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Consumo é parte integrante do ideal moderno de felicidade.| Foto: Khaing Nyein/Pixabay

Há algumas semanas temos explorado as raízes da religião secular do “progresso”, e passamos pela descrição perspicaz do bispo Tom Wright a respeito dessa falsa esperança moderna: ela seria uma espécie de “epicurismo escatológico”, gestado pela cópula entre epicurismo e uma versão amputada da visão cristã da história e do futuro.

E daí passamos a um dos mais importantes desdobramentos do epicurismo moderno: a sua reedição “científica”, por meio do ideal terapêutico moderno. A revolução terapêutica, com seu ideal de felicidade, alterou profundamente o ideal moderno de progresso, que se torna cada vez mais centrado na felicidade do Self.

Progresso e capitalismo emocional

Uma vez que o poder do ideal de progresso vem, como observou Bob Goudzwaard, do capitalismo moderno, esse ideal não poderia ser transformado pela terapêutica moderna sem que ela fosse capaz de capturar o sistema capitalista. Isso foi exatamente o que aconteceu ao longo do século 20, com a ascensão do que foi chamado de “capitalismo afetivo” ou “capitalismo emocional”: um capitalismo dominado pelo ideal terapêutico moderno.

Rousseau disse que o Estado, representando a “vontade geral”, pode forçar um indivíduo a ser livre; o Estado terapêutico, por sua vez, pode forçar um indivíduo a ser “feliz”, educando-o sobre família, sexualidade, prazer, bem-estar e até sobre religião

Já levantamos a bola antes nessa coluna, mas essa história merece ser recontada. A socióloga Eva Illouz descreveu como nos anos 1920 a psicologia moderna e principalmente a psicanálise freudiana – Illouz dá muita importância à influência de Freud – começaram a expandir sua presença na sociedade, promovendo um “estilo afetivo”, voltado para a autenticidade e a afirmação emocional. Essa influência se mostrou fortemente em vários campos da indústria cultural, notavelmente no cinema hollywoodiano e na nascente literatura popular de aconselhamento e autoajuda. Mas um processo crucial se deu quando as grandes corporações do capitalismo norte-americano incorporaram a psicologia moderna na gestão e na publicidade, ao mesmo tempo que passaram a financiar a pesquisa em psicologia, que se tornou um saber técnico relevante para o mercado. A imaginação empresarial foi reconfigurada, diz Illouz em O amor nos tempos do capitalismo, e o capitalismo se psicologizou, de um modo muito conveniente: a partir de um ideal terapêutico dominado desde o início pelo epicurismo.

Eva Illouz argumenta que esse ideal terapêutico não teria tido tanta influência na formação das almas sem uma correspondência estrutural na sociedade. Para organizar o Self, “uma narrativa deve ter uma enorme ressonância cultural, ou seja, tem de se tornar parte das operações rotineiras de instituições que comandem enormes recursos culturais e sociais, como o Estado ou o mercado”, afirma. E foi precisamente isso o que aconteceu: o ideal terapêutico ganhou o mercado e em seguida o próprio Estado, que incorporou o estilo afetivo nas políticas públicas. Jean-Jacques Rousseau disse que o Estado, representando a “vontade geral”, pode forçar um indivíduo a ser livre; o Estado terapêutico, por sua vez, pode forçar um indivíduo a ser “feliz”, educando-o sobre família, sexualidade, prazer, bem-estar e até sobre religião. Mas, além do mercado e do Estado, houve outros atores, como o feminismo e a indústria farmacêutica.

Mas quem exatamente define o novo conceito de felicidade? Aqui Eva Illouz deu uma contribuição inestimável. Segundo ela, formou-se dentro das sociedades modernas um novo campo de poder simbólico, dedicado à promoção do ideal terapêutico e à instrução da sociedade sobre a natureza da felicidade individual: o campo afetivo.

“Todos esses diversos atores convergiram para a criação de um campo de ação em que a saúde mental e afetiva é a principal mercadoria circulada. Todos contribuíram para o surgimento do que chamo de um campo afetivo, ou seja, uma esfera da vida social em que o Estado, o mundo acadêmico, diferentes segmentos das indústrias culturais, grupos de profissionais credenciados pelo Estado e pela universidade, e ainda o grande mercado dos medicamentos e da cultura popular, entrecruzaram-se para criar um campo de ação e de discurso com regras, objetos e fronteiras próprios.”

Esse ponto é da mais alta relevância; há, em nossas sociedades, uma espécie de classe sacerdotal, que educa a sociedade sobre como ser feliz nos termos da nossa sociedade de progresso-técnica-consumo, premiando bons exemplos, socorrendo os que ficam emocionalmente doentes, e amaldiçoando os inimigos da felicidade epicurista – como Freud fez desde o início, em sua falida tese da neurose religiosa. Quem pertence a essa classe? No centro está a psicologia moderna, e amplos setores da psiquiatria; ao seu redor temos a pedagogia moderna, voltada para o protagonismo e a autenticidade do aluno; a indústria cultural, incluindo literatura, cinema, música e publicidade; a gestão empresarial e pública; boa parte das ciências humanas, no mundo acadêmico, mas especialmente as ciências sociais; e mais recentemente, a política identitária no âmbito do movimento contemporâneo de Direitos Humanos, e notoriamente na homotransfilia.

Transformação nos Direitos Humanos

Esse último desdobramento na formação dos campos afetivos modernos é da máxima importância; o movimento de Direitos Humanos nasce com nítidas raízes cristãs e uma forte consciência da fraternidade e do bem comum, mas aos poucos se transfigura em uma ferramenta do campo afetivo, colocando a autenticidade e o bem-estar emocional acima dos deveres comunitários, éticos e religiosos. Dois movimentos paralelos foram necessários para garantir esse desdobramento; primeiro, o conceito de “dignidade humana” foi modificado para significar a sacralidade do princípio da autenticidade emocional, tornando esse princípio – nada menos que concepção de felicidade do campo afetivo – em um imperativo categórico universal. Ao mesmo tempo, os movimentos LGBTQIAP+ foram tomados como símbolos vivos da luta pela “dignidade humana” (ou seja, da felicidade terapêutica).

Temos, assim, um “evangelho” terapêutico e um “sacramento” desse evangelho. A militância de Direitos Humanos foi muito importante no sentido de moralizar o ideal terapêutico, tornando-o uma espécie de necessidade ética universal, e classificando quaisquer eudemonísticas concorrentes, como a cristã, que promove o autossacrifício, o casamento heterossexual e a prioridade da família natural, como inimigas da dignidade humana e, assim, imorais.

O conceito de “dignidade humana” foi modificado para significar a sacralidade do princípio da autenticidade emocional, tornando esse princípio – nada menos que concepção de felicidade do campo afetivo – em um imperativo categórico universal

É assim que, em diversos países, por meio do ativismo judicial, o ideal terapêutico se tornou a bússola nas políticas públicas, na publicidade estatal, e na educação pública e privada. Mais recentemente empresas têm sido cooptadas para promover esse ideal, como condição para fazer negócios e sob ameaça de cancelamento público. O compromisso com o ideal terapêutico, por meio da confissão pública de fé na homotransfilia, tornou-se uma marca que cada um precisa carregar na testa e na mão direita.

A psicologização do paraíso

Naturalmente, essa psicologização no lado “estrutural” da sociedade – o capitalismo, o Estado, o campo afetivo – não poderia ficar apenas no mundo empresarial; assim como os algoritmos computacionais influenciam o nosso uso das redes sociais hoje, a psicologização do sistema de progresso o tornou uma força organizadora da nossa psicologia. O capitalismo se tornou sentimental, e nossos sentimentos tornaram-se capitalistas. Isso é muito evidente hoje na atitude utilitária que domina os apegos e afetos em diversos campos da vida moderna, como a sexualidade, a família nuclear, a religião e a educação. Os investimentos emocionais não se guiam mais por tradições, lealdades e ideais morais elevados, mas por cálculos de retribuição emocional. Até mesmo o voto e a participação em uma igreja tornaram-se processos sentimentalizados.

Ou seja: ao mesmo tempo em que o ideal terapêutico dominava a ponta produtiva do sistema capitalista, algo similar acontecia na outra ponta do sistema: o consumo. Emergiu uma nova imagem do paraíso, que guardava pouca relação com os sonhos iluministas de uma sociedade racional, justa e igualitária. Esse novo ideal, alimentado pelo sucesso do capitalismo de consumo, tornou-se uma utopia implícita, mais poderosa do que as utopias iluministas. Afirma Gilles Lipovetsky, em A Felicidade Paradoxal: Ensaio Sobre a Sociedade de Hiperconsumo:

“A vida no presente tomou o lugar das expectativas do futuro histórico e o hedonismo, o das militâncias políticas; a febre do conforto substituiu as paixões nacionalistas e os lazeres, a revolução. Sustentado pela nova religião do melhoramento contínuo das condições de vida, o maior bem-estar tornou-se uma paixão de massa, o objetivo supremo das sociedades democráticas, um ideal exaltado em todas as esquinas.”

Não queremos dizer, com isso, que a busca da felicidade invadiu “ontem” o ideal de progresso; na verdade ela sempre esteve lá, desde o início. “A história universal tem um sentido: ele não é mais que o progresso ao infinito da humanidade, a marcha desta rumo à felicidade mais completa”, diz Lipovetsky. Os modernos tornaram o Homo felix um objetivo universal que resultaria da própria evolução histórica.

Qual é a diferença, então? É que, com o triunfo da terapêutica, o ideal de felicidade se tornou individualista e sentimental. A fé no progresso não foi abalada, mas entrou num processo de metamorfose, no qual o bem-estar pessoal ganha aos poucos a ascendência sobre fins coletivos e ideais heroicos tradicionais. Os sucessos da civilização do consumo dão plausibilidade a esse novo ideal. Uma nova concepção de felicidade, individualista e sentimentalizada, como que se aloja no templo do progresso, tornando-se a sua bússola. Gilles Lipovetsky não poderia o ter expressado melhor: “A felicidade é o valor central, o grande ideal celebrado sem tréguas pela civilização consumista”. Mas essa felicidade é de um tipo singular: “a felicidade interior, sem que seja preciso renunciar ao que quer que seja de exterior (conforto, sucesso profissional, sexo, lazeres)”. Trata-se de uma reedição do epicurismo, customizada para a civilização do consumo. A descrição dessa nova imagem do paraíso feita por Lipovetsky é excepcional:

“Toda a vida das sociedades superdesenvolvidas se apresenta como uma imensa acumulação dos signos do prazer e da felicidade... Por toda parte se erguem as catedrais dedicadas aos objetos e aos lazeres, por toda parte ressoam os hinos ao maior bem-estar, tudo se vende em promessas de volúpia, tudo se oferece como de primeira qualidade e com música ambiente difundindo um imaginário de terra da abundância. Nesse jardim de delícias, o bem-estar tornou-se Deus, o consumo, seu templo, o corpo, seu livro sagrado.”

O identitarismo não promove fraternidade, mas igualdade pela via da autoafirmação

Temos, então, um sistema de progresso tecnicista-capitalista-terapêutico. Esse sistema não domina apenas a “direita” ou o poder econômico, mas também a “esquerda” moderna. Essa última mantém a prioridade da igualdade em seus princípios, mas se rendeu à forma terapêutica da religião do progresso quando abandonou os antigos ideais de luta de classes, revolução social e socialismo para priorizar a pseudopolítica identitária, que é centrada no Self individual e na felicidade como autenticidade e realização emocional. À diferença das direitas, no entanto, as novas esquerdas apostam no Estado terapêutico como forma de garantir a mesma felicidade epicurista, cultivada nas estufas do consumismo, mas de forma igualitária.

“Wokeísmo”: o igualitarismo psicologizado

Aqueles que se colocam mais à esquerda podem objetar, alegando que nelas há uma ênfase maior na dimensão comunitária da vida. Mas é um erro pensar que igualdade seja o mesmo que fraternidade. São princípios diferentes. O identitarismo não promove fraternidade, mas igualdade pela via da autoafirmação. Mesmo quando o faz através de “coletivos” com interesses comuns, mas centrados na realização do indivíduo. Diz Lipovetsky:

“Pois como não sublinhar o fato novo de que, daí em diante, a inclusão comunitária é escolhida, reivindicada, exibida ostensivamente como uma maneira de ser um eu, como um vetor de identidade pessoal? [...] Assim, a referência comunitária tornou-se uma ‘tecnologia’ do eu. O que se manifesta é menos uma realidade suprassingular do que uma estratégia pessoal, uma instrumentalização do grupo como fins de valorização de si. De resto, do que dependem os fenômenos de poli-inclusão e o caráter instável, móvel, do neotribalismo, a não ser, precisamente, da lógica do indivíduo dissociado, desligado, legislador da sua própria vida? Não é a evasão de si nas emoções e fusões coletivas que predomina, mas o Homo individualis, dispondo de si próprio até em sua autodefinição social.”

Daí a artificialidade das alternativas que o identitarismo fornece, em relação ao casamento, à família, à comunidade, à igreja e à nação; são sociabilidades eletivas e líquidas, dispositivos pseudocomunitários de afirmação do Self, que usam propriedades transversais como cor da pele, sexo, gênero e orientação sexual como eixos de arregimentação e mobilização política, mas não apresentam a integralidade e as responsabilidades mútuas de uma verdadeira comunidade. A militância de esquerda é hoje uma tecnologia do Self.

Esse “êxodo” das esquerdas e sua plena integração ao sistema se deu historicamente entre os anos 1970 e 1990, tendo como marcos o colapso da velha divisão ideológica em 1989, com a queda do Muro de Berlim, e a Conferência de Direitos Humanos de Viena, em 1993, que afirmou a indivisibilidade e universalidade dos direitos humanos, mas ignorou o princípio da fraternidade e os deveres comunitários do indivíduo. No Brasil, a transição foi iniciada nos governos FHC e consolidada na era Lula, e como resultado notório, a que a ponta de lança do discurso das esquerdas contemporâneas tornou-se indistinguível da mensagem de felicidade da publicidade contemporânea.

Em suma, as últimas décadas viram uma extrema psicologização do próprio ideal moderno de progresso, de modo que, adaptando a expressão de Tom Wright, o epicurismo não foi apenas escatologizado, mas psicologizado. E com isso chegamos ao moderno – ou, talvez, hipermoderno – paraíso psicologizado. O que faz certo sentido; que céu seria imaginado por uma sociedade de burnout, a não ser esse?

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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