrir aquela criança em formação. E, mais do que isso, ambos, pai e mãe, têm um compromisso – que decorre da identidade compartilhada com o filho – com o florescimento humano integral deste filho para além do ventre materno.

Por isso, parece-me que homens têm, sim, lugar de fala. Eu, pelo menos, como pai responsável e amoroso de dois filhos, penso que tenho. Se eu tivesse entregue meus filhos à própria sorte, certamente eu não teria o direito de dizer qualquer coisa sobre o assunto. Mas parece que não é esta a situação na qual estou.

Procurar alienar os homens do debate público, dizendo que eles não têm lugar de fala, é colocar todo o peso e toda a responsabilidade pela criação dos filhos nas mulheres. Será que é isso o que realmente queremos? Será que isso é promover igualdade? Parece-me que não. É claro que há uma assimetria biológica aqui. Sempre será a mulher que gestará o filho e o carregará por nove meses. Mas será que colocar todo o peso na mulher é, de fato, promover direitos iguais?

Penso que não. Na minha humilde perspectiva, promover direitos iguais significa estabelecer a responsabilidade igual de ambos – pai e mãe – pelo filho. E pode ser que eu esteja enganado (faz muito tempo que não estudo direito de família), mas me parece que existem, na ordem jurídica brasileira, todos os mecanismos necessários para promover a responsabilidade dos pais irresponsáveis (reconhecimento de paternidade, alimentos, e assim por diante). Obviamente, não estou com isso dizendo que, por haver previsões legais, os pais assumem a responsabilidade pelos seus filhos. Não sou tão ingênuo. É claro que eu sei que as coisas não são tão simplistas assim. O que quero dizer é que um erro não deveria justificar o outro. Se a discussão sobre o aborto não é meramente uma discussão sobre o corpo da mulher, ela também não é uma discussão sobre a sociedade que somos, mas uma discussão sobre o tipo de sociedade que queremos ser – o quanto valorizamos a vida e a família, por exemplo.

“A estratégia histórica para alienar e até mesmo exterminar grupos de seres humanos sempre foi reduzir o seu status ontológico. ‘Não é uma pessoa, e por isso podemos fazer com ele o que quisermos!’ Não estaríamos nós propondo o mesmo para pessoas em formação dentro do útero materno?”

Carlos Xavier

Eu preciso dizer que é realmente lamentável que muitos pais não cumpram com os deveres estabelecidos não somente pelos ditames da razoabilidade prática da lei natural, mas também pelo próprio Código Civil brasileiro (o que é ilustrado pela quantidade enorme de filhos que nem sequer têm o nome do pai no registro de nascimento). Mas será que nós iremos realmente dizer que o melhor a fazer é nos livrarmos de seres humanos em formação, como se eles fossem meramente descartáveis, para que eles não sejam mais um filho registrado sem o nome do pai? Será que, quando nosso debate está pautado em escolher à qual das estatísticas esse desafortunado ser humano irá pertencer – se aos filhos não registrados pelos pais ou aos fetos abortados –, isso não mostra que estamos simplesmente transformando seres humanos em números? Isso não mostra que os estamos desumanizando?

E nós sabemos que a estratégia histórica para alienar e até mesmo exterminar grupos de seres humanos sempre foi reduzir o seu status ontológico. “Não é uma pessoa, e por isso podemos fazer com ele o que quisermos!” Na história recente do Ocidente, africanos não eram considerados pessoas, e por isso eles foram escravizados, maltratados e mesmo mortos. Ainda mais recentemente, judeus não foram considerados pessoas na Alemanha nazista e, por isso, eles tiveram sua propriedade confiscada, foram segregados em guetos, mandados a campos de concentração e, por fim, exterminados. Não estaríamos nós propondo o mesmo para pessoas em formação dentro do útero materno?

Provocado por essa pergunta, encerro essa minha participação inicial com um pensamento que me tomou de assalto enquanto ouvia a repercussão da recente revogação de Roe v. Wade. Muitos têm afirmado que, diante do julgamento de Dobs v. Jackson Women’s Health Organization, as americanas de hoje terão menos direitos do que suas mães e suas avós tiveram nos últimos 50 anos. Acontece que, se estas mães e avós tivessem “exercido esses direitos”, essas mulheres nem sequer estariam aqui para terem seus direitos restringidos, não é mesmo?

Um dos fundamentos para a revogação do caso Roe v. Wade é o fato de há um desacordo moral razoável sobre o aborto e, por isso, o tema deveria ser tratado pelos Legislativos dos estados, e não pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Essa perspectiva de que é o aborto é um desacordo moral razoável é verdadeira entre os cristãos?

Aqui há uma questão que precisa ser bem elucidada, para que compreendamos, por um lado, o seu status jurídico e até mesmo político e, por outro, a sua perspectiva cristã.

Talvez devêssemos distinguir, para começar, o fato de o aborto ser uma importante questão moral do fato de ele representar um desacordo moral razoável. Claro que, na opinião majoritária redigida pelo justice Samuel Alito, o aborto configura as duas coisas, e a constatação disso é uma das bases para a alteração do entendimento da Suprema Corte americana sobre o aborto. Como se trata de uma importante questão moral, Alito reconheceu que a Suprema Corte nem sequer deveria ter decidido sobre o assunto lá em 1973 (caso Roe) e 1992 (caso Casey), especialmente porque a Constituição não consagra o direito ao aborto e porque este não pode ser compreendido como um desdobramento do direito à privacidade ou do devido processo legal substancial (a famosa 14.ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos). Assim, não existe mais o direito ao aborto on demand (ouvi esta expressão num podcast americano recentemente) e a questão deve ser objeto de legislação pelos estados.

A necessidade de o aborto ser tratado pelo Poder Legislativo de cada um dos estados (isso tem a ver com o federalismo forte dos Estados Unidos) é o reconhecimento da Suprema Corte de que o assunto tem relevância moral e, mais do que isso, que existe, na sociedade, um desacordo moral razoável sobre ele. Mas existe mesmo esse desacordo? Ora, parece que ele existe, inclusive entre os cristãos. Pois as pesquisas demonstram que há cristãos pró-escolha e há cristãos pró-vida.

“Se a discussão sobre o aborto não é meramente uma discussão sobre o corpo da mulher, ela também não é uma discussão sobre a sociedade que somos, mas uma discussão sobre o tipo de sociedade que queremos ser – o quanto valorizamos a vida e a família, por exemplo.”

Carlos Xavier

O que eu me perguntei bastante, nesses últimos dias, é como fica a transposição dessa perspectiva para o Brasil. Pois, por aqui, a maior parte da população é contrária ao aborto (e isso, obviamente, inclui os cristãos). Trago aqui uma pesquisa do Datafolha divulgada em 3 de junho, e é interessante a forma como o G1 trabalhou os dados na chamada da notícia (o que tem muito a ver com a forma como a mídia explora a questão, assunto que você trata com maestria): “Datafolha, cai de 41% para 32% parcela da população que quer proibir aborto em qualquer caso no Brasil.” E embaixo, em letras miúdas, “cerca de 4 em cada 10 brasileiros também consideram que a lei deve permanecer como está”.

Desse jeito, parece que a maioria da população brasileira é pró-escolha, certo? Quem acha isso está redondamente enganado. Se deixarmos a cortina de fumaça criada pela manipulação da linguagem se dissipar (não tive como não lembrar do Humpty Dumpty), veremos que 71% dos entrevistados querem ou que a lei permaneça como está (39%) ou que o aborto seja proibido em todos os casos (32%). No meio do caminho, 18% dos entrevistados pensam que o aborto deve ser permitido em mais casos, enquanto somente 8% pensam que o aborto deveria ser permitido em todos os casos (2% não tinham opinião sobre o assunto). Noutras palavras, apenas 26% da população entrevistada é favorável a algum tipo de alteração do status quo atual em direção ao extremo pró-escolha do espectro. E note que essa pesquisa é relativa a toda a população, não somente aos cristãos (embora não seja difícil imaginar que alguém afirmará de forma reducionista que os cristãos são maioria no Brasil).

Mas penso que esta questão tem uma certa nuance. E essa nuance está ligada ao antigo conflito entre o que a maioria entende que é certo e o que é verdadeiramente certo. Nessa perspectiva, parece-me que os cristãos pró-vida (vamos lembrar que há os pró-escolha, e não tenho a intenção de entrar no mérito da questão do ponto de vista distintamente cristão), mesmo que fossem uma minoria, deveriam ter o direito de sustentar, no debate público, as razões pelas quais entendem que o aborto é moralmente errado. E estas razões não precisam ser necessariamente religiosas – não creio que eu mesmo tenha trazido qualquer razão religiosa até aqui, e, ao tocar no ponto do desacordo moral entre os próprios cristãos, eu acabei de evitar construir um discurso teológico acerca do assunto exatamente por isso.

Ao pensarmos em termos de religião e democracia, os cristãos teriam o legítimo direito de, com base em suas crenças, defender a proibição do aborto? Isso não seria impor uma crença a não crentes?

Não vejo como os cristãos estejam impondo qualquer coisa ao simplesmente apresentarem suas razões no âmbito do debate público. Aliás, se há cristãos fazendo isso (impondo suas crenças), eles deveriam ler boas obras de cristãos acerca do assunto, como a Carta Acerca da Tolerância, do anglicano John Locke – sei que Locke era unitarista e deísta, mas o que importa é que seu pensamento, nesse aspecto, reflete valores cristãos e uma resposta genuinamente cristã, baseada nos princípios do Evangelho, especialmente o do amor ao próximo, num dos séculos em que mais houve intolerância religiosa, o 17. Depois, porque os cristãos podem, com a preparação intelectual adequada, travar o debate em outros campos que não o estritamente bíblico-teológico; repare que, embora eu pudesse já ter citado diversos versículos bíblicos aqui, optei intencionalmente por não fazer isso, a fim de conduzir o meu posicionamento noutros termos.

Apesar disso, há uma outra questão de fundamental importância. Por que os cristãos não poderiam trazer motivos distintamente cristãos para o âmbito do debate político? Note que falo de trazer suas próprias razões, e não simplesmente de impor as suas razões. Ora, a decisão de alienar um determinado grupo do debate político é qualquer coisa, menos democrática. Assim, a proposta dos autoproclamados liberais, de interditar a possibilidade de que argumentos religiosos sejam trazidos ao debate público, é manifestamente autocontraditória. Ela é autocontraditória porque nega a tolerância, a própria base histórica do liberalismo, e porque assume, em si mesma, uma proposta distintamente religiosa. Pois interditar a possibilidade de argumentos religiosos é, sim, uma escolha religiosa.

Por isso, não consigo ver qualquer fundamento racional para impedir que os cristãos tragam seus argumentos ao debate público, mesmo que eles sejam argumentos de base religiosa, ainda que eu tenha deliberadamente me autocontido quanto a esse tipo de argumento.

A discussão acerca do início de uma nova vida é fundamental. Pra você, qual a melhor abordagem? Qual o papel da ciência e como a filosofia pode contribuir com isso?

A primeira coisa que me vem à mente quando alguém invoca a “ciência” numa discussão como esta é o que pode ser chamado de autorrefutação do cientificismo. Resumidamente, o cientificismo diz que a única forma de conhecimento válida é a científica (por isso, é evidente que, quando alguém apela “exclusivamente” à ciência num debate como este, esta pessoa está deixando clara a sua opção epistemológica pelo cientificismo).

Acontece que a premissa básica do cientificismo – novamente, de que a ciência é a única fonte válida de conhecimento – não é informada pela ciência: esta premissa não pode ser objeto de demonstração em um laboratório, não é passível de replicação, não é passível de previsão. Aí está a autorrefutação do cientificismo, e a pessoa que afirma estar baseada exclusivamente na ciência num debate como este, na verdade, está usando a ciência como desculpa para mascarar uma posição que é sustentada em outras bases. Na sequência, experimentarei algumas posições que se afirmam como baseadas na ciência à luz de um recurso usado para identificar falácias lógicas, conhecido como “redução ao absurdo”: as posições supostamente científicas induzem – como pretenderei demonstrar – estados de coisas absurdos quando levadas às suas últimas consequências lógicas exatamente porque têm em sua base a autorrefutação do cientificismo. E isso somente demonstra que a ciência não se presta – na verdade, por definição conceitual, jamais se prestaria – para conduzir o rumo dessa discussão.

Mas, de todo modo, se ao menos alguém pudesse dizer com certeza qual o “estado da arte da ciência” acerca do início da vida, então talvez nós pudéssemos levá-lo em conta. Claro que podemos considerar questões biológicas e médicas, mas isso somente nos levará, segundo eu penso, à percepção de que a discussão se dá em outro campo, no campo filosófico.

Como tenho uma tendência muito grande à abstração filosófica, eu novamente me autocontive e procurei um livro-texto de embriologia (Embriologia Clínica, de Moore, Persaud e Torchia, 10.ª edição). O que eu pude notar, ao folhear esta obra de referência, é que a todo momento os autores falam em vida intrauterina. E o momento após o qual eles começar a falar em vida é exatamente a fecundação. Mas vou deixar isso de lado porque eu acho que a questão não vai encontrar resposta no âmbito clínico. A resposta precisa ser encontrada no âmbito filosófico.

De todo modo, sob uma roupagem supostamente científica, algumas pessoas defendem que deveria haver direito ao aborto até a 12.ª semana de gestação. Este é um critério cuja discussão é mesmo importante. Além de ter sido um dos critérios adotados pela Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Roe, a 12.ª semana é o marco utilizado na ADPF 442, ajuizada em 2017 pelo PSol com o objetivo de que o Supremo Tribunal Federal descriminalize o aborto realizado até o terceiro mês de gestação.

“O processo biológico foi iniciado no momento da concepção, e o embrião tem todas as capacidades para se desenvolver num ser humano completo.”

Carlos Xavier

A fundamentação desse critério seria a ausência de senciência? Mas este é um critério médico, clínico para o início da vida? Embora eu creia que não seja (porque senciência é uma característica da filosofia da mente), vamos seguir por aí. Não havendo senciência não há vida? Então posso tirar a vida de alguém, desde que a pessoa não sinta dor? Nesse caso, a solução é bem simples. Bastaria aplicar um anestésico poderoso antes, e poderíamos tirar a vida de qualquer pessoa. E agora estou trabalhando filosoficamente, estou levando seu argumento às últimas consequências lógicas para demonstrar sua incoerência.

Vou aproveitar a questão da senciência para introduzir uma distinção importante. Até onde meus estudos sobre a filosofia da mente me permitiram ir, pude notar que, talvez, o melhor critério para definir a humanidade não seja a senciência, mas a consciência. Porque o que distingue um ser humano de um animal é exatamente a consciência. De forma bem simples, um ser senciente sente, enquanto um ser consciente sente que sente.

Contudo, consciência por consciência, um bebê recém-nascido tem tanta consciência quanto um bebê no ventre materno (quer dizer, nenhuma). Não é de estranhar que alguns defensores do aborto sejam também defensores do assassinato fora do útero. Novamente, nós temos aqui a redução ao absurdo, porque essa possibilidade parece repugnar ao senso comum. Estou apenas lançando mão dessa distinção entre senciência e consciência para enfatizar a completa arbitrariedade de tentar traçar uma linha divisória a partir de algum critério médico-clínico. A questão é, e sempre será, filosófica.

Mas posso, ainda, perguntar por que o critério seria a sensciência, na 12.ª semana, e não o primeiro batimento cardíaco, por volta da 6ª semana? Mencionei o primeiro batimento cardíaco como uma alusão ao Texas Heartbeat Act, uma lei texana que, de certa forma antecipando a revogação de Roe pela Suprema Corte, proibiu o aborto a partir do primeiro batimento cardíaco do bebê (o que acontece por volta da sexta semana de gestação). Esta lei já causou bastante polêmica, e está atualmente suspensa por uma decisão de um juiz de primeiro grau.

Mas esse critério do primeiro batimento é tão arbitrário quanto o da sensciência ou o da consciência. Para mim, filosoficamente, a questão se resolve na consideração das capacidades que o feto tem de se tornar um ser humano. O processo biológico foi iniciado no momento da concepção, e o embrião tem todas as capacidades para se desenvolver num ser humano completo. Como você mesmo explica tão bem, o bebê no ventre materno não será uma pessoa quando se tornar consciente, mas ele se tornará consciente porque é uma pessoa.

Nesse sentido, gostaria de aproveitar para conectar a discussão com o sistema internacional de proteção dos direitos humanos. No âmbito do sistema internacional, o Preâmbulo da Declaração dos Direitos da Criança (1959) e, mais significativamente, o Preâmbulo da Convenção dos Direitos da Criança (1989), ambos com a mesma redação, deixam claro que “a criança, em virtude de sua falta de maturidade física e mental, necessita de proteção e cuidados especiais, incluindo a devida proteção legal, tanto antes quanto após seu nascimento”. Destaque para o “antes do nascimento” aqui. Antes do nascimento, segundo uma importante convenção de direitos humanos da qual o Brasil é signatário, a criança (a pessoa humana em desenvolvimento) merece a devida proteção legal.

Eu sei que a questão é um tanto nebulosa na ONU atualmente, estando capturada pela ideia de direitos sexuais e reprodutivos. Mas o fato é que os próprios direitos sexuais e reprodutivos não estão previstos em nenhum tratado ou convenção internacional de direitos humanos, assim como o aborto não está previsto em nenhum tratado ou convenção internacional de direitos humanos (e esses – tratados e convenções – são os instrumentos que de fato reconhecem os direitos humanos na ordem internacional). No entanto, a proteção à criança, tanto antes quanto depois do nascimento, está prevista numa das mais significativas normas internacionais, exatamente a Convenção dos Direitos das Crianças.

Assim, o que quer que “direitos sexuais e reprodutivos” signifiquem como direitos humanos, eles não podem ser compreendidos como o direito ao aborto, porque isso, além de representar uma clara ofensa ao direito humano à vida, seria a violação do dever de proteção intrauterino por aqueles que têm as principais obrigações morais com a vida em formação – o pai e a mãe!

Sei que o terreno é tormentoso quando começamos a falar da ONU (para manter a viabilidade da minha análise, talvez seja necessário somente ressaltar que o caso KL v. Peru, inclusive mencionado em sua obra, tem a peculiaridade de representar uma violação da própria legislação peruana, que contemplava o aborto, mas que não foi aplicada ao caso; ou seja, é plenamente possível entender que o Comitê de Direitos Humanos da ONU não considerou o aborto como um direito humano e mesmo que não tenha ordenado ao Peru garantir o direito ao aborto como um direito legal, uma vez que isso já estava previsto na ordem interna). De todo modo, o meu objetivo aqui é ressaltar que o sistema internacional de proteção dos direitos humanos pode funcionar juntamente com a tradição da lei natural como uma via de mão dupla, cada um servindo tanto de fundamento quanto de modo de operacionalidade para o outro. Não tenho espaço para tratar disso em detalhes aqui, mas remeto à perspectiva de John Finnis e do professor Luiz Fernando Barzotto acerca do assunto, o que pode ser também vislumbrado no capítulo 4 do meu próprio livro.

Por mais que se chegue a um consenso sobre a vida intrauterina, ainda teríamos a questão de saúde pública e os problemas sociais: o que fazer diante das vidas das mulheres que estão sendo perdidas com abortos clandestinos e com o abandono financeiro e afetivo por parte dos pais?

Começando pelo fim da pergunta, sobre o abandono, podemos recordar os ditames da razoabilidade prática e dos dispositivos do Código Civil brasileiro que vinculam os pais. Sobre a questão da saúde pública, a primeira coisa a ser dita é que o aborto jamais poderá ser considerado uma “questão de saúde pública” porque gravidez não é doença. Pelo contrário, a gravidez é um atestado de que o corpo da mulher está funcionando de forma perfeitamente saudável.

Assim, resta somente a questão de possíveis riscos à saúde e mesmo morte em razão de abortos. A esse respeito, o interessante é que os dados ao redor do mundo demonstram que a legalização do aborto não tem qualquer impacto significativo sobre essa questão. Em grande parte, porque o lobby pró-escolha faz com que haja muito pouca regulamentação e mesmo fiscalização de clínicas de aborto legalizadas (o que coloca mesmo em dúvida se o seu funcionamento se dá em condições muito melhores que o de clínicas clandestinas).

“O aborto jamais poderá ser considerado uma ‘questão de saúde pública’ porque gravidez não é doença.”

Carlos Xavier

A legalização do aborto na Islândia levou à erradicação, no país, da Síndrome de Down. Que mensagem isso pode transmitir acerca da relação entre aborto e eugenia?

Esse fenômeno exemplifica bem dois aspectos importantes de toda a discussão. O primeiro é a ligação que o movimento pró-escolha tem, em suas próprias origens, com a eugenia. Como nós bem sabemos, Margaret Sanger, a fundadora da Planned Parenthood, além de racista, era eugenista. O segundo aspecto é a redução ontológica, de que já tratamos aqui. Não poderíamos concluir que, na Islândia, aos portadores de Síndrome de Down foi negado o status ontológico de pessoa? E, se eles não são pessoas, são seres descartáveis, e é possível promover uma verdadeira eugenia quanto a eles.

Retorno novamente ao que afirmei no princípio. A discussão sobre o aborto é uma discussão sobre o tipo de sociedade que queremos ser. Sobre o valor que a vida humana tem para nós. Adicionalmente, aqui, nessa perspectiva eugênica, ela se torna uma discussão sobre o valor que a vida de uma pessoa com Síndrome de Down tem. O interessante é que basta uma simples pesquisa no Google para que nosso navegador fique cheio de testemunhos vibrantes e inspiradores de mães de filhos portadores de Síndrome de Down. Eles existem aos montes na internet e nas redes sociais, e a leitura de alguns deles me emocionou. Acima de tudo, eles ilustram um pouco do que eu também mencionei acerca do problema do sofrimento: o sofrimento enfrentado na vida pode resultar num bem maior. Pode-se dizer que o reconhecimento do status de pessoa humana de seus próprios filhos ainda no ventre (e, consequentemente, a recusa da interrupção da gravidez após o diagnóstico) permite a pais e mães de crianças Down se tornarem ainda mais humanos ao experimentarem as virtudes do amor incondicional e da doação. Deixo aqui a perspectiva da Camila Emerick, mãe do Bento, em entrevista concedida ao blog “pais e filhos”, do UOL:

“Ser mãe do Bento é a melhor coisa que me aconteceu. Vivo essa maternidade intensamente. Poderia ser mais leve. Desafios? Muitos. Mas isso não significa que não é bom e que não somos felizes. Ter um filho com deficiência faz de cada pequeno momento grandiosa oportunidade para aprender que somos muito mais do que diferenças, que somos muito mais do que iguais, que somos humanos. É algo talvez impreciso, inexato, mas um filho como Bento fez de mim uma pessoa diferente, mais humana e mais atenta aos outros. Ampliou minha capacidade de amar.”

Existem casos em que o aborto deveria ser permitido?

Quanto ao risco à vida da mãe, fico com a posição da professora Melissa Moschella, no sentido de que esta é uma situação em que a intencionalidade do aborto está desconfigurada. Assim, não se deveria exigir da mãe esse sacrifício heroico, devendo-se entender que a interrupção da gravidez para salvar a sua vida é perfeitamente justificada nesses casos. Está presente aqui o bom e velho estado de necessidade como excludente de ilicitude.

Penso que as questões que envolvem síndromes e malformações podem ser agrupadas sob a perspectiva da eugenia, da pergunta anterior, e não deveriam, em linhas gerais, ser consideradas hipóteses em que o aborto pudesse ser moralmente justificável. Por isso, não vejo com bons olhos a perspectiva inaugurada pelo Supremo Tribunal Federal ao considerar lícita a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos (ADPF 54).

Quanto ao difícil caso do aborto em caso de estupro, não tenho posição formada. Particularmente, hoje eu considero uma virtude intelectual suspender o juízo até ter boas razões para formar o convencimento. Sei que há boas razões para sustentar a não interrupção da gravidez também nesses casos, mas este é um dilema moral para o qual eu reconheço não ter resposta.

Por esses motivos, creio que o artigo 128 do Código Penal brasileiro equacione de forma bastante razoável a questão. Creio, também, que o Supremo já foi longe demais ao julgar a ADPF 54, e espero ter demonstrado de forma satisfatória as razões pelas quais penso que a ADPF 442 deva ser julgada improcedente.

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