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Franklin Ferreira

Franklin Ferreira

Artigo

O Estado sou eu – sem “mais” nem menos

Alexandre de Moraes Luis XIV absolutismo
Os reis absolutistas, pelo jeito, têm sido a inspiração de alguns ministros do STF. (Foto: Imagem criada utilizando Whisk/Gazeta do Povo)

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Nos últimos anos, o Brasil abandonou a modéstia institucional, uma postura de contenção, equilíbrio e respeito aos limites constitucionais, para abraçar um perigoso delírio absolutista togado. Em vez de juízes e ministros agirem como intérpretes da Constituição, passaram a se comportar como seus autores. O Judiciário, sobretudo em suas altas cortes, tomou para si funções que não lhe competem, invadindo atribuições do Legislativo e do Executivo sob o pretexto de “defesa da democracia” ou “combate à desinformação”. O que se vê, na prática, é um ativismo judicial autoritário que desequilibra os poderes e corrói a segurança jurídica.

A toga virou símbolo não mais de neutralidade, mas de poder concentrado e imune a críticas. O resultado desse processo é a politização escancarada da Justiça, com decisões seletivas, pautas ideológicas e investidas diretas contra adversários políticos. Esse cenário alimenta desconfiança popular, deslegitima as instituições e enfraquece o Estado de Direito. Quando magistrados agem como militantes, deixam de ser garantidores da Constituição para se tornarem protagonistas de um projeto político. Agora, o Brasil colhe os frutos amargos dessa inversão de papéis: instabilidade institucional, polarização crescente e perda de confiança na própria Justiça.

Tiago J. Santos Filho, graduado em Direito e pós-graduado em Estudos Bíblicos, um dos pastores da Igreja Batista da Graça, em São José dos Campos (SP), cofundador, professor de Teologia Moral e diretor de Ensinos Avançados do Seminário Martin Bucer, e diretor-executivo do Ministério Fiel, nos oferece uma meditação sobre os perigos que estão diante de nós.

“O Estado sou eu”

L’État, c’est moi.” A frase atribuída a Luís XIV, o Rei Sol, sintetiza o delírio do absolutismo clássico: o monarca que se confunde com o Estado, com a lei, com a justiça. Questionar sua figura era o mesmo que subverter a ordem institucional.

A toga virou símbolo não mais de neutralidade, mas de poder concentrado e imune a críticas

Quando estudei Direito, lembro de um professor que nos mandou ler O príncipe, de Maquiavel. Lá, o autor adverte que o governante precisa parecer virtuoso, ainda que não o seja. O poder exige a aparência de justiça mais do que a prática da justiça. O resultado é o teatro político – e sua degeneração em propaganda.

Não creio que a história se repita. Mas o ser humano, este sim, é reincidente. Vaidoso, megalomaníaco, autorreferente. No Brasil de hoje, figuras públicas que deveriam simbolizar os ideais republicanos, ou seja, serem servidores humildes do povo e das leis, passaram a se enxergar como as próprias instituições que representam.

O presidente Lula, por exemplo, comparou uma negociação diplomática internacional a um jogo de truco – revelando o ufanismo tosco de quem não distingue o boteco do Itamaraty. Neste fim de semana, em convenção de seu partido político, o PT, o presidente, vestido de vermelho como um verdadeiro vassalo da China, admitiu publicamente seu desejo de implantar o socialismo no Brasil. Ao mesmo tempo, desafiou o governo americano com a proposta de uma moeda que concorra com o dólar. É quase cômico: o presidente de um país que não consegue conter a violência, que mata mais do que guerras no exterior; que não freia a ação do PCC e do Comando Vermelho; que não leva água limpa a milhões e ainda mantém sua população vivendo entre fossas e esgotos abertos; que sucateou e politizou suas Forças Armadas – achar que pode rivalizar com nações avançadas e, ainda por cima, aliadas. O Brasil vive um paradoxo vergonhoso, fruto de um governo fora da realidade. Mas é bom lembrar: quem elegeu esses governantes foi uma parcela significativa do povo. Agora cabe ao povo demiti-los, antes que seja tarde demais.

Versalhes dos trópicos

Do outro lado da praça dos Três Poderes, o Supremo Tribunal Federal (STF) parece ter virado uma corte do Palácio de Versailles. E o ministro Alexandre de Moraes, sua figura mais extravagante, encarna a caricatura do absolutismo togado. Ele realmente parece acreditar que ele é o Estado. Ele se acha infalível. Ele se acha acima do bem e do mal. Sem mais nem menos.

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É nesse cenário que se insere um fato inédito e simbólico: a inclusão de Alexandre de Moraes na lista de sanções da Lei Global Magnitsky – legislação norte-americana que permite sancionar agentes públicos de qualquer país por graves violações aos direitos humanos e ao Estado de Direito.

Na prática, isso significa que uma democracia estrangeira aliada, como os Estados Unidos, passou a enxergar um ministro do STF do Brasil como uma ameaça às liberdades civis. A sanção não é jurídica – é política. Mas ela se impõe a alguém que, há tempos, deixou o campo jurídico para atuar com intensidade no campo político.

Nesse mesmo ambiente de desgaste e descontrole, assistimos a mais um episódio escandaloso no início desta semana: Moraes decidiu, monocraticamente, decretar a prisão domiciliar do ex-presidente Jair Bolsonaro, sob alegação de violação de cautelar em razão do fato de seu filho ter publicado uma imagem sua nas redes sociais. A decisão foi tomada de ofício – sem provocação do procurador-geral da República, sem consulta aos pares da Primeira Turma ou do plenário, e sem respaldo no artigo 311 do Código de Processo Penal. Trata-se de uma inovação jurídica não prevista em lei.

Uma cortina de fumaça

Coincidentemente (ou não), a medida foi anunciada no mesmo dia em que o ex-assessor do ministro Eduardo Tagliaferro, refugiado na Itália, apresentou um robusto volume de denúncias sobre potenciais abusos no inquérito do 8 de janeiro – incluindo o uso indevido do sistema de imagens do TSE para identificar manifestantes e justificar prisões com fundamento precário, com base em postagens críticas a governantes do PT nas redes sociais. Some-se a isso as impressionantes manifestações pacíficas que tomaram as ruas de diversas capitais no domingo, 3 de agosto, reunindo centenas de milhares de cidadãos que pediam o impeachment do ministro. As ações de Moraes, sob o olhar cúmplice de vários de seus colegas e dos presidentes das casas legislativas, soam arbitrárias, impulsionadas por sanha vingativa e um manifesto sentimento de odium politicum. Há muito tempo que a suprema corte se apequenou. E, em nome da “defesa da democracia”, tem esfacelado os próprios direitos democráticos que deveria proteger.

O Brasil vive um bug institucional. Não há normalidade política, jurídica ou social. E a imprensa tradicional, salvo raras exceções, virou fábrica de narrativas descoladas da realidade

Como estudioso do Direito há mais de duas décadas, acompanhei de perto a formação do STF ao longo dos anos. Recordo-me com respeito de ministros como Sepúlveda Pertence, Carlos Velloso, Néri da Silveira, Marco Aurélio Mello e Moreira Alves. Eram, em sua maioria, juízes de carreira. Discretos. Técnicos. Aversos a holofotes. Não eram estrelas de redes sociais. Não discursavam em eventos estudantis com viés ideológico. Não usavam o vocabulário da militância. Suas decisões podiam ser questionadas, mas não escancaravam preferências políticas. Essa tradição se quebrou.

Uma corte política

Nas últimas duas décadas, assistimos à nomeação de ministros oriundos de gabinetes políticos, ex-ministros de Estado, advogados de partidos, militantes de “inovação constitucional”. A toga virou púlpito. A liturgia do cargo foi substituída pela performance pública.

Um certo ministro – que teve seu visto de acesso aos Estados Unidos cassado – já gritou “Não amola! Perdeu, mané” a um cidadão brasileiro no exterior. Também discursou em um centro estudantil de esquerda: “vencemos o bolsonarismo”, ele disse, desprezando o voto de metade dos brasileiros.

Ao agirem como agentes políticos, esses ministros se tornaram vulneráveis aos riscos da política. Usaram a toga como palanque. E agora colhem os frutos: investigações, desconfiança internacional, sanções diplomáticas. É verdade que sofrem punições políticas – mas apenas porque atuaram politicamente. Se tivessem permanecido no campo jurídico, ninguém os interpelaria no campo político. Foram eles que abriram as portas para o escrutínio do povo, da imprensa e das nações estrangeiras.

Trata-se de uma inversão estrutural. Hoje, temos um ex-presidente, Jair Bolsonaro, preso e impedido de falar com seu próprio filho antes mesmo de ser julgado. Encarcerado e calado à força. Punido por antecipação. Uma espécie de gag order sem precedentes. Isso não é justiça – é perseguição judicial. Jamais vi, nem na prática nem na doutrina, medidas tão desproporcionais, autoritárias e incompatíveis com o devido processo legal como as que se veem hoje. A realidade é que o ex-presidente já foi, na prática, condenado por setores do sistema judicial e da imprensa, mesmo sem provas concretas ou evidências claras – enquanto isso, Lula, condenado por corrupção em três instâncias e beneficiado por uma manobra técnica do STF, ocupa hoje a Presidência da República como se nada tivesse acontecido. E o Direito brasileiro, subvertido por ódio político, parece incapaz de reagir.

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O Brasil vive um bug institucional. Não há normalidade política, jurídica ou social. E a imprensa tradicional, salvo raras exceções, virou fábrica de narrativas descoladas da realidade. Com ar de superioridade moral, repete chavões como “Estado Democrático de Direito” sem mais saber o que isso significa. Enquanto o país sangra nas mãos de facções criminosas, com cidadãos reféns da violência e da corrupção, o STF se desgasta em decisões que inflamam a sociedade e desprezam o senso comum.

Uma crise sem fim à vista

É nesse cenário que também cresce o embaraço internacional. Autoridades de democracias aliadas se veem forçadas a reagir. O fato de que alguma forma de contenção aos abusos tenha de vir de fora é, por si só, um retrato do colapso institucional que vivemos. Isso é muito embaraçoso.

Chegou a hora de perguntarmos, com seriedade, que tipo de nação queremos ser. É esse o caminho da civilidade e da justiça? Esses ministros representam os valores históricos do Direito brasileiro? E o Senado – continuará inerte, escolhendo o cálculo eleitoral em vez do imperativo moral? Precisamos superar o personalismo e o improviso, abandonar o jeitinho e o conformismo, e estabelecer um verdadeiro pacto social. Um pacto em torno de valores inegociáveis: liberdade, justiça, ordem institucional, respeito ao povo e às suas escolhas legítimas. Não podemos continuar como uma colcha de retalhos de indivíduos em busca de sua sobrevivência solitária. Ou nos unimos em torno da Constituição e das liberdades fundamentais ou seremos engolidos por um projeto autoritário, disfarçado de defesa do Estado Democrático de Direito – não do império da lei. O tempo de silenciar já passou. O tempo de agir chegou.

O caminho de volta à normalidade passa, sim, pela política. É preciso renovar o STF. E, respeitando as vias legais, iniciar o processo de impeachment daqueles que transformaram a corte em palanque ideológico. Quem sabe assim recuperamos um pouco da moderação, temperança e equilíbrio institucional que um dia fizeram da suprema corte brasileira uma instituição digna de respeito – e não de escárnio.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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