Lumena, participante do Big Brother Brasil 2021.| Foto: Reprodução/TV Globo
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“A vida é uma missão a ser buscada, não uma série de limitações das quais se emancipar” (Christian Smith)

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Vários colegas, na lida semanal de comentar os acertos e desacertos da mente brasileira, já abriram suas colunas desculpando-se por escrever sobre o BBB21, depois de haverem silenciado – sem sucesso – todas as palavras associadas ao programa, jurando de pés juntos que não o assistem, que só ouviram falar, etecetera. Não sou exceção nisso, mas não tenho como prová-lo; só me resta repetir as mesmas apologias a ouvidos incréus.

Enfim, pelo dever do ofício, confesso ter espiado alguns “excertos”; citações e trechos de vídeos esquecidos pelas mídias sociais. Admito: o fiz com alguma curiosidade, mas me restringi aos trechos mais populares, depois de uma filha garantir que se tratava de um “experimento antropológico”.

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Quis ignorar a coisa toda, mas a tentação foi demais para minhas concupiscências críticas. O fato é que os primeiros dias do circo foram representações emblemáticas de um problema endêmico, há muito apontado na militância identitária, mas cinicamente ignorado pelo esforço de propaganda moral que hoje unifica a publicidade, a imprensa e as comunicações, e o movimento de direitos humanos. Esse problema tem relação com o discurso emancipatório moderno, que se tornou nitidamente patológico.

A despeito da glorificação que a narrativa de pecado e redenção do identitarismo recebe, a sua performance ao vivo no reality show mostrou de forma impiedosa o quanto se trata de uma narrativa ridiculamente feia

Wilson Gomes, professor de Teoria da Comunicação na UFBA, proferiu algumas das palavras mais lúcidas sobre o assunto, para uma entrevista da BBC News: “BBB21 : ‘Esquerda criou palco, ganhou espelho e não gostou do que viu’, diz filósofo sobre o reality”. O filósofo, que não é nenhum simpatizante da direita, relembrou algumas das mais belas pérolas do programa: “Ele é sujinho. Se esfregar bem...” (Karol Conká sobre Gilberto Nogueira, por ter se declarado negro); “Lucas tá usando os pretos para se autopromover. Primeiro foi uma agenda racial e agora uma agenda LGBT. Eu não fico falando da minha mulher e que sou sapatão” (psicóloga social Lumena sobre Lucas Penteado). Foi de Lumena Aleluia a pérola referindo-se à atriz Carla Diaz: “Eu nem gosto dessa coisa sem melanina... Sei lá, desbotada, tal... Olho, olho estranho... Olho de boneca, sabe? Boneca assassina!”

Enfim, dois exemplos do que foi um confuso processo de competição, desqualificação e marginalização de pessoas que, supostamente, seriam representantes inferiores ou falsos representantes das agendas identitárias que, supostamente, elevariam o crédito moral dos representantes mais puros da identidade negra, ou feminina, ou LGBTQI+ e, com isso, os mais aptos ao púlpito moral.

O púlpito moral do identitarismo

O problema não está na existência de um púlpito moral, mas na qualidade desse púlpito. O identitarismo é um movimento profundamente moral: respeito, equidade, igualdade, orgulho, direito, sororidade, pluralismo; sua linguagem é, inequivocamente, uma linguagem moral.

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Mas a moralidade que ele cultiva é nitidamente patológica. Guarda semelhanças com o legalismo farisaico, tão presente em setores do judaísmo e do cristianismo, no qual o orgulho moral se associa com um desprezo julgador contra os fracassados morais; traz o mesmo elemento e puritanismo e de repressão.

Antes fosse só isso; a moralidade do identitarismo parece resultar não de uma submissão cega a um legislador ou da crença numa revelação divina, mas de uma inflexível luta emancipatória, cujas armas são o poder da autoafirmação e o direito ao reconhecimento. A libertação se dá por meio do empoderamento e da autoexpressão, e seu sinal é o orgulho de si. O opressor deve se desculpar de seus privilégios e se humilhar, e o ex-oprimido deve cultivar uma rígida moralidade da autenticidade e da autoafirmação, demonstrando o orgulho de ser quem é. Ao mesmo tempo, falsificações devem ser imediatamente confrontadas e expostas, o que foi feito impiedosamente ao longo do programa.

A vida definida como uma série de cadeias das quais se emancipar, a sociedade como um sistema de forças que impede a emancipação, a glória moral como a capacidade de vencer a todos, saindo do “armário” e expressando poderosamente a sua própria essência: essa é a narrativa de pecado e redenção do identitarismo. Mas, a despeito da glorificação que ela recebe na academia, na imprensa e no entretenimento contemporâneo, a sua performance ao vivo no reality show mostrou de forma impiedosa o quanto se trata de uma narrativa ridiculamente feia.

Conforme já dissemos em uma variedade de oportunidades, essa concepção de vida tem sido chamada de “individualismo expressivo”. É uma versão pós-moderna do humanismo moderno, com sua ênfase na grandeza do homem, na racionalidade e na autonomia individual. A partir do movimento romântico, esse ideal converteu-se num ideal sentimental de autoexpressão; e assim chegamos a esse processo de “centramento subjetivo” (segundo Charles Taylor), e a essa “cultura terapêutica” (nas palavras de Philip Rieff) na qual tudo – a política, o mercado de consumo, a tecnologia e o entretenimento – gira ao redor do Self. Tudo existe para que ele se expresse, encontre reconhecimento e seja agradado.

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Cabe aqui um esclarecimento: o feminismo de primeira onda, o movimento negro e o movimento dos direitos civis não são o mesmo que o individualismo expressivo. Nunca é demais lembrar que Martin Luther King era um teólogo cristão e um representante do personalismo cristão, e que seu movimento é anterior à emergência das modernas políticas identitárias, nos anos 1970. O identitarismo moderno emerge quando se dá uma psicologização da luta por direitos civis, e uma fusão do pensamento progressista com a mentalidade terapêutica. Mark Lilla conta uma parte dessa história em O Progressista de Ontem e o de Amanhã (de 2019).

Assim, o liberalismo político moderno se tornou o braço político do octópode. A política liberal pôs seu foco no reforço e na reverberação das manifestações de orgulho e de autoafirmação identitária. E, quando finalmente lançou sua influência sobre o movimento internacional de direitos humanos, tornou-se uma psicopolítica universal.

Não seria impróprio nomear essa forma de militância política progressista como um “liberalismo expressivo” – mesmo que seja defendida por pessoas e partidos de esquerda ou “socialistas”. Mas por que o liberalismo expressivo – a moralidade do identitarismo contemporâneo – é tão ruim?

O lobo do homem... No BBB21

Se algo fica bem claro no que foi chamado de “Coliseu” global, é que vários participantes se ocupam basicamente de engolir uns aos outros. Alguém mencionou que as intrigas amorosas foram substituídas por “tretas” contínuas, todas assentadas sobre o esforço de autoafirmação pública. A explicação fácil é: “a Globo ajuntou pessoas de caráter ruim”. Mas por que as piores parecem ser justamente as mais politizadas? Tenho uma sugestão a respeito.

Thomas Hobbes propôs, no clássico político Leviatã (1651), que os homens, no estado de natureza, estariam em guerra permanente uns contra os outros, guerra essa motivada pelo medo e justificada pelo direito natural de autodefesa. A guerra preventiva contínua de todos contra todos seria a regra da condição natural, feita de miséria, doença e violência. Homo homini lupus, “o homem é o lobo do homem”, foi a famosa expressão de Plauto popularizada por Hobbes.

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A solução: o contrato social entre os indivíduos, a forma justa e verdadeira de fundar a sociedade sobre o direito e a igualdade dos homens. O contrato social seria o “fiat”, o “faça-se” que cria a ordem social e estabelece as regras de convivência entre os homens. O que nasce desse contrato seria o Leviatã – o Estado.

O identitarismo moderno emerge quando se dá uma psicologização da luta por direitos civis, e uma fusão do pensamento progressista com a mentalidade terapêutica

A ideia central do contrato de indivíduos é uma das pedras fundamentais do pensamento político moderno e do liberalismo político, e se tornou uma grande visão utópica: já que a sociedade traz diversas heranças de desigualdade, de coerções morais, de hierarquias injustas e sistemas de opressão (supostamente herdadas do velho “estado de natureza”), a constituição de uma ordem política baseada unicamente nas regras do contrato, dissolvendo todos os costumes, padrões e estruturas não previstas nesse contrato, e privilegiando o direito de cada indivíduo nesse contrato, seria a melhor forma de garantir a liberdade, a igualdade e a justiça para todos.

Mas há um problema com essa narrativa.

Em Por que o Liberalismo Fracassou, Patrick Deneen observou que a utopia individualista do contrato social pôs em movimento um longo processo de reorganizar o Estado e a sociedade imaginando-a como uma massa de indivíduos atomizados, que precisa ser reconciliada e unificada por meio das leis. Essa reorganização não é inócua; ao imaginar erroneamente como o ser humano funciona, seu remédio se torna um veneno.

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A mentalidade do contrato ignora que, antes do Estado moderno, as pessoas não viviam no “estado de natureza”, mas aprendiam seus direitos e deveres em diversas formas de associação humana como a família, a religião, a guilda e a sociedade profissional, a vila, e assim por diante. As regras e hierarquias impostas para a comunicação, o respeito entre parentes, a atividade profissional e acadêmica, e a participação na igreja limitavam os indivíduos, educavam seus instintos e oportunizavam a formação de virtudes. Digamos que, independentemente das ideias modernas de contrato, sempre houve uma “ecologia social”, ou um “tecido cultural”.

Mas, na medida em que as regras da convivência humana são refeitas, por um longuíssimo processo de reconstrução política e econômica das relações humanas, a ecologia social antiga é destruída. As novas regras, com foco na autonomia absoluta do indivíduo, dispensam a necessidade do pertencimento comunitário, do compartilhamento de valores morais comuns, do respeito e compromisso com a família, com o casamento, com os filhos, e com os axiomas da religião, e são cada vez mais determinadas pelo laissez-faire emocional, pelo cálculo de ganhos e pela regra narcisista do bem-estar pessoal acima de tudo.

Com isso, as pessoas progressivamente perdem os contextos de formação moral, de construção de virtude e de hábitos de respeito. Não se aprende a respeitar os outros lendo livros e frequentando aulas na faculdade. Essas virtudes são construídas em contextos comunitários, nos quais comportamentos ruins são identificados e reprovados, e nos quais a coerção moral exerce um papel formativo. Mas na cultura W.E.I.R.D. – a cultura narcisista, centrada na autonomia, autoexpressão e autorrealização pessoal – são poucos os espaços de aprendizado. A própria educação liberal, centrada no protagonismo e no bem-estar dos estudantes, e recusando-se a “impor” regras morais sobre eles, agudiza ainda mais o narcisismo moderno.

Nos termos da sociologia de Arnold Gehlen, o liberalismo moderno produz um estado contínuo de desinstitucionalização, problematizando e dissolvendo sistematicamente as regras e valores compartilhados, para garantir o máximo de pluralismo e garantir que ninguém se sinta oprimido ou impedido de se expressar autenticamente. Essa utopia seria alcançada, supostamente, pelo avanço civilizatório e pelas novas regras impostas goela abaixo pela legislação – ou, quando ela é lenta, pelo ativismo judicial.

Não se aprende a respeitar os outros lendo livros e frequentando aulas na faculdade. Essas virtudes são construídas em contextos comunitários, nos quais comportamentos ruins são identificados e reprovados, e nos quais a coerção moral exerce um papel formativo

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Mas, se as regras da convivência humana não nascem do contrato social ou do Estado, e sim da ecologia social humana, e das vivências comunitárias e espirituais mais próximas do indivíduo, é claro que o efeito desse processo será exatamente o oposto. Quanto menor o compartilhamento de regras e valores, maior a ansiedade, menor a espontaneidade, menor a confiança entre as pessoas e maior a possibilidade de conflito. Quanto mais os indivíduos estiverem ocupados com sua autoafirmação, mais defensivos e conflitivos eles serão; mais inclinados a desconfiar dos outros e a agir preventivamente contra os outros, para se garantir.

Mas o que é uma “sociedade” na qual todos desconfiam de todos e todos são guiados pelo autointeresse, a não ser... o estado de natureza hobbesiano?

Patrick Deneen chama isso corretamente de anticultura liberal. Toda a teia de valores, relações e instituições que estabiliza a convivência entre as pessoas é desmantelada para que os indivíduos sejam livres de coerções. Mas, então, a base comum para a comunicação e a ação espontânea é destruída, e o homem se torna o lobo do homem.

“O liberalismo... compreende a liberdade como uma condição na qual cada um pode agir livremente numa esfera sem restrição da lei positiva. Esse conceito efetivamente cria o que era meramente teórico em seu imaginado estado de natureza, formando um mundo no qual a teoria do individualismo humano natural se torna cada vez mais uma realidade, agora assegurada pela arquitetura da lei, da política, da economia e da sociedade. Sob o liberalismo, os seres humanos vivem crescentemente numa condição de autonomia na qual a ameaçadora anarquia de nossa alegada condição natural é controlada e suprimida pela imposição de leis e pelo correspondente crescimento do Estado... O liberalismo culmina, assim, em dos pontos ontológicos: o indivíduo liberado e o estado controlador. O Leviatã de Hobbes retratava perfeitamente essas realidades...”

Quanto mais os indivíduos estiverem ocupados com sua autoafirmação, mais defensivos e conflitivos eles serão; mais inclinados a desconfiar dos outros e a agir preventivamente contra os outros, para se garantir

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Em outras palavras: o liberalismo e o ideal de contrato criam as condições que eles pretendem curar; arrasam o tecido social e o “reparam” por meio do aumento da proliferação de leis, da vigilância contínua e da gestão da psicologia das massas. Por isso Patrick Deneen, seguindo nisso a opinião anterior de Robert Nisbet, ligou os pontos e acusou o liberalismo de ser uma das causas involuntárias dos totalitarismos e das grandes guerras do século 20.

Mas voltemos ao BBB21: o que temos ali? Um microcosmo. Ali vemos mais do que a má escolha da Globo ou, como se sugeriu, um perverso estratagema da companhia para descredibilizar o movimento negro brasileiro. O que temos no reality são pessoas expostas diretamente ao veneno do liberalismo expressivo, pondo pra fora sua toxicidade. E o que vemos é, precisamente, o “estado de natureza” vindo à tona. De certa forma, esse estado de natureza hobbesiano não é uma arqueologia, mas uma profecia que o liberalismo expressivo está se esforçando para cumprir.

É claro que há inúmeras injustiças em todas as sociedades humanas, e o racismo é uma das piores em nosso Brasil. O problema é que o “remédio” do liberalismo expressivo é tóxico. A sua proposta para constituição da identidade afasta as pessoas umas das outras. Ele rompe a solidariedade e submerge o sentido de coletividade e de bem comum sob o autointeresse. É uma espécie de acelerador do narcisismo – ainda que suas intenções sejam outras.

E isso nos leva diretamente ao cerne do problema:

Não é assim que se constitui a identidade

O que está errado com as práticas de formação moral dos coletivos identitários?

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O que acontece é que, no vácuo espiritual criado pelo liberalismo expressivo, o indivíduo não tem fontes morais suficientes para alimentar sua relação com os outros. Em vez de basear sua identidade em relações positivas, precisa construi-la sobre uma abstração ideológica. O resultado é esse “estado de natureza” psiquiátrico, com seres humanos agindo como lobos morais uns dos outros.

Penso que há aqui dois erros mais ou menos entrelaçados. Pessoas sobre as quais esses movimentos têm poder formativo parecem se esforçar bastante para estabelecer sua posição como vítimas da violência da sociedade (o que é frequentemente necessário, devemos lembrar), mas de um modo que incorpora essas experiências como ponto de partida narrativo; e também tendem a tratar o traço particular que provocou a vitimização, seja ele a cor, ou a etnia, ou o gênero, ou qualquer outro, como o seu eixo identitário, aquilo que as define centralmente, e que, por assim dizer, “amarra os fios” de seu sentido de valor.

No vácuo espiritual criado pelo liberalismo expressivo, o indivíduo não tem fontes morais suficientes para alimentar sua relação com os outros. Em vez de basear sua identidade em relações positivas, precisa construi-la sobre uma abstração ideológica

Temos, então, duas questões a esclarecer: a questão da vitimidade e a questão do centro identitário. Penso que ambas são respondidas com uma concepção adequada do ser humano como Homo respondens, o homem que responde.

Se quisermos citar a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, lá encontraremos a afirmação, no primeiro artigo, que “todos os seres humanos nascem livres e iguais, em dignidade e direitos”. Além disso, o fato de cada um ter “razão e consciência” torna todos os seres humanos aptos a cumprirem “o dever de agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”; ou seja: os torna sujeitos morais. Assim, ele recebe alguma coisa, e por isso se torna responsável. Se quisermos descer às raízes mais profundas do que se estabeleceu em 1948, encontraremos o personalismo cristão (com ressonância em doutrinas morais de diferentes religiões) e a afirmação da Imago Dei, a imagem divina no ser humano, como fonte última de sua dignidade e de seus deveres.

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Mas voltemos às implicações disso: o ser humano já nasce com uma dignidade positiva e o potencial de estabelecer uma identidade integrada com outros seres humanos. Ele recebe possibilidades e deveres desde o nascimento, e precisa oferecer uma resposta. Além do conjunto de seus traços particulares (sexo, cor, etnia, língua etc.), essa resposta, dentro de uma relação, é o que lhe dá sua identidade particular.

O que temos no BBB21 são pessoas expostas diretamente ao veneno do liberalismo expressivo, pondo pra fora sua toxicidade. E o que vemos é, precisamente, o “estado de natureza” vindo à tona

Explico: o que define um ser humano particular não é primariamente o conjunto de seus traços particulares, mas a relação moral que ele estabelece, com Deus e com os outros, vivida a partir e por meio de seus traços particulares. Essa pessoalidade única emerge na medida em que, com os recursos e características de que dispomos, respondemos a Deus, ao próximo e à realidade. Chamo essa definição, apoiando-me nos ombros de Henk Geertseman, de Homo respondens.

Penso que, com isso, estamos equipados para entender melhor as questões da vitimidade e do centro identitário.

O que pensar quando alguém diz: “eu sou uma mulher negra e, por isso, sofro opressão”? É claro que essa declaração pode ser perfeitamente verdadeira; mas, no momento em que se tornar o eixo identitário de alguém, se converterá numa mentira.

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Em primeiro lugar, tenhamos a clareza de compreender que, se a identidade for construída como uma memória de sofrimento coletivo por um traço particular, e fundamentalmente como rejeição contra a ameaça externa, essa identidade conterá, em si, um vício. Nenhuma identidade saudável pode ser constituída como reação a uma violência, do contrário ela será intrinsecamente constituída pela violência. Ou seja, será fundada no trauma.

É claro que se trata de um mal provocado externamente; a vitimidade da vítima não é a origem do mal, e culpabilizar a vítima está fora de questão. Mais do que isso: sem memória e exposição da verdade, não pode haver reparação e reconciliação.

No entanto, a vitimidade não é um traço natural nem um crédito moral, mas uma condição acidental, produzida pelo violador; uma marca deixada na vítima pelo violador. Um “resto” maligno que a violência deixou em mim. O que devo fazer com esse “resto” é absolutamente crucial. Mas é certo que essa marca não pode mediar minha relação com os outros, pois nesse caso a marca da violência será a norma regulativa desses relacionamentos.

Alguém pode retrucar, aqui, que nenhum movimento identitário propõe que a vitimidade seja a base da identidade; que se trata, antes, de valorizar o traço desprezado, que foi a fonte da discriminação. Mas todos sabemos que isso é falso. A memória do sofrimento coletivo e a síntese das opressões vividas é a principal força agregadora nos coletivos identitários, e parte constitutiva da construção do método político, como é evidente na fundadora declaração de 1977 pelo Combahee Riber Collective.

Ao sofrer violência, sou deformado fisicamente, emocionalmente, às vezes mentalmente, e sempre moralmente. Preciso, sim, de apoio, de reparação e restauração, do contrário não haverá equidade e justiça. Mas a situação não é corrigida enquanto não retomo, moralmente, o lugar no qual eu estava antes de sofrer a violência. É preciso que o veneno da violência seja expelido de mim. E, se minha resposta é o que me define, não posso permitir que a violência e o medo determinem como respondo.

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O que define um ser humano particular não é primariamente o conjunto de seus traços particulares, mas a relação moral que ele estabelece, com Deus e com os outros, vivida a partir e por meio de seus traços particulares

A vitimidade é o vazio deixado pelo fio roubado do tecido da minha existência. Ela não pode operar como centro organizador da minha narrativa e da minha história; eu devo ser tão contrário à minha vitimidade quanto sou contrário ao meu violador. Minha resposta ao mundo ainda deve ser baseada no dom que recebi para ser humano, e não no roubo que sofri de outro ser humano. Não sou o fio que foi arrancado da tapeçaria. Eu sou... a tapeçaria.

E em segundo lugar, devemos ter claro que nossos traços particulares compõem círculos identitários, mas não constituem o eixo do que somos. Vou tomar a mim mesmo como exemplo: mineiro, índio-com-preto-com-outras-coisas, pai de família, teólogo, “homem-cis”, heterossexual, ensino superior completo etc. Qual desses traços me define centralmente? Nenhum deles, e qualquer um deles. Todos esses fios convergem no meu Self, mas a “amarração” é dada pelos vínculos que estabeleço – por aquilo que amo e ao qual eu respondo. Minha identidade particular emerge quando amarro todos esses “fios” da minha existência num ponto dentro de mim, e estabeleço um compromisso com o que considero a coisa mais importante do mundo – o que Charles Taylor chama de “hiperbem”.

Se me permitem a analogia jocosa: “você é aquilo no qual se pendura”.

É aqui que a questão da vitimidade se entrelaça com a questão do eixo identitário. É certo que, muitas vezes, a violência se apoia em um traço secundário do que sou como pessoa, uma saliência particular, como a cor, o gênero, a nacionalidade, a ligação étnica, o credo ou a orientação sexual e, negando esse traço, ou aproveitando-se de sua vulnerabilidade, o emprega para negar a minha dignidade e os meus direitos. O caso é que isso é exatamente o que me inclina a afirmar esse traço em resposta ao violador. Isso é compreensível e, até certa medida, apropriado; a legitimidade do que me diferencia precisa ser afirmada.

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Minha cor não pode governar totalmente o modo como me relaciono com os outros. Nem meu gênero, nem minha sexualidade, nem o fato de ser pai ou brasileiro. Quando tentamos passar tudo o que somos por esses filtros restritos, tornamo-nos caricaturas de nós mesmos

Em nenhum momento, no entanto, essa particularidade, por legítima e bela que seja, deve ser alçada à posição central, como aquilo que me define. Isso ainda seria meramente um viés posto em mim pelo meu violador. Não é ser negro ou índio o que me define centralmente, mas a resposta específica e particular que, como negro ou índio, dou ao outro relacionando-me moralmente com ele, a partir de meus recursos espirituais positivos. As relações éticas que estabeleço, em resposta aos outros, são o eixo constitutivo da minha identidade, para o bem ou para o mal. Classe social, etnia ou gênero, por exemplo, compõem círculos identitários concêntricos, que contribuem para a minha identidade, mas não constituem pontos de síntese, porque cada uma delas é pequena demais para acomodar em si todas as outras.

Minha cor não pode governar totalmente o modo como me relaciono com os outros. Nem meu gênero, nem minha sexualidade, nem o fato de ser pai ou brasileiro. Quando tentamos passar tudo o que somos por esses filtros restritos, tornamo-nos caricaturas de nós mesmos. É por isso que os cristãos dirão, sempre, que o eixo identitário deve apontar para Deus; pois só Ele é grande o suficiente para incluir tudo o que somos, e organizar todos os nossos círculos identitários. Amar a nacionalidade acima de tudo, por exemplo, pode me fazer desprezar o estrangeiro; amar minha negritude acima de tudo pode me fazer desprezar quem “não tem melanina”; mas amar o Criador de todas as coisas pode nos dar a capacidade, se quisermos, de incluir todas as coisas.

Não basta falarmos sobre opressão e libertação; precisamos falar sobre a natureza do bem e sobre o destino dos seres humanos

Vamos pular, enfim, da abstração para o reality: Karol Conká era a artista negra, representante de um grupo particular, com traços particulares; mas, no momento em que adotou certo curso de ação, certo modo de responder, seus traços particulares retrocederam para o background. O mais importante passou a ser a responsabilidade específica, singular e intransferível da pessoa Karol Conká pela resposta oferecida ao desafio da situação. Todos os seus traços, sua voz, face, estilo, história, foram plasmados no gesto de resposta que passa a defini-la.

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O que se viu, no entanto, foi que a ansiedade, o ressentimento e o orgulho, claramente ligados à construção política identitária, apequenaram a artista, a psicóloga social e outros participantes. Cada um deles também é um exemplar do Homo respondens, e cada um deles ofereceu a sua resposta; mas o que tornou suas respostas tão pobres? Sua carência de fontes morais. O vácuo moral e espiritual do liberalismo expressivo deixa a pessoa com poucos recursos para responder. O resultado foi a miséria.

A despeito das tentativas desesperadas de alguns coletivos e perfis militantes em mídias sociais para dissociar-se do espetáculo no “Coliseu” identitário, todos temos historietas pessoais e casos anedóticos sobre essa miséria moral no identitarismo. Enfim, foi um momento de realidade, para mostrar que o discurso emancipatório não é suficiente para formar pessoas e para construir uma sociedade. Como o sociólogo Christian Smith colocou muito bem, não basta falarmos sobre opressão e libertação; precisamos falar sobre a natureza do bem e sobre o destino dos seres humanos.

Se quisermos nos livrar da profecia de Thomas Hobbes, precisamos superar o identitarismo e retornar à virtude.