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Cena da terceira temporada de “The Chosen”, com o Sermão da Montanha.
Cena da terceira temporada de “The Chosen”, com o Sermão da Montanha.| Foto: Angel Studios/Divulgação

Na quinta-feira passada, eu e minha família tivemos o privilégio de assistir à pré-estreia da nova temporada da série The Chosen (Os escolhidos), no Cinemark Iguatemi São Paulo. Escrevo essa resenha em coautoria com Jefferson Oliveira, graduado em Jornalismo pela Universidade Federal Fluminense e em Teologia pelo Seminário Martin Bucer, mestre em Teologia pelo Puritan Reformed Theological Seminary, e professor de Teologia Moral no Seminário Martin Bucer. É também o meu genro, e esteve comigo na pré-estreia.

Representações do Messias

Num filme preto e branco, um Homem tem sua cabeça iluminada por uma luz arredondada, enquanto caminha seguido por outros 12. Num outro, já a cores, um injustiçado sedento é impedido de beber água, até que Alguém claramente distinto dos demais, e só filmado de costas, desafia a autoridade romana e serve água ao desvalido. Ainda, um Homem com olhar penetrante faz um discurso contundente a uma grande multidão. Mais recentemente, um Homem sofre torturas tão excruciantes que levou as pessoas a olharem em outra direção ou se sentirem mal, enquanto acompanhavam as últimas horas daquele que é o personagem principal da Maior História de Todos os Tempos.

A história do Senhor Jesus, o Messias e eterno Filho de Deus, o herdeiro do rei Davi, já foi retratada nos cinemas em diferentes momentos, e sob diferentes pontos de vista. E, apesar disso, parece sempre haver um novo aspecto a se ressaltar. Talvez, numa paráfrase do dito do apóstolo João, devamos concluir que, se tudo o que ele fez fosse posto num filme, cuidamos que nem nos mais confortáveis cinemas haveria tempo para uma produção com tantas maravilhas a expor.

O fenômeno The Chosen

Em parte, isso explica a série The Chosen. Há tanto para se contar do ministério e feitos de Jesus que mais vale uma série para desenvolver mais tantos aspectos, em vez de um filme. Contudo, mesmo hoje, em que as pessoas desejam ficar o máximo de tempo em casa e assistir a séries numa tela pequena, o cinema ainda é um lugar onde podemos perceber mais claramente a beleza da arte cinematográfica, por todos os elementos especiais que tal espaço nos oferece.

Há tanto para se contar do ministério e feitos de Jesus que mais vale uma série para desenvolver mais tantos aspectos, em vez de um filme

A série está disponível gratuitamente pelo aplicativo e pelo site The Chosen. Também está disponível em plataformas de streaming como Netflix, Amazon Prime, Peacock e VidAngel, sua casa original; e será exibida na tevê aberta pelo canal SBT. E foi pelo sucesso e por seu apuro que The Chosen estreará hoje nos cinemas. Será uma exibição dos dois primeiros episódios da terceira temporada, já dublados, e com a qualidade já demonstrada da série. E de que maneira esse sucesso começou para chegar aonde está hoje?

The Chosen é uma série crowdfunding, ou seja, sustentada pelo público que ajuda financeiramente na produção de cada episódio, as famosas “vaquinhas” virtuais. Tudo começou quando o diretor Dallas Jenkins, filho de Jerry Jenkins, coautor da série de ficção cristã Deixados para trás (Left Behind), fez um curta para sua igreja, a Harvest Bible Chapel, em Elgin, Illinois, abordando a história do Natal sob a perspectiva de um dos pastores que viram o bebê Jesus. Lançado o curta, ele chamou a atenção da produtora VidAngel. Assim, foi filmado através do Angel Studios, responsável também pelo aplicativo que distribui a série. Daí em diante Dallas pôde apresentar sua ideia de uma série com várias temporadas que narrassem a história de Jesus e seus discípulos e seguidores mais próximos. Havia muita preocupação com o financiamento, já que o projeto demandaria muito dinheiro, mais do que é comum projetos de crowdfunding arrecadarem. Mas, até novembro de 2021, os espectadores contribuíram com US$ 40 milhões para a produção da série, tornando-a de longe o projeto de entretenimento com financiamento coletivo de maior sucesso da história. Quando lançada a primeira temporada, em 2019, alcançou tanta repercussão que foi traduzida para 62 idiomas diferentes. Aliás, o Brasil é um dos maiores consumidores da série, com milhares de seguidores nas redes sociais, vários conteúdos associados e, é claro, uma exigência quase que instantânea por episódios dublados, comprovadamente o jeito como os brasileiros preferem assistir a conteúdos estrangeiros, conforme várias pesquisas.

No IMDb, a série, que já tem uma quarta temporada em produção, chegou a ter a maior nota da história da plataforma, colocando-a no mesmo nível de séries como Chernobyl e Band of Brothers. Entre as razões que podemos mencionar para a série conquistar tantos adeptos e aclamação estão o apuro em expor e em reconstruir Israel no primeiro século da era cristã e o conteúdo claramente cristão. A série, apesar de romancear eventos e oferecer histórias de vida para personagens obscuros e até dos apóstolos, também sabe conquistar com a maneira como expõe o evento bíblico em si, como no caso da cura do paralítico no tanque de Betesda, o milagre no casamento em Caná da Galileia, ou a pregação do Sermão da Montanha – que você poderá conferir nos cinemas.

Sensibilidade e fidelidade

O romancear dos eventos valoriza a história bíblica, não impondo a Jesus comportamentos que estejam fora da doutrina cristã, mas justamente complementando-a e ilustrando-a. Num dos episódios que estarão disponíveis no cinema, vemos Jesus conversar com um de seus apóstolos, Tiaguinho, na verdade Tiago, o Menor, a respeito da condição física deste. Aquilo que é proposto naquele diálogo é uma poderosa demonstração de como diferentes gerações de cristãos lidaram com situações em que pediram, mas não receberam milagres. E, mostrando que esse tema demanda algum tratamento na história da igreja, podemos lembrar do filme clássico O manto sagrado, de 1953, que propõe uma discussão parecida com a personagem Miriam. Um detalhe que valoriza o enredo é que o intérprete de Tiaguinho, Jordan Walker Ross, tem uma deficiência, e este elemento não foi impeditivo para que ganhasse o papel, nem isso é escondido em cena. Na verdade, foi incorporado ao personagem como parte desse elemento romanceado da história que valoriza a interação de Cristo com essas pessoas.

Do outro lado, o romancear dos eventos encontra, muitas vezes, suas motivações naquelas pequenas pistas que a própria Escritura dá aos seus leitores. Dado momento, num dos episódios, dois apóstolos comentam sobre como escreveriam um relato da vida de Jesus. Na série, em um momento particularmente engraçado, um apóstolo critica o outro ou pela precisão temporal ou pela falta dela em suas formas de escrever a narrativa sobre a vida e ministério de Jesus. No fim das contas, sabemos que os apóstolos que escreveram os evangelhos se serviram ou não de datas e marcos históricos e usaram de liberdade inspirada pelo Espírito quanto à cronologia dos acontecimentos na medida em que cada um deles teve um foco e público leitor distinto, ao qual eles queriam alcançar com a mensagem do Salvador – para aqueles que quiserem estudar mais sobre a composição dos quatro evangelhos, recomendamos as obras de Darrell Bock; Introdução e comentário aos evangelhos: Jesus segundo as Escrituras, de Peter Williams; Podemos confiar nos evangelhos?, A confiabilidade histórica dos evangelhos, de Craig Blomberg; e, sobretudo, Jesus e as testemunhas oculares: os evangelhos como testemunhos de testemunhas oculares, de Richard Bauckham.

Numa cena poderosa deste mesmo episódio, somos lembrados de que os evangelhos, segundo Bauckham, teriam um caráter testemunhal: “Eles [os Evangelhos] incorporam o testemunho das testemunhas oculares, não obviamente, sem alteração e interpretação, mas de um modo que é substancialmente fiel a como as próprias testemunhas oculares o narraram, visto que os evangelistas estavam em contato mais ou menos direto com as testemunhas oculares, não distanciados delas por um longo processo de transmissão anônima das tradições”. E ele continua: “Os acontecimentos da história de Jesus estavam prenhes de toda a significação factivo-histórica da atividade do Deus de Israel. Assim, no nível mais profundo, por razões profundamente teológicas – sua compreensão de Deus e da salvação – é que os primeiros cristãos estavam interessados na memória fiel da história realmente passada de Jesus. O presente, no qual viviam o relacionamento com o Cristo ressuscitado e exaltado, era o efeito dessa história passada, pressupondo sua qualidade de passada, e não dissolvendo-a”.

O próprio Sermão da Montanha, que já mencionamos, tem na série Jesus se servindo da ajuda de Mateus. Ele transcreve as ideias do Senhor, e esse insight é excelente! Ou seja, o brilhantismo da série está no fato de explorar que é justamente esse apóstolo que expõe mais claramente este sermão em seu Evangelho, e faria sentido que ele já tivesse anotações das falas de Jesus para justificar tamanha perfeição e detalhes de informação. Além disso, o fato de Jesus solicitar ajuda e precisar de alguém que transcreva suas ideias dá a Jesus um toque de humanidade, que em nada diminui sua divindade, que a série está sempre a demonstrar, mas mantendo um equilíbrio que às vezes falta em nossos sermões.

O romancear dos eventos encontra, muitas vezes, suas motivações naquelas pequenas pistas que a própria Escritura dá aos seus leitores

Sobre o destaque que a série dá às mulheres que acompanhavam Jesus, e que o seguiram até a cruz e sua sepultura, Bauckham destaca como, nos evangelhos, estas mulheres assumiram o lugar de testemunhas confiáveis: “elas ‘viram’ os acontecimentos quando Jesus morreu [...], elas ‘viram’ onde ele foi colocado na tumba [...], elas ‘viram’ a pedra removida [...], elas ‘viram’ o jovem sentado à direita [...] e o anjo convidou-as a ‘ver’ o lugar vazio onde o corpo de Jesus fora colocado [...]. Dificilmente poderia ser mais evidente que os Evangelhos estejam apelando para o papel delas como testemunhas oculares”. Todos os evangelhos nomeiam algumas dessas mulheres que aparecem na série, que são de suma importância para o relato da paixão e da ressurreição nos evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas.

Aliás, os criadores da série negaram publicamente os rumores que circulam nas redes sociais de que série é produzida pela Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Os produtores abordaram o boato em uma postagem no Facebook, em 26 de abril, que incluía uma foto com um texto que dizia: “Este não é um programa anticristão produzido por mórmons. Tenha muito cuidado com esse programa”.  Seguida pela correção bem-humorada: “Acontece que eles estão corretos na primeira frase... não somos anticristãos, não somos produzidos por mórmons”, escreveram os produtores. “Dito isto, vão em frente e tenham muito cuidado conosco – esse conselho é criterioso”. Tal difamação contra a série não deixa de ser curiosa, sobretudo quando se sabe que o ator Jonathan Roumie, que interpreta Jesus Cristo, é um católico devoto, tendo inclusive se encontrado com o papa Francisco, em 2021, em Roma.

O contexto é importante

Do ponto de vista teológico, a série tem um impressionante esmero. A produção tenta atingir diferentes grupos de cristãos, e por essa razão há um certo cuidado para não tratar de pontos disputados entre os cristãos. Assim, o que o espectador recebe é uma clara ênfase no que é central à teologia cristã, o que o clérigo puritano Richard Baxter chamou de “cristianismo puro e simples”. Ou seja, o seriado mantém-se fiel aos textos bíblicos e às principais doutrinas cristãs, como é afirmado nos créditos de abertura do primeiro episódio: “The Chosen é baseado nas histórias verdadeiras dos evangelhos de Jesus Cristo. Alguns locais, cronogramas e eventos foram combinados ou condensados. Histórias de fundo e alguns personagens ou diálogos foram acrescentados. No entanto, todo contexto bíblico e histórico e qualquer imaginação artística são concebidos para apoiar a verdade e a intenção das Escrituras. Os espectadores são encorajados a ler os evangelhos”. Embora a série tenha uma posição claramente evangélica na apresentação dos ensinos de Jesus, há consultores de três tradições de fé cristã que fazem contribuições: Jason Sobel, rabino messiânico do Fusion Global Ministries; o padre David Guffey, clérigo católico e diretor nacional da Family Theatre Productions; e Doug Huffman, professor de Novo Testamento na Universidade Biola. Eles revisam os roteiros e fornecem ideias de fatos ou contextos sobre a história bíblica, cultural e sociopolítica do enredo. Para a quarta temporada, o teólogo judeu ortodoxo David Nekrutman também servirá como consultor da série.

Uma forma pela qual estas contribuições ficam claras é a presença de constantes citações do Antigo Testamento, que ocorrem por diferentes razões. Aparecem como forma de mostrar tradições judaicas praticadas no primeiro século, e assim mostram seus personagens vivendo uma vida normal e tradicional na terra de Israel da época. Tal qual se dá nos textos dos evangelistas, em vários momentos as citações do Antigo Testamento confirmam que Jesus é o Messias de Deus. Em tais casos, vale mencionar que alguns desses momentos são feitos cheios de emoção por parte daqueles que percebem quem Jesus é – como no caso da belíssima e emocionante cena do primeiro episódio da primeira temporada, quando Jesus chama Maria Madalena pelo nome e, citando o profeta Isaías, diz: “você é minha”. Isso é muito saudável, pois, como qualquer obra de arte, esse tipo de abordagem termina por emocionar quem é exposto a ela, e permite que percebamos nos sentimentos dos outros a grandeza de tais profecias do Antigo Testamento, proferidas entre sete e dez séculos antes dos eventos ligados à vida de Jesus, que muitas vezes uma mera leitura superficial da Bíblia não nos permite notar ou até mesmo encantar. A série ainda visita o Antigo Testamento em algumas cenas, e esse tipo de movimento é ainda mais impressionante, pelo desejo de apontar o cumprimento das profecias do Antigo Testamento no Novo Testamento, como vemos numa cena de Moisés preparando a serpente de bronze que, no Novo Testamento, Jesus conecta a si mesmo. De maneira poderosa, a série coloca, então, a serpente presa numa cruz.

Em alguns momentos, a série propõe a divindade de Cristo de forma inteligente e até desferindo golpes em pensamentos abundantemente condenados como heréticos pelos diferentes grupos cristãos. Um exemplo disso é a observação de Maria Madalena, no primeiro episódio da segunda temporada, ao contar como conheceu Jesus, e logo temer que sua relação com Jesus fosse mal compreendida, como aconteceu em filmes e livros guiados pelo gnosticismo que sugeriram um relacionamento entre ambos. Ou, num exemplo sutil, a conversa de Jesus com o pai da noiva de Tomé, onde ele afirma: “Eu não sou Pai”. Várias heresias surgiram por uma má compreensão das distinções entre as pessoas da Trindade Santa. Ao inserir uma fala como essa, para Jesus, a produção demonstra tais distinções e sutilmente expõe o cuidado que teve com o relato bíblico.

Claro que há elementos críticos na série. As caracterizações, às vezes, não são perfeitamente históricas, como o tamanho de Cafarnaum, algumas das vestimentas dos personagens, ou algumas escolhas de termos e ideias que não seriam naturais a pessoas do período. Mas nisso precisamos ponderar que se torna um meio de fazer o espectador se conectar com as verdades profundas de algumas das histórias apresentadas. Ainda há reclamações quanto à representação de Jesus da parte daqueles que consideram pecado qualquer representação pictórica dele. Também gerou certo incômodo a fala de Jesus a Pedro na primeira temporada: “acostume-se com o diferente”. Ela é muitas vezes compreendida como dando abertura para um mau entendimento da mensagem bíblica. A verdade é que essa frase é ambígua e permite múltiplas interpretações – mas, por enquanto, o conteúdo da série não deu margem a uma interpretação não bíblica na narrativa.

“Toma todos os teus eleitos”

O Evangelho de Lucas é famoso por fazer constantes menções a orações, enfatizando este aspecto de piedade aos seus leitores. Não muito diferente, The Chosen nos brinda com momentos em que nos chama a perceber a importância da oração tanto para Jesus quanto para seus discípulos. Lembramo-nos de uma oração que se atribui ao pregador batista inglês Charles Spurgeon, onde ele teria dito: “Senhor, toma todos os teus eleitos, e se possível eleja mais alguns”! Queira Deus que essa temporada no cinema chame a atenção de um público que ainda não viu a série e, mais do que isso, que os espectadores de The Chosen sejam não só impactados pelo belíssimo trabalho dos atores, diretor e roteiristas, porém mais ainda pelo Evangelho inspirado pelo Espírito Santo, e que chegou a nós por meio de Mateus, Marcos, Lucas e João, no qual a série se inspira.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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